Algumas situações são mais complexas do que aparentam. A guerra civil perene em Myanmar é uma delas. Fruto de uma disputa territorial que dura mais de 200 anos, o conflito étnico na antiga Birmânia é filho de todos os povos que lá habitam.
A história popularizada é a de que o Tatmadaw, as forças armadas mianmarenses, está conduzindo um pogrom contra os rohingya no estado de Rakhine, no Oeste do país. Sem influência significativa no sistema internacional, o governo de Myanmar não é capaz de controlar a narrativa difundida sobre aquilo que ocorre dentro de suas fronteiras, como a Rússia, a China (principalmente sobre sua repressão aos praticantes do Falun Gong) e alguns países islâmicos fazem.
Na verdade, não é a primeira vez que o exército de Myanmar sofre com as relações públicas. Durante a invasão do Kuomitang, o partido nacionalista da China, no início da década de 1950, os militares mianmarenses reclamaram que a imprensa, no seu afã por um furo de reportagem, estava prejudicando o elemento surpresa da tática do Tatmadaw, ao revelar muitas informações sobre suas manobras militares. Por fim, o exército mianmarense sofreu uma derrota catastrófica.
De certa forma, hoje a antiga Birmânia sofre mais uma vez nas mãos da imprensa mundial. E, embora até certo grau retratem o que está ocorrendo no país, a maneira como a história é contada interfere na guerra civil, e esses atores internacionais e outros acabam não auxiliando numa solução que possa resolver o conflito. O que se vê então é apenas a continuidade da desordem e do sofrimento.
Também é comumente ignorado o fato de que, desde o fim da 2ª Guerra Mundial, os bramás, o maior grupo étnico de Myanmar, conseguiram mais uma vez se estabeleceu como o grupo dominante na região, e essa dominação não foi aceita pelas outras etnias. É factível questionar que essa não aceitação se dê por medo de uma retaliação dos bramás, em função da repressão que esta maioria nativa sofreu durante o período colonial, como veremos com mais detalhes adiante.
No fim das contas, nenhuma das partes em conflito quer ceder. Assim, o ciclo de violência prossegue, afetando centenas de milhares de vidas.
No início
O Sudeste Asiático é um caldeirão cultural que viu a ascensão e queda de diversos reinos, de diferentes etnias. No entanto, diferentemente de Myanmar, os outros países conseguiram consolidar a sua estabilidade, após o fim do Raj britânico e da Indochina francesa.
De certa forma, pode-se dizer que a fragmentação política em Myanmar é um reflexo da disputa pelo poder entre os vários povos que habitam este território. Do início da era cristã até a colonização inglesa, os bramás se revezaram na hegemonia local com outros grupos, principalmente com o povo mon.
Nessa guerra de tronos, os bramás ergueram, sucessivamente, três impérios. É importante notar que nenhum deles foi capaz de manter o seu domínio imperial por mais de 300 anos, o que possivelmente contribuiu para a atual ausência de identidade nacional, demonstrada pelas minorias étnicas desde a independência.
O primeiro dos impérios bramás, o Império Pagan (1044-1297), foi o responsável pela ascensão cultural dos bramás e pela expansão do budismo teravada na região. O último deles, a Dinastia Konbaung (1752-1885), definiu, com suas guerras de conquista, as atuais fronteiras de Myanmar.
Foram os konbaung que eventualmente conquistaram o Reino de Mrauk U, o atual estado de Rakhine, uma região conhecida antigamente como Arakan. O estado de Rakhine é o local onde ocorre o conflito entre o povo rakhine budista e os rohingya muçulmanos.
Mrauk U surgiu em 1430, com o apoio do Sultanato de Bengala. O preço desse apoio foi a vassalagem, fazendo com que, com o tempo, a região se tornasse um espaço cosmopolita, onde budistas e muçulmanos coexistiam.
Raízes da violência
O surgimento da Dinastia Konbaung está relacionado ao esforço para resistir ao domínio mon, no século XVIII. Com a ajuda dos franceses, os mon restabeleceram o Reino de Hanthawaddy, que havia sido destruído em 1552 pela Dinastia Toungoo, o segundo império birmanês (1510-1752). O Reino Restaurado de Hanthawaddy teve vida curta, existindo de 1740 a 1757.
Em seu esforço para se consolidar como potência regional, em 1752, o rei Binnya Dala ordenou que as tropas de Hanthawaddy invadissem a região norte da Birmânia. No entanto, em 1754, Alaungpaya dos konbaung rechaçou a invasão. Derrotado, Binnya Dala decidiu executar a aristocracia Toungoo, que estava em cativeiro, e reprimir os bramás.
