“A culpa é das sanções!” — por que a esquerda continua perdida em relação à Venezuela

A moda agora é dizer que o colapso iniciado em 2007 foi causado por uma tímida sanção de 2017

11/02/2019 13:10 Atualizado: 11/02/2019 13:10

Kristian Niemietz, Instituto Mises Brasil

A maneira como determinados intelectuais ocidentais reagem aos resultados de experimentos socialistas é um fenômeno que pode ser dividido em três estágios.

Os três estágios do socialismo

O primeiro estágio é o da lua de mel, o período durante o qual o experimento — recentemente implantado — aparenta demonstrar algum sucesso inicial.

Dado que economias não são destruídas em um dia, a implantação de medidas socialistas em economias que ainda apresentam resquícios de capitalismo pode, no curto prazo, gerar algum bem-estar.

Este é o período durante o qual os intelectuais tecem loas e ressaltam quão sublime é o regime.

Passado algum tempo, a economia socialista inevitavelmente começa a degringolar. E o sonho começa a se esfacelar. Os fracassos do arranjo vão se tornando tão óbvios, que passam a ser constrangedores para a causa socialista.

E então começa o segundo estágio, caracterizado por justificativas e desculpas esfarrapadas que sempre se degeneram no famoso argumento da “falácia da privação relativa” (argumentação surgida na União Soviética), a qual sugere que o argumento do oponente deve ser ignorado simplesmente porque há problemas mais importantes no mundo.

Dado, porém, que a situação continua degringolando a uma velocidade crescente, surge então o terceiro e derradeiro estágio: a alegação de que o país em questão na realidade nunca foi realmente socialista.

“Aquilo nunca foi o verdadeiro socialismo!”, gritam desesperados estes intelectuais ocidentais, que ainda fazem questão de ressaltar que apenas um completo idiota, que não faz a mais mínima ideia do que realmente significa “socialismo”, pode dizer o contrário.

A Venezuela como exemplo

Todos os estágios acima foram explicitamente visíveis no fenômeno venezuelano.

No primeiro estágio, que durou quase uma década, praticamente toda a esquerda havia sido capturada pelo charme de Hugo Chávez e demonstrava uma paixão fervorosa pelo modelo econômico daquele país. Eram elogios copiosos e sem fim (e de toda a esquerda ao redor do mundo).

A versão venezuelana do socialismo era o exemplo mais brilhante possível do modelo; e era o modelo definitivo que o resto do mundo deveria copiar.

O elogio mais famoso ainda continua sendo o do famoso esquerdista americano, David Sirota, que escreveu um ensaio para a revista Salon intitulado “O milagre econômico de Hugo Chávez“. Eis um trecho:

Chávez se tornou o bicho-papão da política americana porque sua defesa aberta e inflexível do socialismo e do redistributivismo não apenas representa uma crítica fundamental à economia neoliberal como também vem gerando resultados inquestionavelmente positivos.

Quando um país adota o socialismo e se esfacela, ele se torna motivo de piada e passa a ser visto como um inofensivo e esquecível exemplo de advertência sobre os perigos de uma economia dirigida pelo governo. Porém, quando um país se torna socialista e sua economia apresenta o grande desempenho exibido pela economia venezuelana, ele não mais se torna motivo de piada — e passa a ser difícil ignorá-lo.

Já no segundo estágio, o melhor exemplo foi fornecido pelo escritor, comentarista e ativista britânico Owen Jones, que, ainda no início de 2014, disse que os problemas econômicos da Venezuela se deviam basicamente aos seguintes fatores: guerra civil na Colômbia (praticamente abolida em 2006), muitas armas na sociedade venezuelana (sendo que o governo já havia terminado de confiscar todas em 2012), uma polícia corrupta (algo que é comum na América Latina), e fato de que o governo venezuelano era amigo das ditaduras da Síria e da Líbia (essa dispensa comentários).

Já o terceiro estágio, que tende a ser o mais divertido, é farto em exemplos, que sempre geram piadas por causa de suas deliciosas contradições.

Ninguém menos que o supremo intelectual Noam Chomsky veio a público dizer que o regime da Venezuela — o mesmo que implantou controle de preços, estatizações, expropriação de propriedade privada, generosos programas assistencialistas e planejamento centralizado (ver aqui, aqui e aqui) — não tem absolutamente nada de socialista:

Eu nunca descrevi o modelo de capitalismo de Estado de Chávez como ‘socialista’; nem sequer insinuei algo tão absurdo assim. O regime não tinha nada a ver com o socialismo. O capitalismo privado permaneceu livre… Os capitalistas continuaram livres para solapar a economia de todas as maneiras, como por meio de uma maciça exportação de capital.

Ou seja, o socialismo só irá funcionar se ele for progredindo até chegar ao ponto do “socialismo total”. Qualquer outro arranjo que não seja o socialismo pleno — no qual não haveria uma única quitanda privada — é inaceitável. Nenhum esforço parcial será suficiente.

