Uma nova constituinte e assembleias populares: assim começou a revolução bolivariana

E a tragédia nunca mais foi estancada

30/04/2019 17:42 Atualizado: 30/04/2019 17:42

Por Guilherme Bahia, Instituto Mises Brasil

Uma catástrofe humanitária está acontecendo logo ali no nosso vizinho do norte. Um país inteiro está ficando sem ter o que comer.

A violência é tão grande que faz o Brasil parecer um lugar tranquilo. Os emigrados já passam de dois milhões. A ínfima parcela que foi para Roraima nos dá a dimensão do desastre.

Não foi, porém, um desastre natural, como pode parecer a um desavisado que leia os jornais brasileiros. Foi um desastre produzido por mãos humanas, com muito afinco.

Expropriações e tabelamentos

Por anos a fio, o governo venezuelano impediu as pessoas de alocarem seus recursos como lhes parecesse melhor. Por anos a fio, ele usou e abusou do controle de preços e do confisco. Por anos a fio, ele transmitiu a seguinte mensagem a qualquer um que quisesse investir na Venezuela: tudo o que é seu só é seu enquanto eu permitir.

Foi o que Chávez disse, por exemplo, ao dono da Polar, uma empresa de alimentos e bebidas: “Vou lhe dizer uma coisa, Mendoza. Eu, neste momento, não tenho nenhum plano para expropriar a Polar. Não me interessa. Neste momento, não sei se mais adiante. Não sei. Agora, se você acredita que vai me provocar como aqueles do canal 2… você se lembra, né? Mendoza, você quer medir forças comigo? Vai sair perdendo, Mendoza”. (veja o vídeo, marco 1:30).

Chávez estava bravo com Mendoza porque os trabalhadores da Polar protestavam contra a expropriação de outra empresa, a Owens-Illinois. Os trabalhadores, é claro, temiam por seus empregos caso a Polar fosse a próxima da lista. Chávez acabou cumprindo parcialmente sua ameaça. Expropriou um pedaço da Polar, e o motivo foi ela ter feito um depósito de cerveja onde o governo não queria um depósito de cerveja (veja o vídeo, marco 1:09).

Alguns anos depois, Maduro expropriou outro pedaço. Os trabalhadores protestaram mais uma vez. Em vão.

Não é preciso ter qualquer apreço especial pelo caráter dos empresários para entender que expropriações desencorajam o investimento privado. Basta ver os empresários como pessoas que se preocupam com o próprio patrimônio. Com efeito, quanto mais a preocupação deles for essa, mais eles vão fugir de lugares onde o governo os expropria.

As expropriações eram uma das pernas de um projeto de controle total da economia pelo Estado. Outra perna, talvez até mais importante, foi o tabelamento de preços.

O Brasil já teve experiências do tipo, como o Plano Cruzado, no qual a tabela da Sunab, de triste lembrança, definia o preço de tudo. Mas aquele congelamento teve ao menos a virtude de ser, desde a sua concepção, uma medida temporária. Não foi assim na Venezuela, como o próprio Comandante explica:

O controle de preços é necessário e forma parte de uma estratégia de intervenção do Estado na economia, a qual é um dos elementos que conformam a transição do capitalismo — simbolizado por empresas como esta e seus grupos de grandes corporações — para o socialismo. (Veja o vídeo, aos 23s).

A política econômica de Chávez era um Plano Cruzado permanente.

O tabelamento de preços nunca funciona porque um sistema de preços livres é, entre outras coisas, um transmissor de informações. Muitas informações. Preços livres resumem a enorme complexidade das cadeias produtivas de um jeito que até o mais iletrado cidadão consegue saber instantaneamente o que está sobrando e o que está faltando na praça. Se o preço está alto, o cidadão entende que deve consumir aquilo com parcimônia. Se o preço está baixo, o cidadão entende que pode consumir mais. Do lado de quem produz acontece o movimento inverso: o preço alto atrai mais gente para aquela atividade, enquanto o preço baixo induz a turma a fazer outra coisa.