É interessante notar que Binnya Dala, o monarca do Reino Restaurado de Hanthawaddy, não era da etnia mon, apesar de governar um reino mon. Ele era da etnia shan. O monarca anterior a ele era um bramá.
Em 1785, os konbaung conquistaram a região de Arakan, o Reino de Mrauk U. Desse período em diante, a população local foi massacrada ou deportada/exilada à força. Milhares fugiram para o Raj britânico. Como resultado, a região acabou tornando-se escassamente povoada.
As coisas mudaram quando os ingleses colonizaram a região. Após a derrota para os europeus, durante a 1ª Guerra Anglo-birmanesa (1824-1826), os konbaung foram obrigados a assinar o Tratado de Yandabo, que, entre outras coisas, cedeu o território do antigo Reino de Mrauk U para o Raj britânico.
Uma das causas da guerra foi o apoio britânico aos separatistas em Arakan, que levou os konbaung a acreditarem que o conflito armado com o império britânico era inevitável.
O começo do problema
Como já dissemos, a região de Arakan tonou-se escassamente povoada, devido ao expurgo realizado pela Dinastia Konbaung, durante o período em que governaram a região (1785-1824). Buscando viabilizar economicamente o território, a Companhia Britânica das Índias Orientais incentivou a imigração bengali para o território recém-conquistado.
Não havia restrição de migração de Bengala para Arakan. Esse fato, somado à política de incentivo de ocupação da província, impossibilita hoje aos estudiosos saber se a onda migratória era composta, em sua maioria, por aqueles que foram expulsos pelos konbaung ou se por aqueles sem laços históricos com a terra.
Em 1886, toda a região da antiga Birmânia havia sido conquistada pelo império britânico. Agora uma parte do Raj, a Birmânia britânica viu a onda migratória avançar e difundir-se por todo o território, a qual, apesar de impulsionar a economia local, despertou a xenofobia nas etnias autóctones. Por exemplo, a mão de obra indiana era importada e alocada nas indústrias em detrimento da população local, além da ocupação da terra por latifundiários estrangeiros.
Em 1927, Yangon, uma cidade portuária da Birmânia, foi o principal destino migratório do planeta. Além disso, as dez maiores cidades da província tinham os indianos como maioria populacional.
Quanto aos bramás, o ressentimento em relação à imigração não foi causado apenas pela perda da superioridade. Os ingleses impuseram a sua mão de ferro na província com a ajuda de tropas compostas por indianos e por minorias étnicas da Birmânia britânica. Durante o período colonial, os bramás foram proibidos de ingressar nas forças armadas.
Assim, da perspectiva bramá, quando os ingleses precisavam suprimir alguma rebelião, eram as outras etnias da região que faziam o trabalho sujo; entende-se hoje que essa situação ajudou a construir o cenário atual de tensão étnica em Myanmar.
Em Arakan, os rakhines também não viram com bons olhos a imigração bengali; a tensão entre budistas e muçulmanos foi fomentada já no período colonial.
Fragmentação político-territorial
Com a invasão da Birmânia britânica pelo exército imperial japonês em 1942, as tensões étnicas eclodiram. Em Arakan, as agressões entre grupos étnicos, que já haviam começado na década de 1930, assumiram ainda maiores proporções.
Ao recuarem, os ingleses armaram os muçulmanos que habitavam o norte de Arakan, para criar uma zona tampão que impediria o avanço japonês e a atuação dos nacionalistas bramás. Os rakhines budistas e os bramás, por sua vez, se aliaram ao imperador Shōwa.
À sombra da 2ª Guerra Mundial, o atual conflito rakhine-rohingya começou a tomar forma. Os rakhines atacavam comunidades muçulmanas, expulsando-os para o norte de Arakan. E os muçulmanos contra-atacaram as comunidades rakhines, destruindo, pelo caminho, os templos budistas.
Após o fim da guerra, a coroa inglesa dominou novamente a região, mas não conseguiu trazer de volta a estabilidade que imperava na Birmânia britânica. Os muçulmanos que tomaram parte na guerra continuaram com suas atividades.
Já em 1946, com a decisão de que a Índia seria dividida e o Paquistão criado, os mujahideen, os guerrilheiros muçulmanos em Arakan, tentaram convencer Muhammad Ali Jinnah, o patriarca do Estado do Paquistão, a anexar algumas cidades muçulmanas da Birmânia britânica. Após a violência étnica durante a 2ª Guerra Mundial, os muçulmanos estavam apreensivos com um governo dominado pelos budistas.