O mesmo raciocínio é também encontrado em um artigo do filósofo Slavoj Žižek intitulado “O problema com a revolução venezuelana é que ela não foi longe o bastante” (o título já resume tudo).

Ou seja, no derradeiro estágio, os intelectuais começaram a afirmar abertamente que o problema com a economia venezuelana nunca esteve no fato de milhares de empresas, fábricas, indústrias e até mesmo pontos de comércio terem sido confiscados e estatizados, de os direitos de propriedade terem sido abolidos, e de milhões de cidadãos terem sido destituídos de suas liberdades básicas. Não, o problema todo é que o regime venezuelano foi muito tímido, e por isso ainda não chegou ao “socialismo verdadeiro”.

Para resumir, eis como se deu a cronologia no caso da Venezuela:

• 2005-13: período da lua de mel
• 2013-15: justificativas, desculpas esfarrapadas
• 2015-17: um espaço entre dois períodos, caracterizado por um ensurdecedor silêncio gerado pela estupefação da realidade
• 2017-presente: o período do “aquilo não é o socialismo verdadeiro”

Nas últimas semanas, porém, os intelectuais ficaram tão desnorteados, que acabaram retornando ao segundo estágio. Ao menos nas redes sociais, passou a existir um consenso de que a economia da Venezuela seria hoje um sucesso estrondoso se não fosse a interferência externa de poderosas forças hostis (leia-se, capitalistas).

Atribuindo culpas e descobrindo novos fantasmas

O doutor Aaron Bastani, autor de Fully Automated Luxury Communism (Comunismo Luxuoso e Totalmente Automatizado), afirmou em seu Twitter que “Principalmente por causa das sanções, a economia da Venezuela encolheu 50% nos últimos cinco anos”.

Alguns minutos depois, estas sanções devem ter se intensificado, pois o doutor Bastani atualizou a importância relativa delas de “principalmente” para “totalmente”. Disse ele: “A queda no PIB (nesta escala histórica) é, sim, totalmente por causa das sanções”.

Em uma carta aberta publicada no jornal The Guardian, intelectuais e políticos britânicos do Partido Trabalhista falam sobre uma “tentativa de golpe liderada pelos Estados Unidos”, a qual é coordenada pelos “governos de extrema-direita de Trump e Bolsonaro”.

Quem lê o texto fica com a impressão de que não há absolutamente nenhuma oposição doméstica a Maduro.

Outra carta similar, porém mais explícita, assinada por Noam Chomsky (sim, ele está em todas), Mark Weisbrot e 68 outros acadêmicos americanos afirma que “Os Estados Unidos e seus aliados, incluindo… o presidente de extrema-direita do Brasil, Jair Bolsonaro, estão empurrando a Venezuela para o precipício.”

A carta diz que a culpa pelas várias crises da Venezuela é dos Estados Unidos — especialmente das, de novo, sanções.

Quase todos os nomes que assinam as duas cartas são familiares: antes de o socialismo venezuelano perder o seu charme, eram essas pessoas que se apresentavam como as mais dedicadas e esfuziantes tietes de Chávez e Maduro na “respeitada mídia ocidental”. Após um período de silêncio (para meditar, digerir a tragédia e reorganizar as forças), elas estão agora reacendendo a adormecida chama, provando que velhas paixões não enferrujam.

Mas exatamente quais são essas “sanções” que estão provocando essas recaídas nos chavistas?

A verdade sobre as sanções

Mesmo levando em conta as poucas que existem, sanções contra a Venezuela são um fenômeno totalmente recente.

Até meados de 2017, não havia nenhuma sanção econômica contra a Venezuela. Havia, isso sim, sanções pessoais contra alguns membros da alta hierarquia do governo venezuelano (sanções essas que envolviam congelamento de ativos e proibição de entrada nos Estados Unidos).

Desnecessário dizer que sanções deste tipo só podem afetar apenas os indivíduos almejados. Não há como elas terem um efeito sobre toda a economia venezuelana.

Foi somente em agosto de 2017 que o governo norte-americano implantou uma medida que pode ser razoavelmente considerada uma sanção econômica: cidadãos norte-americanos foram proibidos de comprar títulos do Tesouro venezuelano, bem como títulos emitidos pela PDVSA, a estatal petrolífera venezuelana. Um ano depois, isso foi estendido para outras estatais.

Entretanto, não há absolutamente nenhuma restrição ao comércio (ou, pelo menos, não do lado norte-americano). Se você é um cidadão norte-americano ou proprietário de uma empresa instalada nos Estados Unidos, você pode comercializar com a Venezuela o tanto que você quiser. Você pode vender comida, remédios, produtos sanitários, ferramentas, eletrônicos, maquinários ou qualquer outra coisa. A única coisa que você não pode fazer é comprar títulos do governo venezuelano.

