Você já se perguntou por que novos medicamentos, com tanta frequência, estreiam logo após a identificação e divulgação de novas doenças? Não é coincidência. A tática é chamada de publicidade sem marca ou “conscientização da doença” e as empresas de medicamentos gastam mais nisso do que em publicidade convencional.
A publicidade sem marca de uma doença normalmente sugere que muitas pessoas sofrem de uma condição que até então ninguém se deu conta (e pode até ser uma “epidemia silenciosa”), lista os sintomas, oferece “questionários” e tenta assustar as pessoas para “visitarem o seu médico”. As doenças não são “inventadas”, mas geralmente existem em números muito menores do que o marketing farmacológico sugere. O que a publicidade que promove a conscientização sobre a doença não faz é dizer o medicamento que está sendo comercializado para a condição ou a empresa por trás desse processo “educativo”. (É por isso que é chamado de “sem marca”.)
As empresas farmacêuticas adoram a publicidade de conscientização da doença porque, ao contrário da publicidade direta ao consumidor (PDC), os riscos e avisos de possíveis tratamentos com os medicamentos não precisam ser listados. Nos anúncios de PDC, os riscos e os avisos costumam ser tão longos quanto o espaço de promoção da droga (e, às vezes, perversamente “desbancam” a droga, mesmo que o espectador esteja observando pores do sol e cachorrinhos). Mas nem todos concordam com a omissão. Em 2013, Aaron Kesselheim, M.D., um professor de Harvard, disse a um repórter do New York Times que um vídeo de conscientização da condição de TDAH, que apoia a segurança de drogas estimulantes enquanto deixa de lado seus riscos, é enganador e irresponsável.
Ainda assim, a conscientização da doença faz grande parte do trabalho pesado no ambiente de marketing farmacêutico de hoje. “A conscientização da doença oferece duas vias de benefícios primários para a marca que se envolve nisso com sucesso”, diz um artigo de marketing farmacêutico. Ela “pode fornecer uma fonte de geração primária para a posterior divulgação da marca” e “oferece uma oportunidade para inspirar os pacientes a ação ou ações benéficas”. Os cínicos poderiam perguntar, benefício para quem?
Analisando como essas campanhas de conscientização das doenças são bem-sucedidas, o jornal Guardian também argumentou. “Normalmente, uma campanha de ‘conscientização da doença’ patrocinada por empresas concentra-se numa condição psiquiátrica sutil com um grande grupo de vítimas potenciais. As empresas financiam estudos que comprovam a eficácia da droga no tratamento da aflição, um passo necessário na obtenção da aprovação da FDA [Administração de Drogas e Alimentos dos EUA] para um novo uso ou ‘indicação’. Médicos proeminentes são alistados para afirmar publicamente a ubiquidade da doença, e então as empresas de relações públicas iniciam campanhas para promover a nova doença, usando estatísticas dramáticas de estudos patrocinados pelas empresas”, escreveu o jornal.
“Finalmente, grupos de pacientes são recrutados para servir como ‘a face pública’ para a condição, fornecendo citações e histórias convincentes para a mídia; muitos dos grupos são fortemente subsidiados pelos fabricantes de medicamentos e alguns operam diretamente a partir dos escritórios das empresas de relações públicas de empresas farmacêuticas.”
Você é “alérgico” a pessoas? E outras campanhas
Você é “alérgico” a pessoas? Você “cora, sua, e até mesmo treme, ou tem dificuldade de respirar” ao tentar se socializar? Se assim for, você pode ter o chamado “Transtorno de Ansiedade Social”, disse uma das primeiras campanhas de “conscientização da doença” que se mostraram bem-sucedidas. Concebida pela empresa marota de relações públicas Cohn & Wolfe em 1999 para vender o antidepressivo Paxil a ser comercializado, os meios de comunicação funcionaram como autofalantes pró-indústria farmacêutica relatando que até 10 milhões de adultos sofriam da epidemia de “ansiedade social”. Quem sabia?
Após a popularização da “ansiedade social”, a publicidade de conscientização da doença (que coincidiu com a legalização da publicidade direta ao consumidor no final da década de 1990) só fez crescer. Em breve, as pessoas começaram a tratar como nunca antes suas “alergias sazonais”, olhos secos, doença de refluxo gastresofágico (DRGE), síndrome das pernas inquietas, colesterol alto e depressão. As doenças geralmente apresentavam sintomas inespecíficos e critérios diagnósticos vagos em consonância com o marketing de conscientização da doença.
Você se lembra de ouvir sobre as muitas mulheres que sofrem de “Transtorno de Desejo Sexual Hipoativo” (TDSH) alguns anos atrás? A conscientização desta doença foi patrocinada pela gigante farmacêutica Boehringer Ingelheim para ajudar a vender sua droga Addyi (flibanserin), que na época tentava obter aprovação da FDA. O marketing incluiu a personalidade da TV Lisa Rinna numa campanha agressiva chamada “Corpo Mente Corpo: Faça a Conexão”.
Boehringer Ingelheim também ofereceu jantares e bufês a potenciais médicos apoiadores, lembrou Petra Boynton, uma pesquisadora sexual londrina. “Eu recebi dois convites para participar de dois longos ‘dias de treinamento’ nos melhores hotéis de Londres (com um honorário de 1000 libras esterlinas por sessão)”, escreveu ela num blog. “O meu entendimento sobre o objetivo desses eventos era ressaltar a disfunção sexual feminina (ou mais especificamente o TDSH) como um problema e informar os profissionais sobre as abordagens de tratamento.”
Embora ela tenha se recusado a comparecer, Boehringer Ingelheim também convidou Boynton que escrevesse um artigo para o British Journal of Sexual Medicine. “Eles tinham instruções claras sobre o que queriam que eu dissesse e como isso daria a entender que o TDSH era um problema predominante e angustiante”, recordou ela.
Os homens não estão isentos do marketing de conscientização da doença. Baixa testosterona foi comercializada agressivamente pela indústria farmacêutica, embora a condição ocorra raramente de acordo com especialistas. “Os verdadeiros casos de deficiência de testosterona, como o hipogonadismo, são raros – menos da metade de um por cento dos homens tem esse problema”, disse Thomas Perls, um especialista em longevidade da Universidade de Boston, numa entrevista. “Uma vez que as campanhas maciças de marketing surgiram no final da década de 1980 alegando que sintomas comuns, como a falta de energia, sono deficiente e pouca libido, poderiam ser tratados com testosterona, o número de homens rotulados com esta doença disparou. A nova síndrome da baixa testosterona relacionada ao envelhecimento foi facilitada pelas organizações de médicos que permitiram novas e muito menos rigorosas e específicas definições de hipogonadismo. Alguns desses painéis de consenso foram patrocinados por empresas farmacêuticas que fazem e comercializam testosterona.”
Claramente a indústria farmacêutica quer que você ache que está doente e a prova é que ela realmente venda doenças por meio da publicidade sem marca.