O Estado muçulmano do Paquistão, que seria criado no ano seguinte de 1947, decidiu por não interferir na política interna da Birmânia britânica. Esse desejo dos mujahideen surgiu como parte da promessa feita pelos ingleses durante a 2ª Guerra Mundial de separá-los da província de maioria budista. Promessa que acabou por não ser cumprida.
Desde então, várias guerrilhas surgiram em nome dos muçulmanos de Arakan, matando em nome de uma causa que já nasceu condenada: Mujahideen (1947), Movimento Islâmico Rohingya (1970), Partido da Liberação Rohingya (1972), Frente Patriótica Rohingya (1974), Frente Islâmica Arakanesa Rohingya (1986), Organização de Solidariedade Rohingya (1990), Organização Nacional Arakanesa Rohingya (1998), Harakah al-Yaqin / Exército Arakanês de Salvação Rohingya (2016).
Mas não foram apenas os rohingyas os causadores da guerra civil que perdura em Myanmar. As outras etnias também entraram em guerra contra o Tatmadaw, visando à independência.
Além dos guerrilheiros muçulmanos, Myanmar testemunhou uma série de outros grupos com objetivos separatistas: Organização da Defesa Nacional Karen (1947), Exército de Liberação Nacional Karen (1949), Exército Karenni (1957), Exército de Independência Kachin (1961), Exército Nacional Chin (1988), Exército Unido do Estado Wa (1989), Exército Nacional de Libertação Ta’ang (1992), Exército Sul do Estado Shan (1996), etc.
Em meio à tempestade guerrilheira, o Tatmadaw fez uso de brutalidade e terror, para manter unido o território conquistado pelos seus antepassados.
Os excluídos
Mas como os rohingyas se tornaram os intocáveis de Myanmar, párias e desprezados? A ação do governo de maioria bramá é calcada na pureza racial, ou a grande mídia mundial ignora alguns pontos dessa tragédia do Sudeste Asiático? Por que o Tatmadaw baniu os rohingyas, mas não as outras etnias que vivem na antiga Birmânia? Primeiro, precisamos entender como alguém se torna cidadão de Myanmar.
Em 1982, o governo aprovou a Lei de Cidadania de Myanmar. À época, Myanmar era uma ditadura socialista ao estilo soviético, sendo governada pelo Partido da Política Socialista da Birmânia (PPSB), fundado em 1962, após um golpe de Estado. Aplicando as diretrizes do Caminho Birmanês para o Socialismo, o PPSB destruiu a economia e reprimiu os movimentos de independência étnica.
De acordo com essa lei, existem três categorias de cidadãos. Aqueles que possuem cidadania completa, os cidadãos associados e os naturalizados.
Terão cidadania completa aqueles que pertencem aos povos kachin, kayah, karen, chin, bramá, mon, rakhine, shan ou qualquer outro grupo étnico que tenha se estabelecido em Myanmar antes de 1823. Essa definição já fazia parte da lei anterior de cidadania, com a diferença de que os rakhine eram referidos como arakaneses: os habitantes do estado de Arakan, que inclui os muçulmanos que habitavam o Reino de Mrauk U.
Serão cidadãos associados aqueles que adquiriram cidadania conforme a Lei de Cidadania da União de 1948. A legislação do período dizia que poderiam adquirir cidadania aqueles que já estavam na terra por duas gerações, ou que se casaram com algum cidadão de Myanmar. A descendência dos cidadãos associados possui cidadania completa, desde que ambos os pais possuam algum grau de cidadania.
Já os cidadãos naturalizados são aqueles que migraram para Myanmar antes de 1948, mas obtiveram cidadania apenas após a lei de 1982. Os descendentes daqueles que não se tornaram cidadãos de Myanmar e cujos pais já residiam no território antes de 1948 poderão se tornar cidadãos naturalizados, desde que forneçam provas de ligação com o território. A descendência dos cidadãos naturalizados possui cidadania completa, desde que ambos os pais possuam algum grau de cidadania.
Ao estrangeiro é vedada a aquisição de cidadania. Mas aos seus filhos é permitido se tornar um cidadão naturalizado, desde que o outro ascendente possua algum grau de cidadania.
Vale lembrar que o período anterior a 1823 corresponde ao domínio do 3º império birmanês sobre Arakan, atual estado de Rakhine. De 1824 em diante, a coroa inglesa incentivou a imigração bengali para a região. Quando todo o território da antiga Birmânia foi conquistado pelo império britânico em 1886, imigrantes indianos fluíram para todos os cantos da nova província.
