Exclusivo: voluntários sem qualquer ajuda governamental levam esperança para população gaúcha

Matéria exclusiva mostra como voluntários têm trabalhado sem o apoio do governo estadual ou federal

Por Matheus de Andrade
10/05/2024 17:14 Atualizado: 24/05/2024 20:52

Horatio Gates Spafford – 1873

Era 1871, Horatio Spafford, um advogado de sucesso recebeu uma notícia arrasadora: seu único filho homem havia morrido. No mesmo ano, o  Grande Incêndio de Chicago destrói todos os seus bens materiais. Como se a perda não tivesse destruído seu coração, dois anos depois, suas quatro filhas morrem afogadas em um naufrágio.   

“Quando a paz, como um rio, visitar meu caminho. Quando as tristezas, como ondas do mar, me cobrirem. Seja qual for meu destino. Tu me ensinaste a dizer. Está tudo está bem, está tudo bem com a minha alma” , escreveu Horatio quando viajou próximo do lugar onde suas filhas morreram. Essa letra se tornou a música It ‘s Well With My Soul (Está tudo bem com minha alma, em tradução livre). 

Rio Grande do Sul, 2024

Hoje, 151 anos após os eventos na vida de Horatio, vemos “Horatios modernos” que perderam tudo o que tinham, e que também tiveram entes queridos  levados pelas águas. 

Em todos os cantos no Rio Grande do Sul é visto deslizamentos, destruição, alagamentos, choro, tristeza e dor, resultado das intensas chuvas que causaram alagamentos no estado, chegando a estado de calamidade pública. 

Uma das cidades afetadas pelas chuvas no Rio Grande do Sul, município de Três Coroas em abril de 2024 (Cortesia de Isabella)

As condições do estado gaúcho são desesperadoras e quando a água baixar no chão dos gaúchos –  molhado pelo suor do trabalho –  estará repleto de lama.

Mas, um chão de lama coberto de  água, é a condição ideal para uma flor de lótus nascer. Essa flor asiática estende suas raízes no chão enlameado do fundo dos lagos, sobe até a superfície onde floresce sem nunca sujar suas pétalas.

Do mesmo modo, gaúchos que ontem tiveram seus pés na lama, estão se levantando da água em direção a superfície e florescendo.

Como flores de lótus que florescem em meio a lama, voluntários da Igreja Adventista do Sétimo Dia ajudam os afetados pelo desastre no Rio Grande do Sul (Cortesia de Isabella Schultz)

“As chuvas ficaram intensas a partir do domingo (28/04). Na madrugada da quarta (01/05) para quinta (02) os rios transbordaram e [a] enchente começou”. Foi assim que Isabella Kaminski Schultz, voluntária, 21 anos, de Taquara-RS relatou à Epoch Times Brasil  como o desastre começou na região em que vive. 

Ela faz parte de um grupo de voluntários da Igreja Adventista do Sétimo Dia que busca arrecadar alimentos, água, roupas e organizar mutirões de limpeza e distribuição de mantimentos.

Isabella não sofreu danos diretos com as chuvas. Por viver em uma montanha, o sítio enfrentou outros problemas. A falta de energia elétrica e o acesso interditado nas estradas principais e as rodovias devido aos deslizamentos de terra e a rachaduras nas rodovias, afetaram Isabella e sua família.

Isabella e um grupo de voluntários da Igreja Adventista do Sétimo Dia, ajudam os afetados pelas chuvas no Rio Grande do Sul (Cortesia de Isabella)

No entanto, ela tem presenciado situações trágicas. A casa de um casal de idosos, que moravam a 3 km do sítio de Isabella, foi levada pelo deslizamento de terra, deixando o local irreconhecível.  A Defesa Civil foi até o local, antes do acidente, solicitando a evacuação do local, porém, o casal se recusou.  

“Depois que aconteceu a tragédia, [a Defesa Civil] veio procurar os corpos e encontraram apenas ele, encontraram apenas o braço dela” disse Isabella. As buscas foram interrompidas devido a instabilidade do local.