Além de isso não ser, nem de longe, uma sanção absoluta, vale ressaltar que ela se aplica exclusivamente a cidadãos norte-americanos. Se você for, por exemplo, britânico, alemão, canadense, japonês ou francês, você pode se entupir de títulos do governo venezuelano (muito embora, por algum motivo insondável, nem os investidores britânicos, nem os alemães, nem os canadenses, nem os japoneses e nem os franceses estejam demonstrando grande apetite por esses títulos).

Agora, indo ao que interessa: a crise econômica da Venezuela começou muitos anos antes de estas ínfimas sanções sequer estarem sendo cogitadas.

Veja, por exemplo, este trecho de um artigo publicado pelo jornal britânico The Guardian (um jornal abertamente de esquerda) ainda no ano de 2007, quando a economia da Venezuela ainda aparentava robustez e toda a esquerda mundial venerava Chávez:

Não havia qualquer sinal de leite, ovos, açúcar e óleo de cozinhar. Onde eles estavam? […] Bem-vindo à Venezuela, uma economia pujante, mas curiosa. Uma escassez de alimentos está atormentando o país ao mesmo tempo em que as receitas de petróleo estão estimulando um grande aumento nos gastos. […] O leite desapareceu completamente das gôndolas. […] Ovos e açúcar também são apenas uma memória do passado.

Após uma grande contração econômica ocorrida em 2009 e 2010, Hugo Chávez decidiu declarar uma “guerra econômica” contra a burguesia do país, a quem ele acusou de “desestabilizar” o país. E então o regime venezuelano simplesmente aprofundou a implantação de exatamente todas as políticas defendidas pela ala da esquerda que se opõe a uma economia de mercado.

Foi um programa marcado por controle de preços, impressão desmedida de dinheiro, estatização de fábricas e de lojas (até mesmo hotéis foram estatizados), generosos programas assistencialistas, planejamento centralizado, e uma infindável retórica sobre igualdade, redução da pobreza e, acima de tudo, combate aos “neoliberais”.

Quanto a este último, o próprio presidente venezuelano Nicolás Maduro fez a gentileza de explicar tudo ao mundo: “Há dois modelos: o neoliberal, que destrói tudo; e o chavista, que é centralizado no povo”.

Desde então, a partir de 2013-2014, a economia venezuelana entrou em queda livre. De novo, veja o que diz o The Guardian nesta reportagem publicada em setembro de 2013:

A escassez de comida na Venezuela não apenas chegou ao seu ápice, como também nenhuma outra na história do país durou tanto tempo. […] O Banco Central da Venezuela publica um índice de escassez […] Os números para este ano estão em um nível similar ao de países que vivem uma guerra civil ou que passam por racionamentos típicos de períodos de guerra.

Isso, vale repetir, ainda em 2013. Em 2014, praticamente 5 em cada 10 venezuelanos (48%) estavam abaixo da linha da pobreza. Três anos depois, essa cifra já era de espantosos 87% (nove em cada dez).

Quando as sanções norte-americanas foram implantadas, em agosto de 2017, a economia já havia se contraído 33% em relação a 2014.

Para concluir

Apenas para deixar claro, sou um radical opositor de sanções econômicas. Governos não têm o direito de proibir cidadãos de transacionarem com outros cidadãos. Não há como defender sanções.

Entretanto, o ponto aqui é: sanções de escopo extremamente limitado não podem causar uma crise econômica da magnitude vista na Venezuela. E, ainda que pudessem, elas simplesmente não poderiam fazer isso retroativamente.

A crise econômica venezuelana já era observável em 2007. A escassez já era perceptível. Em 2009, a recessão já estava nos dados oficiais. No início de 2014, a crise humanitária já era explícita para o mundo inteiro.

Agora, diga-me: em qual universo é possível afirmar que pequenas sanções introduzidas no final de 2017 geram retroativamente todos estes problemas observados a partir de 2007?

A esquerda está perdida simplesmente porque a crise venezuelana é resultado de todas as políticas que ela sempre defendeu: controle de preços, expropriações, estatizações, planejamento centralizado, retórica anti-capitalista, anti-empresarial e anti-investidores estrangeiros, confisco de renda e redistribuição sob a retórica da “justiça social”, e políticas fiscal e monetária extremamente expansionistas. E isso apenas para ficar no básico.

A atual crise venezuelana é culpa exclusivamente de ideias asininas colocadas em prática.

E a ânsia de intelectuais ocidentais de isentarem Chávez e Maduro, atribuindo a culpa pelo desastre a “imperialismos estrangeiros”, apenas mostra como essas pessoas, na mais benevolente das hipóteses, fracassaram completamente em aprender alguma lição após décadas de uma platônica paixão pelo socialismo.

Kristian Niemietz trabalha para o Institute of Economic Affairs

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