Gulags: conheça histórias de prisioneiros dos campos de trabalho forçado na Sibéria

21/04/2017 07:00 Atualizado: 18/04/2017 23:39

Proibidos de escreverem para os entes queridos, e só autorizados a receber cartas de familiares duas vezes por ano, os prisioneiros dos campos de trabalhos forçados (gulags) soviéticos bolaram muitas maneiras de transmitir cladestinamente suas mensagens. Sem lápis, papéis ou envelopes, eles foram forçados a escrever em maços de cigarros, registrar mensagens com as unhas ou outros recursos na casca de árvores ou bordar mensagens com espinha de peixe em pedaços de tecido.

Outros também esconderam notas minúsculas nas dobras de roupas ou colocaram mensagens dentro de brinquedos infantis, com alguns até mesmo disfarçando-as sob a forma de pílulas para que prisioneiros que fossem liberados pudessem engolir e recuperar mais tarde para passar a seus parentes. A exposição “Direito de Correspondência”, realizada pela Sociedade Memorial em Moscou, apresentou centenas de itens desse tipo datados entre 1919 até a década de 1980.

“Temos cartas de diferentes campos de trabalhos forçados localizados na Sibéria, incluindo de Omsk, Krasnoyarsk, Norilsk e Kolyma”, disse Alyona Kozlova, diretora de arquivos da Sociedade Memorial. GULAG é uma sigla em russo para “Administração Geral dos Campos de Trabalho Correcional”. “Entre elas estão as belas cartas de Vladimir Levitsky para seu filho, com ensaios etnográficos e selos postais desenhados à mão.”

Nascido na aldeia ucraniana de Russkaya em 1873, Levitsky lutou pelo Exército Vermelho na guerra civil e serviu como um oficial de educação ensinando caligrafia e ginástica. Mas ele foi preso em 1932 pelo suposto crime de colecionar selos numa época em que os colecionadores de selos eram suspeitos de passar sinais e códigos secretos. Ele colecionou muitos itens, incluindo cartões postais, moedas e rótulos de caixa de fósforos, mas sua maior paixão eram os selos postais.

Depois de sua prisão num gulag chamado Olhovka, no que é agora a região de Novosibirsk, ele continuou seu hobby, desenhando seus próprios selos em cartas que ele enviou para seu filho Oleg.

Um "selo" desenhado por Vladimir Levitsky. (Sociedade Memorial)
Um “selo” desenhado por Vladimir Levitsky. (Sociedade Memorial)

Entre outras correspondências em exposição estava uma carta de um prisioneiro de Minsk, chamado Kozlov, que usou um método engenhoso para entrar em contato com sua família.

“Ele desfiou suas meias e bordou a carta com uma espinha de peixe num pedaço de pano. Então, seu companheiro de cela foi liberado e conseguiu esconder a carta no colarinho de sua camisa”, disse Irina Ostrovskaya, curadora da exposição. Para sua esposa, Beti, ele escreveu: “Você é a única em meus sonhos e pensamentos. Quanto eu te amo e como é difícil te perder. Não chore. Eu estou sempre com você. Lembre-se de mim com uma palavra amável.”

Então, aos seus filhos, ele acrescentou outra mensagem: “Nina, Enya! Eu não sou seu inimigo. Eu estive em 29 batalhas, eu lutei em Varsóvia, por nossa pátria e sua felicidade. Nunca duvide da minha honestidade perante o Partido, a Pátria e vocês.”

“Fui ferido duas vezes. Eu estou com vocês na eternidade. Guardem-me em suas memórias, cuidem de sua Mamã. Eu os amo mais do que amo a vida. Papai.”

Os gulags produziram um legado infame durante toda a era soviética, com milhões de prisioneiros políticos e inimigos do Estado trabalhando e morrendo em confinamento, particularmente sob Stalin.

Os prisioneiros de campos de trabalhos forçados foram obrigados a escrever em maços de cigarros, registrar mensagens com as unhas ou outros recursos na casca de árvores ou bordar mensagens com espinha de peixe em pedaços de tecido. (Sociedade Memorial)
Os prisioneiros de campos de trabalhos forçados foram obrigados a escrever em maços de cigarros, registrar mensagens com as unhas ou outros recursos na casca de árvores ou bordar mensagens com espinha de peixe em pedaços de tecido. (Sociedade Memorial)
Uma carta bordada num campo de trabalhos forçados soviético. (Sociedade Memorial)
Uma carta bordada num campo de trabalhos forçados soviético. (Sociedade Memorial)

Por meio da correspondência secreta, a exposição apresentou um vislumbre da vida nessas instalações repressivas e desumanas. Para os prisioneiros, o envio de cartas ou desenhos para o mundo exterior os ajudava a manter alguma aparência de vida normal numa época em que estavam sendo manipulados pelo regime.

A comunicação com a família era proibida, embora alguns prisioneiros pudessem receber uma carta uma vez a cada seis meses, e mesmo assim ela era normalmente editada por censores. As cartas mais antigas dos arquivos da Sociedade Memorial (uma instituição histórica internacional, de educação, direitos humanos e caridade) datam de 1919.

Com o passar do tempo, os encarcerados nos gulags da Sibéria tornaram-se mais inventivos em suas tentativas de escapar aos olhos vigilantes das autoridades.

Exemplos da década de 1970 foram feitos em papel resistente à água e escondidos num tipo de pílula engolida por prisioneiros para eventual liberação.

As esposas de supostos inimigos do Estado passaram cartas em brinquedos autofabricados atrás das grades para seus filhos.

Outros rabiscaram notas e jogaram-nas de vagões de trem em seu caminho para o exílio nos campos, esperando que fossem apanhadas e passadas ​​para suas famílias.

(Sociedade Memorial)
(Sociedade Memorial)

“Eles conseguiram lançar cartas minúsculas através de pequenos buracos”, explica Ostrovskaya. “E, apenas imagine, essas cartas chegaram ao seu destino! Tente imaginar, dadas as distâncias, jogar uma carta numa estrada de ferro e esperar que uma pessoa bondosa a pegaria. E as pessoas pegaram essas cartas e as enviaram. Precisamos entender que quando uma pessoa pegou tal carta, ela entendeu muito bem que tipo de carta era, assim como sabia o que estava fazendo ao levar esta carta para a caixa de correio.”

Uma série de esboços também foi apresentada na exposição, o que é surpreendente, uma vez que as ferramentas para desenhar e a capacidade de fazê-lo sob um controle estrito seriam ambos limitados. Entre os que desenharam estava o artista profissional Mikhail Sokolov, um prolífico pintor e chefe do estúdio de arte Proletkult em Moscou, que foi preso em 1938.

Um desenho feito num campo de trabalhos forçados soviético. (Sociedade Memorial)
Um desenho feito num campo de trabalhos forçados soviético. (Sociedade Memorial)

Enquanto estava preso no gulag de Taiga no Kemerovo siberiano, ele produziu paisagens em miniatura em segredo na privacidade de seu beliche, usando pasta de dentes, tijolos, fuligem e fósforos queimados. Outro desenho em exposição, da autoria de Irina Borkhman, foi pintado com sangue de porco.

A exposição apresentou uma série de documentos que destacam a escala da censura imposta pelo rigoroso regime do campo, com letras quase inteiramente riscadas com tinta preta. Em qualquer comunicação oficial permitida pelas autoridades, os presos estavam proibidos de mencionar a localização do campo, o número de prisioneiros, as condições que enfrentavam, quaisquer mortes ou queixas, ou declarações antissoviéticas.

Republicado e traduzido com permissão do The Siberian Times.