Quando o governo bloqueia esse mecanismo, as decisões de produção e consumo passam a ser feitas no escuro. As pessoas erram a mão. O produto que estava sobrando continua sobrando, e o que estava faltando continua faltando. Escassez aqui e desperdício ali. E isso não acontece só com os produtos do supermercado. Afeta os insumos também. Afeta os serviços. Afeta tudo. Se a escuridão se prolongar, a economia entra em colapso.

Mas a burocracia chavista nunca acreditou nessas coisas. Nunca acreditou em decisões descentralizadas. Sempre quis calcular ela própria o custo de cada item. E utilizou métodos bastante peculiares. Nunca aceitou, por exemplo, que o imposto de renda e o imposto sobre valor agregado (IVA) fossem incluídos no preço de venda, e isso é tão bizarro que é possível ouvir isso pela voz do próprio Comandante (a partir do minuto 3:36).

Os comerciantes, é claro, também fazem suas contas, e elas frequentemente dão um resultado diferente. Para resolver esse problema, a Venezuela tem uma instituição da mesma estirpe que produziu a Sunab de Sarney: a Sundde. O superintendente da Sundde sai pelas ruas e decreta: “Baixem os preços imediatamente! Não se ponha a fazer cálculos! Prendam-no!” (Veja o vídeo).

Proibidas de fazer cálculos, proibidas de vender seus produtos a um preço que dê lucro, as pessoas param de produzir. Mas nem assim ficam livres da Sundde. Ela vem, confisca a matéria prima parada e prende quem se atreve a desafiá-la.

A brincadeira não ficou só nas expropriações e no controle de preços. Chávez também quis definir o que os agricultores deveriam plantar. Isso foi feito no artigo 110 da Lei de Terras, que Chávez criou em 2001 sem precisar do aval do parlamento, pois tinha recebido permissão para governar por decreto durante um ano. Pelo artigo 110 da Lei de Terras (disponível aqui como arquivo de word), qualquer plantio que não estivesse na lista de produtos considerados prioritários pelo governo ficava fora do cômputo de rendimento da terra para fins de reforma agrária.

Agora apenas imagine: o sujeito planta, digamos, aspargos. Produtividade altíssima. Os aspargos são um sucesso, vendem feito pão quente, mas deram o azar de não estar na tal lista. Pronto: fazenda improdutiva, passível de desapropriação.

“Mas as pessoas querem os meus aspargos!”, diria, talvez, o nosso fazendeiro. “Estão dispostas a pagar por eles!”.

“Pouco importa o que as pessoas querem”, responderia o governo. “Importa o que está na minha lista”.

Aconteceu, então, o que sempre acontece quando o governo faz essas coisas: desabastecimento, prateleiras vazias, filas. Eventualmente, o caudilho de plantão resolve culpar as vítimas. Na Venezuela, ele chama a Sundde e deixa bem claro o que deve ser feito: “Presos têm que ir todos os donos de estabelecimentos que ponham as pessoas para fazer filas! Presos!” (veja o vídeo, aos 37s).

Da tentativa ao golpe efetivo: uma nova constituinte

Os chavistas realmente sabem falar grosso. E falaram grosso desde o começo.

Chávez estreou na vida pública com uma tentativa de golpe, no dia 4 de fevereiro de 1992. Golpe raiz, do tipo que é feito com farda, coturno e fuzil. A quartelada nunca mereceu uma autocrítica. Ao contrário, aliás. Nas eleições de 1998, os principais golpistas de 1992 estavam no palanque do coronel paraquedista (Andres Schafer, jornalista que filmou a propaganda eleitoral, conta os detalhes disso num texto saboroso publicado na Piauí).

Depois da vitória, o dia 4 de fevereiro se tornou o Dia da Dignidade Nacional. O chavismo celebrava o seu putsch. Reconhecia a baioneta como instrumento válido na disputa política. Quando Maduro disse que “o que não se pôde com os votos nós faríamos com as armas”, estava apenas dando continuidade a uma concepção política que vinha de longa data.

Mas Chávez, bem ou mal, ganhou eleições (com 56% dos votos). Durante um bom tempo, aliás, foi extraordinariamente popular. Não quis, porém, governar com as instituições existentes.

Já na posse, em 1999, recusou-se a jurar a constituição. Declarou-a moribunda. Convocou um plebiscito para fazer uma nova. O homem realmente queria uma revolução. Venceu o plebiscito com folga.

