O Ocidente está sofrendo de uma Síndrome de Estocolmo civilizacional. Trata-se talvez de uma nova etapa na tendência autodestrutiva que, segundo a brilhante análise de James Burnham (Suicide of the West, 1964), o Ocidente adquiriu pela mão falsamente suave do liberalismo.
Hoje, destuindo-se a cada dia pela própria vontade e insanidade, o Ocidente renuncia à própria alma e – como no mundo das ideias inexiste o vácuo – passa a funcionar segundo os parâmetros e propósitos de uma outra civilização, a sino-marxista. O Ocidente orientaliza-se – mas não com a sabedoria espiritual do Oriente nem com sua estética, e sim com o totalitarismo do PCCh. É cada vez mais como se o seu corpo – e seu espírito – estivesse ocupado por um “alien” que se alimenta de suas entranhas, que não o mata, mas – muito pior – o põe ao seu serviço. Pois uma coisa é sofrer uma derrota material e ao mesmo tempo guardar seus próprios ideais e crenças, preservando-os para um amanhã de ressurgimento possível – como tantos povos fizeram ao longo da história. Outra coisa é entregar suas crenças sem luta, suas famílias e seus lares, queimar os próprios altares e adotar a essência civilizacional do estranho.
Recentemente visitei o Williams College, uma das mais tradicionais universidades americanas, fundada em 1792. Entre tantos aspectos de sua arquitetura de dezenas de prédios na maioria neoclássicos, admirei, não sem tristeza e nostalgia, a fachada vitoriana de uma bela construção cheia de colunas, que abriga parte dos cursos de “humanas”, em cujo frontão estão gravados em pedra os nomes: Aristotle – Virgil – Aquinas – Dante – Shakespeare. Grécia, Roma, o cristianismo na teologia e na literatura, e a reinterpretação moderna de tudo isso pela arte do poeta que abre na civilização ocidental a vertente britânica que está na origem daquele prédio, daquela universidade, e daquele conceito de universidade, o de “Liberal Arts College”, onde as pessoas vão – ou iam – justamente para aprofundar-se no conhecimento da sua civilização, para somente depois irem estudar em escolas especializadas e formarem-se médicos, advogados e engenheiros. Aristóteles, Virgílio, Tomás de Aquino, Dante Allighieri e o bardo de Stratford. Filosofia grega, direito romano e fé cristã, o famoso trio ocidental, porém não estático, e sim produtivo, recriativo, com seu gênio caleidoscópico. Nesses nomes uma bela síntese da aventura ocidental, cinco escritores (em algum lugar já mencionei que o Ocidente é, antes de tudo, um projeto literário), essa abertura sempre aberta para o mundo e para a própria descoberta, sempre rediscutindo-se a si mesma e renovando-se, inquieta, centrada não no poder mas no logos, pesquisadora da verdade – não somente a verdade utilitária mas a verdade transcendente, aquela que “se alcança pelo inalcançável” segundo a fórmula de Nicolau de Cusa, no permanente diálogo entre o mundo ideal e o real, entre o humano e o divino.
Se o prédio fosse construído hoje, que nomes traria? Certamente nenhum dos que estão ali. Talvez o trio Marx – Mao – Marcuse, que os estudantes da “primavera do nada” gritavam em maio de 1968, naquele início de revolução cultural ocidental (inspirada na revolução cultural chinesa?) que nos envenena até hoje. Talvez Voltaire, para simbolizar a implantação do totalitarismo ateu no espírito ocidental pela arrogância mesquinha e hipócrita do “iluminismo”. Mas no frontão do novo Ocidente poderia também estar gravado o nome de Guan Zhong.
Um dos expoentes da chamada “escola legalista” do pensamento chinês, Guan Zhong viveu no Século VII a.C., foi chanceler e ideólogo/estrategista dos imperadores do Estado de Qi, um reino da dinasta Zhou. Os princípios da escola legalista, registrados no Guan Zi atribuído ao próprio Guan Zhong, bem como em outras obras como as de Han Fei Zi e as do chamado Lord Shang, incluem:
– “O soberano é o criador da lei, os funcionários são os seguidores da lei e o povo é o súdito da lei.”
– “O governante deseja ter mais pessoas para o seu uso… O governante ama o povo porque este lhe é útil”.
– “Sob um governo perfeito, cônjuges e amigos não podem recusar-se a denunciar os crimes uns dos outros nem acobertá-los.”
– “O governante sábio obriga todas as pessoas a escutar por ele e vigiar por ele. Ninguém pode esconder-se dele nem conspirar contra ele.”
– “Um estado bem governado tem nove punições para cada prêmio. Um estado fraco com nove prêmios para cada punição.”
