A escuridão do regime venezuelano cobre o Haiti

Crise do Petrocaribe fez com que o Haiti sofresse com cortes de energia e protestos que podem levar à desestabilização do país caribenho

26/05/2019 16:35 Atualizado: 26/05/2019 16:35

Por Josefina Blanco

O Haiti se parece cada vez mais com a Venezuela, aquela Venezuela que está parecendo cada vez pior para o Haiti. Desde meados de abril, os haitianos — assim como os venezuelanos — estão sofrendo com cortes de energia e escassez de combustível. A ironia dessa situação é que a responsabilidade por essa crise energética no país caribenho se deve à cessação do Petrocaribe, um programa de subsídios ao petróleo implementado em 2005 pelo regime de Hugo Chávez.

Agora que a Venezuela está mergulhada em uma profunda crise social, política e econômica, e a produção de petróleo do país com as maiores reservas do mundo caindo abruptamente, o sucessor de Chávez, Nicolás Maduro, não pode mais enviar bilhões de dólares em petróleo subsidiado aos países da América Central e do Caribe.

Em certo período, o Haiti estava recebendo aproximadamente 60 mil barris de petróleo por dia da Venezuela em condições favoráveis. Mais da metade dos custos do petróleo foram pagos em 25 anos a uma taxa de juros de 1%, o que permitiu ao governo haitiano usar essa economia imprevista para, supostamente, alcançar o desenvolvimento econômico do país.

Em troca, o Haiti apoiou de maneira confiável o regime venezuelano em fóruns regionais como a Organização dos Estados Americanos (OEA).

Só que agora as trevas da Venezuela rondam o Haiti. A falta de subsídios do Petrocaribe no terreno já tirou a eletricidade do Haiti, e tem sido o gatilho para fortes protestos que desestabilizaram o já instável país caribenho, um dos mais pobres do continente, e que até mesmo mereceram a presença dos capacetes azuis da ONU.

Em 6 de julho de 2018, o presidente Jovenel Moïse tentou eliminar os subsídios aos combustíveis e aumentar os preços de vários produtos petrolíferos de 38% para 51%, o que levou os cidadãos a irem às ruas por todo o país pedindo a renúncia do presidente.

Moïse teve que reverter a medida e desde então o Fundo Monetário Internacional (FMI) ofereceu um empréstimo de 96 milhões de dólares a juros baixos. No entanto, isso não acalmou a população.

No final de janeiro deste ano, um alto tribunal administrativo do Haiti preparou um relatório muito crítico sobre a gestão dos fundos do Petrocaribe. De acordo com o documento, dos mais de 2,2 bilhões de dólares orçados durante os seis governos auditados, apenas cerca de 1,7 bilhão foram justificados, o que representa uma lacuna de 500 milhões.

O tribunal questionou as ações de 15 líderes políticos e altos funcionários, entre 2008 e 2016, por esse possível desfalque. O escândalo inclui primeiros-ministros e presidentes, e Moïse, apesar de não ter funções políticas naquele período, aparece no relatório por seu papel como empresário, segundo o France 24, em artigo publicado em março de 2019.

Segundo a auditoria, dos 409 projetos documentados, é evidente que muitos foram superfaturados ou abandonados. “Trechos de estrada, uma pequena escola, um viaduto foram construídos e agora não há nada mais concreto”, disse o jornalista haitiano Valéry Daudier.

Enquanto isso uma investigação do Senado do Haiti descobriu que mais de 2 bilhões em lucros do programa Petrocaribe haviam sido desperdiçados ou roubados.

Esses relatórios, somados à profunda crise que parece não querer deixar o Haiti, desencadearam uma onda de protestos, o que gerou o alarme da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Em 27 de fevereiro, em um comunicado, a CIDH expressou sua “preocupação” com a “escassez” de produtos básicos que atingiram o Haiti na esteira da crise, e também informou que a turbulência registrada naquela época deixou pelo menos 26 mortos e 77 feridos.

Manifestantes fogem enquanto a polícia haitiana dispara durante confrontos no centro de Porto Príncipe, capital do Haiti, em 13 de fevereiro de 2019. Este é o sétimo dia de protestos contra o presidente do país, Jovenel Moïse, e o uso indevido do fundo Petrocaribe (HECTOR RETAMAL / AFP / Getty Images)2 Manifestantes fogem enquanto a polícia haitiana dispara durante confrontos no centro de Porto Príncipe, capital do Haiti, em 13 de fevereiro de 2019. Este é o sétimo dia de protestos contra o presidente do país, Jovenel Moïse, e o uso indevido do fundo Petrocaribe (HECTOR RETAMAL / AFP / Getty Images)
Manifestantes fogem enquanto a polícia haitiana dispara durante confrontos no centro de Porto Príncipe, capital do Haiti, em 13 de fevereiro de 2019. Este é o sétimo dia de protestos contra o presidente do país, Jovenel Moïse, e o uso indevido do fundo Petrocaribe (HECTOR RETAMAL / AFP / Getty Images)2 Manifestantes fogem enquanto a polícia haitiana dispara durante confrontos no centro de Porto Príncipe, capital do Haiti, em 13 de fevereiro de 2019. Este é o sétimo dia de protestos contra o presidente do país, Jovenel Moïse, e o uso indevido do fundo Petrocaribe (HECTOR RETAMAL / AFP / Getty Images)

“As pessoas pedem contas sobre o Petrocaribe, há suspeitas de excesso de faturamento” e de que o programa tenha servido como “mecanismo de corrupção” para as elites haitianas, disse Daudier.

