Uma matéria jornalística revelou o funcionamento perverso das missões de médicos cubanos na Venezuela, promovidas como uma amostra do compromisso humanitário de Cuba com o resto do mundo, em particular com os excluídos que não têm acesso a uma saúde de qualidade, mas que na verdade funciona com objetivos muito diferentes dos proclamados.
De acordo com um artigo publicado pela Wharton School da Universidade da Pensilvânia, em 2015 havia 37 mil profissionais de saúde cubanos trabalhando em 77 países. Citando funcionários cubanos não identificados, o documento alega que esses profissionais geraram cerca de 8 bilhões de dólares em divisas no ano de 2017 para o governo da ilha.
O jornal argentino Infobae entrevistou dois médicos cubanos que passaram vários anos naquele país como parte desses programas que trocam saúde por dinheiro e petróleo e que, depois que descobriram a fraude que é o programa, desertaram. Outros relatórios jornalísticos anteriores também descrevem essa realidade.
A participação nesses programas não é forçada, no entanto, muitos profissionais se vêm obrigados a se inscrever na esperança de obter renda adicional e sair da pobreza absoluta em que vivem.
“Em Cuba, um médico recém formado ganha cerca de 40 dólares por mês, que não é suficiente para viver. Sapatos para trabalhar custam 30 ou 40 dólares, ou seja, para comprá-los você precisa gastar um salário inteiro”, conta Miguel Guerrero Fernández.
Fernández, com 26 anos, formou-se recentemente e então decidiu se inscrever em sua primeira e única missão. Isso ocorreu em outubro de 2014.
“Como me disseram que iriam me pagar 200 dólares, fiquei mais do que satisfeito. Eu ia melhorar economicamente e cobrir todas as despesas da minha família”, relata Alioski Ramires, que estudou em Holguín. Ele se apresentou para o programa em 2008 e partiu em 2011 para sua primeira missão.
Um regime de escravidão
No entanto, uma vez que você está dentro do programa, as coisas ficam muito tristes.
“Uma vez dentro, os médicos se tornam prisioneiros. Eles devem cumprir um contrato de 3 anos, sem a possibilidade de rompê-lo, e só podem retornar a Cuba por razões de extrema gravidade, como a morte iminente de um parente direto ou uma doença perigosa. O regime de trabalho é de escravidão. Alguns trabalham todos os dias em turnos de 24 horas, o que resulta em semanas com entre 70 e 90 horas trabalhadas. Além disso, podem trabalhar até 14 meses ininterruptos sem férias”, diz Guerrero.
Pelo sistema de missões na Venezuela já passaram mais de 10 mil profissionais nos últimos anos.
Guerrero foi recebido no aeroporto por autoridades cubanas que o levaram para o município de Guacara, em Carabobo, onde trabalhou 19 meses em um posto de saúde localizado em uma área rural.
“As condições ali eram péssimas”, recorda. “O estado da casa era incrivelmente desastroso. Havia superlotação: éramos 17 pessoas e dormíamos em quartos pequenos, com vários beliches, como se fosse um quartel. Praticamente não havia água e a eletricidade faltava o tempo todo. Era deprimente.”
Alioski Ramires é o outro médico entrevistado pela Infobae. Ele também se formou em Holguín. Apresentou-se para o programa em 2008 e partiu em 2011 para sua primeira missão.
“A pressão por parte dos governos de Cuba e da Venezuela é muito forte. Isso te leva a trabalhar desmotivado”, diz Ramires, que passou três anos ocupando diferentes cargos em Cojedes. Ele passou 15 meses trabalhando em um posto de saúde, depois administrou um centro médico e, finalmente, serviu como coordenador educacional do Estado.