O filho do casal ficou inconformado. Contratou retroescavadeira e queria encontrar a mãe por conta própria. “Ele estava inconsolável até que encontrasse a mãe dele”, contou ela.

Diante dos horrores presenciados pela equipe de voluntários, a mãe de Isabella consola afetada pela castátrofe (Cortesia de Isabella)

As chuvas, não afetaram apenas a região leste do RS, onde fica o município que Isabella reside, mas também atingiu novamente cidades na região central como Roca Sales e Muçum, onde Isabella já havia se deslocado em 2023 para realizar serviços voluntários na região.

“Essas cidades, inclusive, hoje estão interditadas. O pessoal foi embora, não vai mais existir a cidade porque foram dois desastres em menos de 6 meses”  disse ela.

Ela também disse ao Epoch Times Brasil que o alagamento afetou diversos amigos que eram próximos. Houve casas onde todo um andar foi tomado pelas águas e “molhou tudo, perdeu tudo.”

Casa de amigos de Isabella afetados pelos alagamentos  na cidade de Três Coroas no Rio Grande do Sul (Cortesia de Isabella)

Isabella leva uma vida simples. Vivendo no campo, ajuda sua família no sítio e faz pelúcias de crochê. Sua professora, no entanto, não poderá continuar com seu negócio.

“Minha professora de modelagem e costura… [a enchente] acabou com tudo na loja dela. Ela até não vai continuar com o negócio. Desistiu. (A lama) levou todos os tecidos, sujou completamente. Perdeu tudo, tudo…”, continuou: “é realmente bem triste. Ela é uma viúva de 75 anos”

Na terça-feira (7) ela esteve junto com um grupo de voluntários fazendo a limpeza da loja da Senhora Simone. Ela ainda relatou que o grupo ajudou diversas casas, situadas em bairros que ficaram “completamente arrasados”. “Bairros pobres de pessoas que perderam tudo”, acrescentou ela.

A mãe de Isabella ajuda os afetados pelas chuvas no Rio Grande do Sul (Cortesia de Isabella)

Durante o serviço de voluntariado, Isabella relatou outro caso desolador. Um casal encontrou seus dois filhos mortos dentro de uma geladeira. A trágica cena dilacerou seus corações. O casal recebe acompanhamento psicológico. 

Todos os casos citados ocorreram nas cidades de Três Coroas, Igrejinha e Taquara.

Ações e medidas tomadas pelo poder público

Ao ser questionada sobre como estava a ação do poder público nessas regiões, Isabella relata a  lentidão e burocracia por parte do Estado. Ela disse que a maior parte da ajuda vem de voluntários.

“O que a gente mais tem visto, a ação mais forte de ajuda solidária, nesse momento, é do povo” – Isabella Schultz sobre os trabalhos voluntários

“Vários grupos de voluntários, de nenhuma ONG, de nenhuma organização, simplesmente pessoas que vêm de outras cidades oferecendo ajuda com 5 pessoas, uma equipe de pessoas, amigos, eles passam pelas ruas oferecendo ajuda para cada casa”, conta Isabella.

Pessoas do próprio estado se voluntariam para ajudar afetados pela chuvas no Rio Grande do Sul (cortesia de Isabella)

Ela relatou também que pessoas de todos os cantos do Rio Grande do Sul estão “se doando e se preocupando realmente com o que está acontecendo”. Ela defende que a efetividade da população nos serviços voluntários, vem da empatia e da vontade de ajudar de modo direto aqueles que sofreram pelos desastres.

Ela ressalta que a ajuda voluntária está organizada. Apensar de acontecer de maneira generalizada e espontânea, tem sido muito eficiente.

“O povo tem trabalhado. O povo tem ido buscar as pessoas porque pouquíssimas são as ações do Governo para esse trabalho de resgate… ou pelo menos eles não têm dado conta” – Isabella Schultz sobre a ineficiência Estatal

Nas redes sociais, alguns internautas colocaram-se contra as doações diretas para o governo. Isabella Schultz explica que na visão dela – perspectiva de alguém que está na linha de frente – isso se deve devido a desconfiança pública contra o Estado.