Percebe-se então que o conceito de cidadania completa, presente tanto na lei de 1948, ano em que ocorreu a independência de Myanmar, quanto na lei de 1982, constrói a ideia de nacionalidade segundo uma variante da jus soli: será nacional aquele que puder comprovar a sua ligação com o território, seja por fazer parte de uma etnia historicamente presente, seja por ser descendente de alguém que se ligou ao solo durante o período colonial.
Sem fazer juízo de valor, é evidente que, desde a independência, os mianmarenses se preocuparam com os efeitos na sua cultura da imigração estrangeira em massa, causada pela anexação da antiga Birmânia ao Raj britânico.
Mas por que a lei faz referência a um período pós-1982?
A questão muçulmana
Como foi dito antes, os muçulmanos do estado de Rakhine tentaram convencer o Paquistão a anexar parte do território de Myanmar, antes desse se tornar independente. No entanto, o novo Estado muçulmano decidiu por não interferir na política interna da, na época, província vizinha; atualmente Myanmar faz fronteira com o Bangladesh, que se separou do Paquistão em 1971.
De acordo com um estudo feito por Adloff & Thompson em 1955, na obra “Minority Problems in Southeast Asia”, a imigração ilegal de bengalis no período pós-guerra para a região de Rakhine foi intensa. Argumenta-se que ela foi incentivada pelos mujahideen para dar maior força à causa separatista.
Como Flávio Morgenstern explica em seu podcast, Senso Incomum, a conquista de um território por meio da imigração e do crescimento populacional é um dos pilares do Islã, a hégira. Recentemente, o Islamism Map (IM), um grupo que acompanha a atuação de jihadistas e de políticos muçulmanos ao redor do mundo, publicou o discurso de um dos vice-presidentes da União das Organizações Islâmicas da França, que, segundo o IM, é um dos grupos muçulmanos mais influentes da Europa. Neste discurso, Makhlouf Mamèche explica que, em relação à França, o momento agora é justamente o de esperar e se fortalecer, antes de tentar conquistar o país.
Apesar de ser um fato questionado por intelectuais que simpatizam com a causa rohingya, a ideia de migrar para uma região, como estratégia de conquista, não é alheia à religião islâmica. Sendo, na verdade, o marco inicial do calendário dos seguidores de Maomé.
Na década de 1950, os mujahideen agiam com violência no estado de Rakhine. Em protesto, monges budistas entraram em greve de fome em Yangon. Em resposta, o Tatmadaw iniciou a Operação Monção, que acabou por matar vários dos líderes guerrilheiros, além de tomar seus acampamentos mais importantes.
Já na década de 1970, a imigração de muçulmanos chegou a tal ponto que levou a população budista rakhine a protestar novamente, por meio de outra greve de fome. Os rakhines temiam a mudança demográfica na região, causada pelo êxodo de bengalis fugindo do conflito oriundo da secessão de Bangladesh.
Em resposta, o Tatmadaw deu iniciou a uma série de operações militares que, por fim, resultou no êxodo de 200 mil refugiados rumo a Bangladesh naquele ano. Por incrível que pareça, após protestos do país vizinho, as Nações Unidas (ONU) obrigaram Myanmar a aceitar de volta esses refugiados, que, ao que tudo indica, são refugiados da guerra civil bengali.
Percebe-se, então, que o período pós-independência é marcado por uma série de fluxos migratórios para o estado de Rakhine. Junto a esse deslocamento de grandes grupos, há conflitos gerados por movimentos separatistas que se utilizam dessas massas recém-chegadas para robustecer as suas demandas.
No fogo cruzado entre o governo central e aqueles que buscaram a secessão, estão aqueles arakaneses que, por um motivo ou outro, não conseguiram atender aos requisitos da lei. Tornando-se assim os apátridas de Myanmar.
Algo que a violência no país deixa claro é que os grupos étnicos não conseguem chegar a um acordo sobre como o país deve ser governado. E no transbordamento dessa tensão política, a população do país fica a mercê da agressão de ambos os lados.
Segundo o Channel News Asia, os ataques realizados pelo Exército Arakanês de Salvação Rohingya em 2017 tiveram como objetivo provocar uma reação exagerada do Tatmadaw à população muçulmana de Rakhine, como forma de chamar a atenção mundial para a situação dos rohingyas em Myanmar.
Ou seja, aqueles que buscam uma solução, para a situação perniciosa dos muçulmanos rohingyas, estão se utilizando dos meios que encurralaram os rohingyas numa condição miserável. No fim, a luta separatista, conduzida por uns poucos, trouxe mais prejuízos ao coletivo do que benefícios.