A oportunidade de escapar ou ser delatado
Ali todos os médicos estão sujeitos à lógica totalitária. Todos devem cumprir um regulamento rigoroso para essas missões:
“O objetivo é fazer com que se sintam permanentemente vigiados por seus superiores e seus pares. Sabendo que muitos podem ficar tentados a aproveitar a oportunidade de estar em outro país para escapar, uma das regras, (…) determina que qualquer um pode ser punido se descobrir um “deslize” de um colega e não o denunciar. Isso estimula o medo e a traição”, conta Guerrero.
Entre as regras também estava restringir e controlar com quantos venezuelanos você podia se relacionar, e era proibido se casar com venezuelanos. Além disso, só podíamos ficar fora da casa até às 6 horas da tarde, quando então éramos obrigados a entrar, e se estivesse faltando alguém, éramos obrigados a denunciá-lo.
Ao mesmo tempo, os médicos são forçados a ser reprodutores da demagogia e da propaganda dos regimes ditatoriais de ambos os países.
“Uma das coisas que mais me decepcionou sobre a missão é que me obrigavam a fazer política. Eu tinha que dizer aos meus pacientes que, graças a Hugo Chávez, Nicolás Maduro e Raúl Castro, eles estavam recebendo saúde gratuita, o que é uma mentira, porque isso é cobrado do povo venezuelano”, disse Guerrero.
Além disso, durante os períodos eleitorais, os médicos têm atividades específicas, que podem ser consideradas uma grande interferência de Cuba na vida civil e democrática venezuelana.
“Nas eleições parlamentares de 6 de dezembro de 2015, nos obrigaram a procurar 10 pacientes que nos dissessem verbalmente que iriam votar no governo. Depois nos colocaram para inspecionar os centros de votação, e lá tínhamos que perguntar às pessoas em quem elas tinham votado. Eles nos deram um telefone para que reportássemos tudo o que estava acontecendo. Foi uma manipulação total”.
Por que a saúde oferecida aos venezuelanos não é gratuita?
Guerrero só precisou passar alguns meses na Venezuela para perceber que todo aquele discurso sobre a fraternidade entre os povos eram palavras vazias.
“As missões médicas são nada mais do que um enorme mecanismo de arrecadação de dinheiro para o regime castrista” em Havana.
Para maximizar os lucros, o governo cubano se vale de dois embustes. O primeiro é sofrido por seus próprios profissionais, de quem é tomada a maior parte do salário pago pela Venezuela.
“Eles nunca te dizem exatamente quanto o governo venezuelano paga ao governo cubano. Alguns dizem que são 4 mil dólares por mês, mas é difícil saber porque o pagamento é feito em barris de petróleo bruto. Eu recebia apenas 200 dólares”, disse Guerrero.
Todas as estimativas concordam que o regime cubano confisca quase 70% do salário de cada médico em missão. O incomum é que eles não o entregam diretamente ao profissional, mas o depositam em uma conta em Cuba, e um parente pode retirá-lo por lá. Para viver durante os anos que a missão dura, os médicos contam apenas com um estipêndio em bolívares que hoje equivale a cerca de 8 dólares no mercado negro. Menos ainda do que ganhavam trabalhando como médicos na ilha.
“Tínhamos que ir a todo lado pedindo favores aos venezuelanos”, diz Guerrero. Uma vez por mês, o governo nos vendia uma sacola com comida, que na época era chamada Mercal (depois substituídas pelas CLAP). Mas a comida só durava uma semana, no máximo duas. Então minha família tinha que me mandar 100 dólares e se manter com os outros 100.”
A segunda parte da fraude cubana é sofrida diretamente pelo povo e pela nação venezuelana.
“Somos ensinados a prevenir doenças, mas como Cuba cobra da Venezuela os serviços médicos que presta, por cada consulta feita, eu era obrigado a conseguir pacientes o tempo todo. Eu tinha que sair e procurá-los, levá-los ao meu consultório quase à força e propor um tratamento, mesmo que fosse apenas dar-lhes um comprimido que podiam tomar em casa, porque isso dá dinheiro a Cuba”, diz Guerrero.
