Sobre soltura de André do Rap, Erasmo de Rotterdam dá uma pista: foi uma interpretação louca

20/10/2020 16:56 Atualizado: 20/10/2020 16:56

Por  Sergio de Mello, Instituto Liberal

Um caso que ganhou bastante espaço na mídia por sua estranheza foi a soltura de André do Rap, chefe do PCC, decretada pelo ministro Marco Aurélio do Supremo Tribunal Federal.

De fato, atuo na Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina há longos e diuturnos seis anos e juro que, entre as decisões judiciais mais estranhas que já vi, essa pode ser considerada uma delas. Não sei se o que a moveu foi inteligência, puro livre-arbítrio ou vaidade. Erasmo de Rotterdam diz que foi pela vaidade.

De novo o artigo 316 do Código de Processo Penal causando suas celeumas.

E agora uma delas, vindo justamente do Supremo Tribunal Federal.

O grande problema que já estava criado na comunidade jurídica era a correta interpretação do texto do art. 316 do Código de Processo Penal, que está assim redigido:

Art. 316. O juiz poderá, de ofício ou a pedido das partes, revogar a prisão preventiva se, no correr da investigação ou do processo, verificar a falta de motivo para que ela subsista, bem como novamente decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem. Parágrafo único. Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal.

Primeiramente, as explicações jurídicas, as quais passo a deduzir.

Esse texto não é velho, não vem desde quando o código veio ao mundo jurídico com a sua vigência em 1941. O Pacote Anticrime, de Sergio Moro, da Lei n. 13.964, de 2019, modificou o texto para nele incluir a necessidade de o juiz, a cada 90 dias, reanalisar a prisão preventiva já decretada, soltando o preso ou mantendo-o no cárcere enquanto não vem julgamento definitivo do caso.

A necessidade de manutenção ou não da prisão preventiva vem do princípio de que ninguém pode permanecer preso muito tempo ou indefinidamente sem julgamento. Aliás, a corroborar isso, o juiz ou tribunal, para revogar a prisão preventiva, pode fazê-lo sem qualquer pedido da defesa ou do Ministério Público. De ofício, jamais pode decretá-la. É o estado de liberdade de um indivíduo que pode estar preso sem ser culpado.

Marco Aurélio, em decisão em habeas corpus (n. 191.836, de São Paulo), monocraticamente, ou seja, sem o colegiado ainda, por força de pedido de liminar feito pela defesa no citado remédio heroico, entendeu que o prazo de 90 dias tinha se esvaído sem que o juiz ou tribunal tenha reanalisado a necessidade de manutenção da prisão de André. Daí a soltura imediata, entendendo haver ilegalidade flagrante e excesso de prazo.

Por pertinente e ilustrativo, transcrevo a parte que para mim é a mais importante da decisão e para concluir o sentido desse texto:

Apresentada motivação suficiente à manutenção, desde que levado em conta o lapso de 90 dias entre os pronunciamentos judiciais, fica afastado constrangimento ilegal. O paciente está preso, sem culpa formada, desde 15 de dezembro de 2019, tendo sido a custódia mantida, em 25 de junho de 2020, no julgamento da apelação. Uma vez não constatado ato posterior sobre a indispensabilidade da medida, formalizado nos últimos 90 dias, tem-se desrespeitada a previsão legal, surgindo o excesso de prazo.

O imbróglio é saber se o mero ultrapassar de 90 dias do prazo de reanálise já é ou não capaz de gerar ilegalidade flagrante e soltura imediata. Para mim, não. Não é o que vejo acontecendo na grande maioria dos casos. No caso de André, sua prisão foi reanalisada quando do julgamento da apelação em 25 de junho de 2020, entendendo haver motivo para ainda segregá-lo. Dali em diante, porém, Marco Aurélio entendeu que 90 dias já tinham se passado.

De outra parte, Sua Excelência o Ministro considerou que André ainda não tinha culpa formada simplesmente pelo fato de seu processo ainda não ter encerrado definitivamente. A culpa formada vem pelo julgamento em primeira instância. Geralmente, já se forma a culpa com o fim da audiência de instrução e julgamento, depois de colhidas as provas contra o acusado. Daí em diante descabe falar em excesso de prazo na formação da culpa.

Ou seja, se depois de colhidas as provas houver sinais de que o réu é inocente, cabe sua soltura. Caso contrário não.

Um exemplo eloquente disso é a Súmula 21 do STJ: Pronunciado o réu, fica superada a alegação do constrangimento ilegal da prisão por excesso de prazo da instrução.

De mais a mais, prazos em processo penal não são, digamos, nem um pouco “cartesianos”, justificando um certo temperamento para impedir solturas em excesso.

Consoante o Superior Tribunal de Justiça, os prazos processuais previstos na legislação pátria devem ser computados de maneira global e o reconhecimento do excesso deve-se pautar sempre pelos critérios da razoabilidade e da proporcionalidade (art. 5º, LXXVIII, da Constituição da República), considerando cada caso e suas particularidades (RHC n. 117.338/RJ, rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, j. em 30/6/2020).

Ainda, é de se destacar que o próprio texto legal permite a conclusão de que somente quem decretou a prisão é que pode reanalisá-la; não tribunal de justiça local ou superior, como o Supremo Tribunal Federal ou o Superior Tribunal de Justiça. Claro que, em havendo omissão do juiz, o habeas corpus é plenamente cabível para que o STF ou o STJ apliquem a lei; mas não foi o caso, posto que no julgamento da apelação, em 25 de junho de 2020, foi reanalisada a questão de sua prisão para mantê-la.

Logo, ultrapassado o prazo de 90 dias, a consequência é que gera o direito de exigir a análise da manutenção ou não da prisão, não a soltura automática.

Erasmo de Rotterdam, humanista do XVI, em Elogia da loucura, sobre a loucura dos jurisconsultos, diz que, entre os eruditos, os jurisconsultos ocupam o primeiro lugar, não havendo ninguém mais vaidoso do que eles.

Sergio de Mello

Defensor Público do Estado de Santa Catarina.

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As opiniões expressas neste artigo são as opiniões do autor e não refletem necessariamente as opiniões do Epoch Times