Em abril de 1917, o Presidente norte-americano Woodrow Wilson discursou diante de uma sessão conjunta do Congresso, para solicitar que o Legislativo o autorizasse a declarar guerra à Alemanha e enviar tropas à Europa para combater ao lado das potências democráticas, Inglaterra e França. Sua argumentação – que acabou por convencer os Congressistas e obter o seu assentimento – não se plasmou em torno de considerações geopolíticas, balança de poder ou interesse nacional, mas ascendeu à dimensão moral e ao princípio da liberdade como orientador dos próprios interesses e do exercício do poder. No clímax do discurso, afirmou Wilson, peremptoriamente, numa frase que ressoa até o hoje (mas cujo eco, infelizmente, enfraquece a cada dia): The world must be made safe for democracy. “O mundo necessita ser tornado seguro para a democracia.” E prosseguia: “A sua paz [do mundo] necessita ser assentada sobre os alicerces provados da liberdade política. (…) Somos apenas [os Estados Unidos] um dos campeões dos direitos da humanidade. Estaremos satisfeitos quando esses direitos houverem sido tornados tão seguros quanto a fé e a liberdade das nações possa fazê-los.”
A fala de Wilson configura um momento extraordinário na história das relações internacionais e na história política dos povos. O ideal da liberdade substitui a antiga razão de Estado como definidor da questão básica da guerra e da paz. Desaba a barreira que até então separava a aspiração de cada povo a ser livre e o propósito de cada nação de ser grande. O objetivo do poder não é mais o de expandir a si próprio e limitar os poderes alheios, mas de garantir para a humanidade – povos e indivíduos – o direito fundacional à liberdade, não em abstrato, não apenas nos salões diplomáticos, mas na luta feroz, na lama da trincheira, contra os inimigos que a liberdade tinha e sempre terá. Idealismo? Claro que sim. Idealismo significa orientar as ações por uma visão do mundo como deveria ser, uma atitude que corresponde à essência do ser humano, desde sempre insatisfeito com sua circunstância presente e buscador de infinitos, almejador de impossíveis, inventor de instrumentos mas também gerador de valores, caçador de renas e ao mesmo tempo cultor da verdade, da justiça, auscultando desde as cavernas a voz inefável das estrelas. Idealismo, sim, pois sem o ideal o homem não é nada, reduz-se ao que Fernando Pessoa chamava o “cadáver adiado que procria” (e um cadáver que, por sinal, já nem procria tanto, com o avanço universal do aborto, da infertilidade voluntária ou causada por medicamentos, da ideologia que concebe as crianças como indesejáveis emissores de carbono e não como bênçãos e continuadores da antiquíssima aventura). Idealismo, claro, mas fincado em um doloroso realismo, na aceitação da incontornável luta. Se o idealismo consiste em apontar o bem, o realismo consiste em reconhecer que também existe o mal e que, sem combate, ele triunfará.
De fato, Wilson pede, implora ação, a ação de seus compatriotas e de seus contemporâneos, pela democracia. The world must be made safe for democracy. O mundo não se tornará propício à democracia sozinho. Alguém tem que trabalhar por isso, lutar por isso, alguém precisa fazer o mundo seguro para a democracia. E onde encontraremos os fundamentos dessa segurança? Na fé e na liberdade das nações, diz Wilson. Repare-se, ele não diz apenas liberdade, mas “liberdade das nações”. Que significa essa expressão? Que a liberdade não existe pairando no ar indiferente de uma humanidade sem raízes, mas corporificada nas nações (não nos Estados), em grupos humanos com sua história e identidade próprias. A nação – venho dizendo – é a casa da democracia, pois democracia precisa de povo, e povo não é um bando de gente ocupando um território, mas uma comunidade de sentimento, experiência e cultura, ou seja, uma nação. Se a nação desaparece e o povo se torna uma simples população vivendo sem rumo e sem coração, o poder político facilmente suplantará esse povo desconexo, inerme, e o submeterá facilmente à tirania do momento – quer se denomine essa tirania “socialismo”, “sustentabilidade”, “sociedade planetária”, “great reset”, “Estado democrático de direito”, ou como quer que seja.