Mas o golpe é ainda maior, é todo um processo de obter mais e mais dinheiro.
“Eles até me forçaram a inventar pacientes. Eu criava uma história, procurava um nome verdadeiro com documento de identidade venezuelano e inventava um paciente, porque se eu não o fizesse, diziam que me mandariam de volta para Cuba e não me pagariam o que me prometeram”.
A experiência de Ramires se mostra idêntica quando ele explica este mecanismo de roubo.
“A pressão dos líderes cubanos é para que façamos mais do que o possível, porque o governo recebe pela quantidade de atendimentos. Então, às vezes você tem que mentir e inventar pacientes. Não sei se o governo venezuelano está ciente disso, mas é o que acontece”.
Cuba contribuiu para a crise venezuelana atual
Finalmente, alguém falou claramente o que todos já sabem. Com uma mistura de indignação e vergonha que o faz mudar seu tom de voz, Guerrero oferece uma frase lapidar:
“Sinto que contribuímos para que a Venezuela chegasse à crise em que está neste momento. Todos colocamos um grãozinho de areia. Quando me dei conta de tudo isso, peguei minhas coisas e fui embora, porque não podia lidar com tantas mentiras e com tanta hipocrisia.”
A fuga
Guerrero fugiu em 3 de janeiro de 2016.
“Eu não poderia continuar enganando o povo venezuelano. Eu tinha tanta raiva por dentro que não queria voltar. O dia em que eu voltar deve ser para uma Cuba livre, com um sistema democrático”.
Ele conseguiu entrar nos Estados Unidos, ficar legalmente e receber sua esposa e filho graças à “Parole” (Cuban Medical Professional Parole), programa criado em 2006 que concedia quase automaticamente o asilo para médicos cubanos que escapam das missões. Barack Obama cancelou o programa em janeiro de 2017, juntamente com a política de “pés secos, pés molhados”, em meio ao processa de restauração das relações diplomáticas com Havana.
O vídeo abaixo mostra médicos cubanos que fugiram das missões médicas na Venezuela e que ficaram presos na Colômbia depois que o governo Obama suspendeu a “Parole”, programa criado em 2006 através do qual o asilo era quase automaticamente concedido para os médicos cubanos que fugiram das missões:
No caso de Ramires, depois que ele cumpriu a missão de três anos na Venezuela, foi enviado em 2014 ao Brasil, que também contratou muitos profissionais cubanos.
No Brasil eles pagavam um pouco mais, no entanto, assim como na Venezuela, você so fica com “30% do que o Brasil paga, já que Cuba fica com 70%”, diz Ramires.
Assim como Guerrero, Ramires também tomou uma decisão importante.
Diante da realidade de ficar com uma pequena parte do salário e da rejeição da possibilidade de voltar a Cuba ou ser enviado para outro destino, Ramires decidiu pedir asilo ao Brasil.
Milhares de médicos decidiram abandonar as diferentes missões e não voltar.
Então o governo cubano os castigou. Ele os considera desertores e os proíbe de regressar ao país por um período de oito anos. Quase ninguém realmente quer voltar a viver lá, mas, como muitos deixaram cônjuges e familiares, pedem que sejam autorizados a visitá-los.
Para divulgar sua realidade, alguns desses médicos criaram um grupo do Facebook chamado #NoSomosDesertores #SomosCubanosLibres. O grupo já possui mais de 9 mil membros. Muitos deles não são profissionais de saúde, mas de outras disciplinas, que assim como os outros, aproveitaram sua participação em missões e viagens oficiais para escapar de Cuba.
“Graças a uma decisão arbitrária do regime cubano, temos que permanecer fora do país por oito anos”, diz Ramires.
“Mas nós não cometemos nenhum crime, só tomamos a decisão de ser livres”, conclui Ramires, que ainda tem duas filhas, seus pais e um irmão vivendo na ilha.
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