Foi feita então uma nova eleição, desta vez para a escolha dos deputados constituintes. Outra vitória do chavismo, por ampla margem.

A nova assembleia cobriu-se de grandes poderes. Podia demitir juízes, dissolver a Assembleia Nacional (o parlamento ordinário, não constituinte) e também a suprema corte, que acabou sendo inteiramente substituída. Em menos de dois anos os chavistas controlavam o executivo, o legislativo e o judiciário. O sistema de freios e contrapesos, que existe justamente para impedir maiorias momentâneas de irem longe demais, estava sendo desativado.

O coronel recorria ao procedimento clássico de usar os mecanismos da democracia para solapá-la.

Vieram as cadeias nacionais de rádio e TV. A qualquer momento, Chávez interrompia a novela, o noticiário ou o programa de variedades para apresentar uma nova lei, andar de helicóptero, cumprimentar atletas olímpicos, discorrer sobre Simon Bolívar, falar por mais de duas horas em um supermercado popular, ou discursar por mais de três horas a uma plateia de estudantes.

O importante era mostrar exaustivamente o rosto e a voz do Comandante. Culto à personalidade, sem o menor pudor. De 1999 a 2013, houve 2.569 cadeias nacionais (uma a cada dois dias), com duração média de 43 minutos. Frequentemente, elas eram acionadas para impedir a transmissão ao vivo de protestos contra o governo.

Sob Maduro, a coisa ganhou uma vinheta que, orwellianamente, fala no “seu direito a receber informação veraz“.

As redes de TV passaram a não gostar muito de Chávez. Estimularam protestos contra ele já em 2002. E protestos houve. Muitos, e grandes. Chávez balançou. Deram um golpe. Chávez caiu. O golpe, porém, foi tão mal planejado que em 24 horas o novo presidente já tinha brigado com metade da coalizão que o pusera lá. No dia seguinte, Chávez voltou.

O recrudescimento do regime

Dali para frente, o cenário de mídia hostil mudaria completamente. Em 2003, o governo criou o canal de TV Visión de Venezuela. Em 2007, criou a Televisora Venezolana Social. No mesmo ano, deixou de renovar a licença do canal privado RCTV, que apoiara o golpe de 2002. Em 2009, fechou 34 rádios. Em 2013, a Globovisión, outra que tinha apoiado o golpe, mudou de dono e ficou mais mansa. Em 2014, a colombiana NTN24 foi tirada do ar por noticiar protestos contra Maduro. Em 2017, foi a vez da CNN. Às vozes dissidentes, só restou a internet.

Durante boa parte desses anos, os chavistas seguiram vencendo nas urnas. Sua primeira derrota veio em 2007, em um referendo para, entre outras coisas, permitir reeleição ilimitada.

A segunda derrota veio no ano seguinte, quando a oposição conquistou a prefeitura de Caracas. Desta vez, porém, os chavistas prepararam uma surpresinha: criaram, em 2009, um novo ente federativo: o Distrito Capital.

O Distrito Capital, cuja chefe foi nomeada diretamente por Chávez, absorveu a maior parte do orçamento da prefeitura. Questionada sobre isso, a nomeada, Jaqueline Faría, explicou (ver aos 45s) que tudo foi feito com base nos artigos 16 e 18 da constituição de 1999. Este articulista se deu ao trabalho de ler os artigos 16 e 18 da constituição (disponível aqui). O artigo 16 não se aplica, pois fala da criação de territórios federais, o que não era o caso, uma vez que o Distrito Capital já estava formalmente criado, embora não regulamentado. É o artigo 18 que rege o caso em questão. Ele de fato prevê a criação, por lei, de uma autoridade como a que Jaqueline veio a ocupar, mas diz que a tal lei deve garantir “o caráter democrático e participativo” dessa autoridade.

Existe um mecanismo bem conhecido para dar caráter democrático e participativo às coisas. Chama-se eleição. Mas Jaqueline tem uma resposta para isso também. Segundo ela, o lugar onde fica a sede do governo nacional não pode ser governado por quem faça oposição ao governo nacional. “Imagine”, diz Jaqueline, no mesmo vídeo, a partir de 7:06, “um presidente de turno que tenha então em seu espaço, em sua sede, um governador ou um chefe eleito e que lhe seja contrário”.