“Causa muita indignação porque as pessoas estão morrendo, os jornais não estão dando a magnitude certa para a catástrofe que está acontecendo”. disse ela. 

“Eles veem o tempo inteiro pessoas mortas, pessoas boiando, crianças, bebês boiando e isso não é divulgado. Eles estão preocupados com taxação” afirmou ela indignada com a situação. 

(Cortesia de Isabella)

Voluntários que fazem a diferença

O grupo de voluntários no qual Isabella faz parte, foi criado por iniciativa de seus pais e uma família de amigos, também adventistas, Max e Dani, donos do canal do YouTube Sítio Vila VerdeO canal que há duas semanas servia para compartilhar experiências rurais sobre vida no campo e plantações, agora se tornou um canal para compartilhar o trabalho voluntário.

O namorado de Isabella, Rilton Cruz, também fez parte da criação do grupo de voluntários, arrecadando dinheiro e ajuda e até mesmo de outros voluntários.

Isabella e o grupo de voluntários da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Max e Dani estão de amarelo (Cortesia de Isabella)

Ao passar dos dias, o grupo toma forma. De acordo com ela, só foi possível organizar o grupo devido à boa-vontade das pessoas que compartilhavam as ações a todo momento e se doam para o projeto. 

“Até agora a gente já ultrapassou R$70 mil, graças a Deus. É impressionante! E eu creio que a gente possa chegar até os R$100 [mil]” – Isabella Schultz sobre as doações para ajuda humanitária

Os itens comprados pelo grupo são variados. De pias, fogões, camas até cestas básicas, os itens são adquiridos por remessas. Isabella explica que devido a equipe ser pequena, o serviço é dobrado, então a rotina é acordar cedo e ir dormir tarde.

“Tem sido uma benção”, continuou, “Tem muito trabalho, muito trabalho”.

Itens arrecadados e distribuídos pelo grupo de voluntários que Isabella participa (Cortesia de Isabella)

De acordo com ela, o dinheiro e bens arrecadados serão utilizados para iniciar a recuperação de pelo menos 50 lares.

Estima-se que o grupo recebe cerca de 50 a 100 cestas básicas por dia. “Cada dia, recebemos mais remessas que a gente está conseguindo adquirir através dessas doações” afirmou ela.

A vida dos voluntários mudou totalmente. Ela relata que é muito cansativo, mas bastante recompensador.  “A gente aqui precisa tomar um própolis para não adoecer” Isabella diz em tom humorado. Para ela e sua família, a rotina de acordar cedo, se esforçar e dormir tarde não é saudável, mas necessário durante esse momento.

Outros grupos de voluntários

Voluntários dos estados de Minas Gerais, Brasília e Santa Catarina, entraram em contato com eles e anunciaram que iriam até o Rio Grande do Sul para ajudar nas doações.

“A gente está aqui para servir. A gente tem estado 100 por cento do nosso tempo doando o dia inteiro ajudando as pessoas” disse ela. Isabella disse acreditar que não é necessário ocorrer catástrofes como essa para nos dedicarmos às pessoas, mas que essas catástrofes servem como lembrança.

 

Para Isabella, o trabalho árduo é recompensador (Cortesia de Isabella)

“É uma situação que a gente não consegue controlar que vem e em minutos levam tudo – tudo o que foi construído ao longo da vida, tudo que a gente se esforça cada vez para comprar e que a gente acha que é importante. A gente vê que isso não é o importante, que agora que as pessoas perderam tudo, estão triste, mas estão gratas porque muitos perderam o mais importante que é a própria vida. Muitos perderam as famílias, muitos perderam os filhos. Passaram por situações de aflição. A gente precisa da consciência do que realmente importa na vida” –

 

No momento da escrita dessa matéria, as doações já haviam ultrapassado os R$100 mil.

As doações de roupas, mantimentos e dinheiro podem ser feitas através de contato com os perfis do Instagram @bellakschultz, @riltoncru ou através do pix: sitiovilaverders@gmail.com