Porém, além disso, que não nos escape uma pequena e imensa palavra na frase de Wilson: fé. Além da liberdade das nações, ele invoca a fé como garantia dos direitos da humanidade. De que fé estará Wilson falando? De alguma fé do homem em si mesmo – essa espécie de fé circular e improdutiva, que corresponde ao homem que tenta sair da areia movediça puxando-se pelos próprios cabelos? De uma fé abstrata na paz, na cooperação internacional, na solidariedade ou algo assim vago e inútil na hora do perigo? Certamente que não. Wilson não pode estar falando senão da fé cristã.
Com efeito, no site da Woodrow Wilson Library (a instituição que, tal como as libraries de todos os Presidentes americanos reúne os seus documentos e legado), um texto do historiador Cary Grayson, contemporâneo de Wilson, afirma: “O Sr. Wilson foi um dos mais devotos dos nossos Presidentes… Ele era um cristão militante.” Creio, diante disso, que se pode interpretar a referência de Wilson à fé, no trecho crucial que estamos aqui discutindo, não como uma observação lateral, surgida por acaso no meio de um texto sobre guerra e política, mas como um dos conceitos fundamentais do pensamento ali vazado, juntamente com “liberdade” e com “nação”. Fé, nação e liberdade são os sustentáculos da democracia, e a fé cristã especificamente (ao menos para os países cristãos), pois essa fé traz no seu centro a liberdade e essa fé foi, como nenhuma outra, criadora de nações. A fé cristã postula um poder acima do poder terreno, relativiza o poder político e o coloca em seu devido lugar. Ao contrário, o abandono da fé cristã tende a absolutizar o poder terreno e a retirar dos poderosos o freio à sua ambição. A fé estende uma mão externa capaz, somente ela, de puxar o homem da areia movediça do materialismo, servo da tirania.
A proposta de Wilson, portanto, não constitui uma conceituação geopolítica, mas uma visão civilizacional, uma filosofia do homem centrada na sua liberdade e na sua linha direta com a transcendência. O mundo seguro para a democracia é o mundo aberto ao homem na integridade da sua eterna busca.
Comecei estas linhas para falar do BRICS. E na verdade é o que estou fazendo, por contraste, ao falar de Woodrow Wilson. Pois o BRICS e a ideia que agora o conduz, a de criar uma nova governança global, é o anti-Wilson. Que governança será essa, baseada na liderança de um país sujeito há sete décadas ao poder contínuo e crescente de um regime de partido único, o Partido Comunista Chinês, com sua ambição cada vez menos disfarçada de mudar a hegemonia mundial, e de um outro país cujo líder, Vladimir Putin, responde por crimes contra a humanidade após invadir de forma bárbara e cínica um país soberano para tomar-lhe a terra e a liberdade? A partir dos projetos desses dois condutores, devemos acreditar que o BRICS pretende construir uma governança mundial “mais democrática”? Como podem ditaduras construir qualquer coisa mundial que se chame “democrática”? Somente como escárnio e cinismo podemos entender essa alegação. O BRICS quer construir um mundo seguro para o totalitarismo. Nada menos. E por isso um país como o Brasil, cujas instituições estão hoje atarefadas erguendo o imenso edifício prisional que denominam, orwellianamente, “Estado democrático de direito”, sente-se hoje tão à vontade no BRICS. Pois o avanço do BRICS e sua “nova governança” está criando um mundo cada vez mais confortável para corruptos, terroristas, traficantes de drogas e de crianças, traficantes de órgãos e de sentenças, cartéis criminosos de toda espécie, juristocratas e cleptocratas. Um mundo cada vez mais seguro e promissor para o corruptariado.
Cada um com seus ideais, não é mesmo? Mas ainda há alguém disposto a combater pelos ideais enunciados por Wilson? Sim, há, e esse combate começa por perceber as correntes do mal que o BRICS promove e configura.
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