Por William Gairdner
“Todos aqueles que defendem a escravidão estão livres, e todos aqueles que defendem o aborto estão vivos.”
O Legislativo do Estado de Nova York, irrompendo em um alegre discurso de liberdade, acabou de aprovar uma lei tornando mais prováveis os abortos tardios (após 24 semanas de gestação). Não é fácil arrancar um bebê vivo, já nesta idade, de um útero que ainda não está pronto para o parto, e a maioria dos cidadãos simplesmente desconhece como isso acontece. Em um trabalho futuro, explicarei em termos gráficos algumas realidades, e as confusões morais e filosóficas nas quais se apoiam para se justificar.
Mas, por enquanto, existe uma camada mais profunda que merece atenção. Todas as mulheres entendem que o trabalho de criação e cuidado com os filhos recai desproporcionalmente sobre si e, com esta realidade, não há democracia que seja capaz de equalizar os sexos, a menos que esta desigualdade biológica seja transformada em razão da vontade da mulher.
Leis que permitem o aborto voluntário atingem esse resultado ao apoiarem mulheres na eliminação de suas crianças não-nascidas, permitindo que elas permaneçam somente com as crianças eventualmente desejadas, e removendo quaisquer reclamações acerca de uma desigualdade não escolhida.
O que essa delimitação nos diz é que quase todas as democracias modernas utilizam a vontade da mulher – e não a sua biologia – como justificação moral para o aborto. Nesse sentido, todas modernas regulamentações acerca do aborto são uma expressão do triunfo moderno da vontade sobre a natureza.
Liberdade equitativa
No passado, mulheres cautelosas se sobrepunham à natureza através de prevenções anteriores ao ato sexual – em cujas ocasiões elas se negavam à prática sexual, ou utilizavam métodos contraceptivos –, e não através de um ato de vontade posterior à realização do ato. A vontade que dava suporte à liberdade, anteriormente exercida nos atos prévios à gravidez, foi transformada em controle sobre vida ou morte de uma criança que ainda não nasceu, a fim de que seja garantida a liberdade após a gravidez.
Pronto: uma mulher pode escolher ser tão livre quanto qualquer homem, desde que esteja disposta a matar o próprio filho em seu ventre.
Na maioria das democracias, cidadãos são duramente advertidos em rótulos de garrafas de vinho ou embalagens de cigarro, para que não bebam ou fumem, considerando-se os riscos que podem ser causados ao feto, mas esses mesmos cidadãos podem matar impunemente suas próprias crianças não-nascidas, a qualquer momento anterior ao nascimento, jogando-as no lixo. No Canadá, onde não existe qualquer lei contra o aborto, isto é tratado como um direito da mulher, podendo ser realizado até o último momento antes do nascimento natural.
Embora eu já tenha me posicionado a favor do aborto em casos complexos (nunca genericamente ou como direito contraceptivo), os fatos desta terrível realidade – e o que eu acredito ser a lógica inevitável dos argumentos contra ela – têm me convencido de que o aborto, como vem sendo praticado nas modernas democracias, deve ser tido como um nítido mal moral que não possui caráter diferente dos antigos programas mortíferos, que realizavam infanticídios durante o regime nazista na Alemanha, ou dos programas genocidas de outros regimes totalitários. Todos eles engajados em estratagemas morais e legais para tornar isso possível.
Não-Humano
O subterfúgio legal mais comum para tornar possível e impune o extermínio da vida humana que ainda se encontra no útero é o mesmo em todo lugar.
São criadas categorias normativas que redefinem a criança não-nascida como uma não-pessoa ou como ainda não-humano, “até que tenha avançado para um estado vivo fora do corpo materno” (Seção 223 do Código Criminal do Canadá). Esta é a denominada regra do “nascido vivo”.
O ponto é que se a criança não-nascida é legalmente definida como não-humano até o parto, então você pode fazer com ela o que quiser.
Acontece que este foi o mesmo artifício usado pelos antigos proprietários de escravos. Eles legalmente definiam todos aqueles que queriam escravizar como propriedade, bem móvel, ou não-pessoas, que poderiam, então, ser comprados, vendidos ou mortos, de acordo com a sua vontade.
Toda democracia que permite o aborto está se utilizando das mesmas estratégias, e é por isso que eu digo que quase todas as democracias modernas têm se tornado novas espécies de regimes escravocratas, nos quais, para permitir que as mulheres tenham tanta liberdade biológica quanto os homens, escravizam suas crianças não-nascidas.
O que isso está nos dizendo é que, na tentativa de resolver a contradição que há no coração da democracia igualitária – o fato de que nós bradamos “liberdades e direitos iguais”, apesar de homens e mulheres nunca poderem ser iguais em termos naturais e biológicos – nós tivemos que sacrificar toda uma classe de seres humanos definindo-os como escravos.
De fato, a fim de manter a pureza ideológica de nosso sistema democrático, nós temos substituído a objetificação de pessoas escravizadas pela escravidão dentro do útero, e todas as modernas democracias igualitárias têm feito isso criando uma nova espécie de regime escravocrata.
Na antiguidade, em lugares como Grécia e Roma, milhões de seres humanos – já fora do ventre materno – tornaram-se objetos adquiridos pelo regime escravo para sustentar uma ideologia política assentada em guerras vitoriosas, sendo então destinados aos trabalhos manuais desdenhados pelos escolarizados, a fim de garantir a lisura da prática dos direitos democráticos pelos cidadãos (apenas). Em outras palavras, a objetificação pela escravidão era uma necessidade política e ideológica para a preservação da filosofia política da nação.
Nos regimes totalitários de Adolf Hitler e Josef Stalin, os sacrificados do sistema, por assim dizer, eram todos aqueles definidos e escravizados como “inimigos internos” (judeus, manifestantes comuns liberais ou conservadores, artistas e assim por diante) os quais tiveram sua existência realmente ameaçada em razão da pureza ideológica do estado.
Até bem recentemente, as democracias liberais clássicas do ocidente aceitavam bem a completa expressão das diferenças biológicas, repousando sobre a base original da liberdade individual e das diferenças naturais que ela produz. Professava-se uma filosofia da igualdade “na linha de partida” que celebrava o mérito e a oportunidade, deixando o barco correr.
Mas, em apenas meio século, a maioria das democracias tem mudado seu fundamento da liberdade para uma equidade imposta que se trata, na verdade, de uma filosofia de igualdade “na linha de chegada”. Atualmente, este tem sido o fundamento que comanda nossas democracias, e isto produz contradições predominantes: as democracias ocidentais simplesmente não conseguem descobrir como cumprir sua última promessa ideológica, feita à metade dos cidadãos, sem permitir a morte de crianças não-nascidas.
William Gairdner é um autor que vive próximo a Toronto. Seu último livro é “A Grande Divisão: Porque Liberais e Conservadores nunca irão Concordar” (2015)
Tradução de Daniela Porto Pinto.