Retirei essas citações do livro de Steven Mosher, Bully of Asia (Washington, Regnery, 2017), mas o conjunto do Guan Zi, bem como as obras atribuídas a Han Fei Zi e ao Lord Shang, constituem um assombroso e ao mesmo tempo fascinante repositório de um pensamento que, apesar do anacronismo, somos tentados a qualificar de maquiavélico, baseado no simples desejo do poder pelo poder, sem qualquer subordinação ao mundo dos ideais éticos e que faz de seus autores verdadeiros precursores do totalitarismo moderno. Segundo importantes estudiosos, como Zhengyuan Fu (Autocratic Tradition and Chinese politics, New York, CUP, 1993), os princípios e visão de mundo da escola legalista são um dos pilares da atual China comunista, junto com o marxismo, exatamente pela convergência e total compatibilidade entre ambos.
Não se trata aqui de desmerecer ou qualificar de totalitária toda a riquíssima e complexa história do pensamento chinês. Ao contrário, as escolas confuciana, taoísta e budista de diferentes maneiras, mostraram-se sempre adversárias do totalitarismo estatal, sempre procuraram limitar o poder dos soberanos e inscrevê-los no quadro do bem comum e dos valores mais elevados, desde as dinastias Xia e Han até os tempos atuais. Em recentes protestos contra a imposição ilegal da ditadura comunista de Pequim em Hong Kong, por exemplo, os manifestantes utilizavam o slogan 天灭中共 ,“O Céu Destruirá o Partido Comunista Chinês”, uma referência à doutrina confuciana segundo a qual um soberano somente se mantém enquanto assim o quiserem as forças celestes do bem, podendo perder o “mandato do céu” e cair em desgraça se governar de maneira injusta e oprimir o seu povo.
Permito-me acrescentar que eu próprio, leitor desde muito tempo fascinado pelos principais textos taoístas, já tive a oportunidade de citar, a respeito das pretensões de hegemonia global do comunismo chinês, o poema 29 do Tao Te Ching, que diz, na tradução ao inglês de Addiss e Lombardo que retraduzo aqui: “Tentando controlar o mundo? Vejo que não conseguirás. O mundo é um vaso espiritual, e não pode ser controlado.”
Assim, podemos argumentar que a civilização chinesa proporciona bases espirituais e filosóficas nutritivas para a liberdade, análogas ao cristianismo e à filosofia grega no Ocidente, mas o regime comunista optou justamente por valorizar e seguir unicamente aquela vertente do passado chinês que o reforça e legitima em sua sanha ditatorial, a escola legalista.
Mas não só na China a tradição totalitária dos legalistas, repaginados pelos marxistas, está vigorosa, vivendo um “rejuvenescimento” nacional que não é senão o aprofundamento do totalitarismo original da revolução maoísta pelos meios tecnológicos. O grande problema é que o Ocidente democrático e capitalista está ficando com cara de Guan Zhong. A elite intelectual e política do Ocidente, de maneira irresponsável, está abandonando todos os alicerces da “democracia” que ela ainda diz defender. Abandonou os critérios da verdade e da justiça, substituídos pela lei do poder. Seguindo o preceito de Guan Zhong, o soberano (no caso, o “consenso global” difuso que hoje nos domina) faz a lei, seus funcionários (governos eleitos sabe-se como, classes políticas corruptas, burocratas internacionais, mídia comprada) a executam, e o povo a sofre. Na tirania pandêmica e na sandice climática vemos que o Ocidente está pronto para assumir-se totalitário. Na ascensão desimpedida da China comunista, vemo-lo incapaz de formular qualquer argumento em sua própria defesa. Fala-se de “nova guerra fria”, mas isso não existe. Durante a Guerra Fria o Ocidente conseguia mostrar por que sua civilização baseada na liberdade era melhor do que o projeto comunista soviético. Hoje, nenhum “democrata” consegue dizer por que devemos preferir a democracia ao “socialismo com características chinesas”. Expulsaram a Deus achando que ficaríamos mais livres, mas na verdade estão nos tornando servos do velho despotismo oriental “rejuvenescido” pelo controle facial, pelo sistema de pontos sociais e outras maravilhas totalitárias.
Lula, sua visita à China, os já famosos “acordos Xi Jin-Pinga”, são apenas um novo capítulo da Síndrome de Estocolmo ocidental. (Observe-se, não obstante, a coincidência de que Estocolmo é justamente uma das pouquíssimas capitais que estão resistindo à Síndrome de Estocolmo, como se vê na decisão do governo sueco de fechar os “Institutos Confúcio” no país, células de doutrinação ideológica do PCCh). Lula foi acolhido e abraçado pelas lideranças teoricamente democráticas do Ocidente, que ignoraram seu extenso currículo na corrupção, na construção do narco-socialismo latinoamericano, no apoio ao totalitarismo sino-marxista e ao terrorismo. Agora, parecem achar ruim quando Lula coloca o Brasil a serviço da China. O que esperavam?
Não esperavam nada. As atuais lideranças do Ocidente, no fim do dia, admitem que não acreditam mesmo naquilo que deveriam defender e vão para casa, tratar de encontrar o melhor posto possível na burocracia do novo império chinês.
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