O entrevistador insiste: “isso é o que os franceses chamam ‘coabitação'”. Resposta: “coabitação existe em nível nacional, mas não na sede dos poderes públicos e da presidência da república”.

Outra constituinte

Maduro gostou desse método de neutralizar as eleições quando o chavismo perde. Usou um truque parecido em 2017. Um ano e meio antes, a oposição tinha conquistado maioria no parlamento. Maduro, então, simplesmente inventou uma assembleia constituinte, que, como legislador originário, viria a anular completamente o parlamento eleito.

Mas havia, é claro, o risco de a oposição conquistar maioria na assembleia constituinte também.

O que Maduro fez? Desenhou um colégio eleitoral mandraque. Eis como funciona: o Distrito Capital, que tem mais de 3 milhões de habitantes, elegeu 7 constituintes, enquanto o estado de Apure, com menos de 600 mil habitantes, elegeu 8, e Cojedes, com 348 mil, elegeu 10 (Fonte).

Mas observe: o Distrito Capital é fortemente oposicionista: em 2015, elegeu 16 deputados de oposição e só 2 governistas (Fonte). Já em Apure, Maduro ganhou de 8 a 2, também em 2015 (Fonte). Em Cojedes, de 5 a 3 (Fonte). Exatos 364 constituintes foram eleitos assim, por base geográfica, com os lugares onde Maduro era mais popular tendo uma representação bem maior. Para os outros 181 assentos, Maduro providenciou cotas, a maioria em segmentos que o apoiavam. Por exemplo, a cota dos assim chamados ‘trabalhadores’ foi de 79 constituintes. A dos aposentados, 28. A dos conselhos comunales, 24. A dos estudantes, outros 24.

Mas a coisa não parou por aí. Mesmo com um sistema de votação totalmente viciado, Maduro ainda achou necessário ameaçar funcionários públicos e portadores do “carnê da pátria” (documento que dá acesso a benefícios do governo): “E no final do dia revisem a folha de pagamento. Se temos 15 mil trabalhadores, devem votar os 15 mil trabalhadores, sem nenhuma desculpa!” (veja o vídeo, no marco 2:52).

Assim, para grande espanto de quem acredita na magia das democracias populares, a truculência de Chávez e Maduro na economia se estendeu a todo o resto. A liberdade de expressão foi sufocada. A alternância de poder pela via eleitoral foi bloqueada. As energias criativas de um país inteiro foram sabotadas por mais de uma década. E esse país agora passa fome.

Alguns ainda tentam dizer que a crise se deve à queda no preço do petróleo. Ignorância pura. O preço do petróleo esteve nas alturas até meados de 2014, e naquele ano a economia venezuelana já respirava por aparelhos. Com efeito, em 2007 já havia escassez no país. Mais recentemente, o barril voltou a superar 60 dólares, uma cotação historicamente bastante razoável, e nem por isso os problemas deram sinais de melhora. Vários outros países são igualmente dependentes do petróleo. Eles atravessaram esses três ou quatro anos de cotações baixas sem sofrer nada muito além das mazelas que sempre tiveram. Então não, não foi o preço do petróleo.

A Venezuela está se desintegrando por outro motivo: o socialismo econômico em conjunto com uma tirania que há muitos anos pisa na cabeça de milhões de pessoas.

Memórias e desejo

Estive na Venezuela no final de 2003. Entrei pela hoje triste Pacaraima. Do lado de lá, fui recebido com um carinho que nunca vou esquecer. Pessoas queridas me conheceram nas cachoeiras da Gran Sabana e me ofereceram uma carona que chegou até Coro, no Caribe. Essas pessoas sofrem agora. Assistem, impotentes, à destruição do seu país. De onde estou, não consigo ver luz no fim desse túnel. Espero que elas consigam. Espero que alguém consiga.

Guilherme Bahia é formado em economia pela FEA/USP, foi redator da Folha de S.Paulo de 2002 a 2005 e é perito da área contábil na Polícia Federal desde 2006

O conteúdo desta matéria é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião do Epoch Times