Transplantes de órgãos e escassez, inovação e política

02/03/2017 15:39 Atualizado: 20/12/2017 20:44

Todos nós queremos viver muito tempo. E sempre com boa saúde.

A sociedade moderna e a tecnologia médica moderna transformaram a perspectiva de uma vida bíblica de setenta ou mais anos, que costumava ser improvável, numa possibilidade não incomum, mas bastante provável e normal.

Mas chegar lá nem sempre é tão excitante. E sustentar a vida depois dos 70 requer mais e mais cuidados e manutenção (frequentemente de alta tecnologia).

Estamos ultrapassando nossas especificações de design. Nossos órgãos – coração, rins, olhos, pulmões e fígado – estão sujeitos a desgaste. Às vezes o dano é genético; às vezes é autoinfligido (tabagismo, álcool). O resultado é o encurtamento da vida e a busca por extensores de vida é implacável: primeiro paliativo (parar de fumar/beber), depois cirúrgico (ponte de safena) e finalmente heroico (substituição de órgãos).

O primeiro transplante cardíaco foi realizado em Cape Town, África do Sul, em dezembro de 1967 por Christiaan Barnard. Para aqueles de nós engajados na mídia 50 anos atrás, a operação foi milagrosa. Mas isso abriu a clássica “caixa de Pandora” de complexidades.

Transplantes não são métodos corretivos infalíveis. Porque nem todos têm um gêmeo idêntico disposto a doar um órgão, uma “correspondência” satisfatória deve ser encontrada, e o receptor do órgão deve lidar com as preocupações de rejeição e drogas antirrejeição. Por exemplo, apenas 54% dos transplantes de rim duram 10 anos. Em seguida, outro rim é necessário.

A oferta é limitada. Os receptores precisam de órgãos saudáveis, que são cada vez mais escassos. As regras clássicas de “oferta e demanda” se aplicam. Pessoas jovens e saudáveis geralmente não morrem. Ou eles morrem em acidentes que impedem a obtenção de órgãos adequados em tempo hábil. Ou morrem de overdose de drogas que tornam seus órgãos questionáveis. Extensas listas de espera surgiram, com conselhos médicos fazendo escolhas agonizantes em relação ao ordenamento na lista, o grau de debilidade do receptor em espera, a compatibilidade de um órgão disponível, etc.

Mas ninguém quer morrer na fila de espera.

Esse impasse inspirou uma hábil ficção científica: “organlegging“, um termo criado pelo autor de ficção científica Larry Niven, que postula um século 21-22 em que pessoas saudáveis são sequestradas e têm seus órgãos extraídos para aqueles dispostos a pagar o preço.

Felizmente, soluções tecnológicas continuam sendo buscadas e desenvolvidas. Não num futuro hipotético, mas razoavelmente próximo. Essas soluções incluem:

Impressão tridimensional de órgãos. O potencial para essa impressão “tridimensional”, primeiro da pele e depois de órgãos “simples” (rim, fígado), está sendo intensamente pesquisado. A pele humana, usando as células-tronco do doador para eliminar a rejeição, é projetada para vítimas de queimadura. A mídia The Economist conjectura que os primeiros rins e fígados possam surgir dentro de seis anos.

Cultivar órgãos para transplante. Muito recentemente, cientistas conseguiram desenvolver células humanas em embriões de porco – um primeiro passo na criação de fígados e outros órgãos dentro de animais, em última instância para uso em transplante. Espera-se que os protetores dos animais não protestem.

No entanto, os efeitos da abertura da caixa de Pandora são problemas imediatos hoje.

Como exemplo ilustrativo, a conferência de 7-8 de fevereiro pela Pontifícia Academia de Ciências do Vaticano abordou o tráfico de órgãos e o turismo de transplantes. Sujeito à intensa controvérsia foi o convite e a apresentação de altos funcionários político-médicos chineses. O ex-vice-ministro da saúde, Dr. Huang Jiefu, e seu colega Dr. Haibo Wang defenderam vigorosamente as políticas chinesas de transplante e os progressos que Pequim alcançou no cumprimento das normas éticas internacionais.

Eles não foram totalmente convincentes. O Dr. Huang insistiu que Pequim estava aderindo à regulamentação contra o uso de doadores involuntários. Ele disse que não há “turistas de transplantes” sendo acomodados para recepção de órgãos. No entanto, ele não estava disposto a negar o uso de órgãos de prisioneiros executados (cuja disposição para doar seria severamente questionável). Como em declarações anteriores Huang admitiu a extração de órgãos de prisioneiros, suas alegações atuais de pureza foram recebidas com ceticismo.

Por sua vez, o Dr. Wang declarou a impossibilidade de policiar “um milhão de centros médicos e três milhões de médicos licenciados”. Mas, maliciosamente, Wang sugeriu que a Organização Mundial de Saúde formasse uma força-tarefa global para ajudar a impedir o tráfico ilícito de órgãos. Maliciosamente porque a chefe atual da OMS é a chinesa Dra. Margaret Chan, que endossou o processo da China de reforma de seu sistema de transplante de órgãos.

Embora qualquer revisão dirigida pela OMS exija inspeções “em qualquer lugar, a qualquer momento” por um grupo de médicos especialistas, realisticamente, esse acesso intrusivo é totalmente impossível num regime comunista.

Uma faceta saliente é que, enquanto o Papa Francisco rejeita veementemente a extração de órgãos, chamando-a de uma “nova forma de escravidão”, o Vaticano está manobrando para melhorar suas relações com Pequim. Rompidas em 1951, o Vaticano quer voltar a se reengajar com os aproximadamente 12 milhões de católicos chineses e recuperar o controle sobre a hierarquia religiosa católica na China.

Não apenas os cínicos sugerem conflitos entre política e medicina ética.

David T. Jones é um oficial de carreira sênior aposentado do serviço estrangeiro do Departamento de Estado dos Estados Unidos que publicou inúmeros livros, artigos, colunas e análises sobre questões bilaterais estadunidense-canadenses e política externa em geral. Durante sua carreira de mais de 30 anos, seu foco foram questões político-militares, servindo como conselheiro de dois generais do Exército. Entre seus livros, está ‘Alternative North Americas: What Canada and the United States Can Learn from Each Other