O agravamento da crise econômica também causou abalo nos níveis mais altos do governo haitiano. Em março, os deputados no Parlamento demitiram o primeiro-ministro Jean Henry Ceant, depois de aprovar uma moção de desconfiança contra ele pela falta de resposta à crise econômica.

Isso forçou o presidente do Haiti em 9 de abril a nomear Jean-Michel Lapin como o novo primeiro-ministro, tornando-se o terceiro a tomar posse nos últimos anos, o que denota a crise econômica e política em que se encontra o país, segundo informações da Agência EFE.

Mas os protestos contra a má gestão dos fundos do Petrocaribe continuaram. Em 26 de abril, cidadãos haitianos se manifestaram perante o Tribunal Superior de Contas para exigir a publicação do relatório final sobre irregularidades na gestão dos fundos do Petrocaribe.

A atividade foi convocada pelo movimento Nou Pap Dômi, grupo de cidadãos que lutam contra a corrupção e a impunidade, que exigiu que o supracitado tribunal publicasse o relatório antes do final de abril. No entanto, o tribunal anunciou que não seria possível apresentar a documentação até meados de maio. No entanto, o relatório não foi publicado.

Em meio a essa situação, em 12 de abril, o Conselho de Segurança da ONU encerrou sua missão policial no Haiti (Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti, Minujusth), que o organismo planeja substituir com um transição política, enquanto o governo desta nação repetidamente assegurou estar preparado para assumir a segurança.

A resolução adotada pelo Conselho de Segurança estenderá por um período final de seis meses, até 15 de outubro, o mandato do Minujusth, criado em 2017 para substituir a missão de paz, que está presente há 13 anos no país. Esta missão foi criada após a intervenção militar de fevereiro de 2004, que substituiu o então presidente Jean-Bertrand Aristide por Boniface Alexandre.

Essa resolução foi tomada depois que a alta comissária para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, pediu ao Conselho de Segurança das Nações Unidas que devolva ao Haiti o respeito aos direitos humanos e que apoie o país caribenho em seu retorno ao desenvolvimento democrático.

Bachelet lembrou que a situação de pobreza na qual o Haiti está afundado, agravada desde o terremoto de 2010, faz com que muitos de seus habitantes não tenham acesso a serviços básicos como saúde, água, eletricidade e educação.

A alta comissária ressaltou que desde julho do ano passado houve tumultos em Porto Príncipe que se tornaram cada vez mais violentos, com 60 mortes desde então, e um protesto entre 7 e 15 de fevereiro deste ano que “quase paralisou o governo” do país”.

Mas agora o Haiti deve suportar a situação de ter apenas três horas de fornecimento de eletricidade por dia. A atividade noturna foi paralisada devido à criminalidade que se aproveita da escuridão para agir, enquanto os postos de gasolina estão sem combustível, o que torna quase impossível para muitos haitianos irem trabalhar, fazer viagens ou levar seus filhos para a escola. E os hospitais são forçados a confiar em geradores de reserva.

A crise de combustíveis está contribuindo para levar a economia do Haiti perigosamente mais perto da recessão, observa ABC News. O crescimento do PIB em 2018 foi de 1,5%, menos da metade do que o governo esperava. Economistas dizem que o PIB provavelmente será o mesmo este ano. A inflação anual também atingiu uma estimativa de 14%, enquanto um litro de gasolina (aproximadamente 4,4 litros) é vendido no mercado negro por entre 6 e 12 dólares.

Dada esta situação, é uma questão de tempo até o Haiti explodir novamente.

O país mais pobre do continente, que já tem motivos suficientes para gerar um surto popular, é também afetado pela crise venezuelana.

Para o regime de Maduro, o Haiti não é Cuba, e não faz o que é indescritível para contornar as sanções dos Estados Unidos e fazer o petróleo chegar às costas do país de Castro. Mas como a Colômbia — embora por diferentes razões, como o tsunami migratório dos venezuelanos —, a empobrecida nação caribenha acabou sendo afetada pelo socialismo do século XXI, o grande desestabilizador da região e um mau exemplo para as nações pequenas e carentes que eles enganaram com uma utopia que os usava.

Embora o Haiti não possa ser comparado em tamanho, potencial ou recursos naturais com a Venezuela, carregar a bandeira de uma ideologia esquerdista demonstra o que essa ideologia pode fazer a um país.

Segundo o FMI, a taxa de inflação mais recente para o Haiti atingiu 14,9%, enquanto a da Venezuela atingiu 10 milhões. E em termos de PIB, o país caribenho planeja atingir 1,4%, enquanto o do país sul-americano cairá para -25%. Então quem está pior?

Este artigo foi originalmente publicado no jornal PanAm Post