“O que faz a gente ser a favor do marco temporal, é que vai atingir muitos, muitas pessoas de outras regiões… Pessoas de uma vila inteira já tiveram ordem judicial para desocupar os lugares e então a gente já começa a reviver esse sofrimento que a gente viu na demarcação da Raposa Serra do Sol, e isso dói o coração de qualquer um, você ver uma criança chorando, um pai de família chorando, uma pessoa, um homem adulto, uma mulher adulta chorando, sem saber o que fazer, sem saber para onde ir”. Isso é o que diz o indígena Macuxi Isaías da Costa, da comunidade Maracanã 1 da Raposa Serra do Sol, sobre o principal motivo de seu apoio ao marco temporal.
O marco temporal limitaria a demarcação de terras indígenas ao desenho que possuía em outubro de 1988. Ou seja, apenas territórios ocupados por indígenas antes desta data, teriam direito à demarcação.
A demarcação que ocorreu na região da Raposa Serra do Sol em Roraima, tem sido utilizada como exemplo para apoiadores e opositores ao Marco Temporal.
Em uma entrevista de três partes, a editora de agronegócio do Epoch Times, a engenheira agrônoma Danielle Dutra, ouviu a perspectiva de Isaías, que esteve presente durante todo o debate acerca da demarcação de suas terras.
Na primeira parte da entrevista (disponível aqui), Isaías pontuou a atuação de dois padres estrangeiros que influenciaram na demarcação. Na segunda (disponível aqui), ele relata como entende a atuação da Organização das Nações Unidas (ONU) na região.
Nesta terceira parte, Isaías explica os motivos de sua comunidade ser a favor do marco temporal.
Danielle Dutra: O senhor me mandou um vídeo de indígenas da sua região apoiando o marco temporal. Por que vocês são a favor desta medida?
Isaías da Costa: O que faz a gente ser a favor do marco temporal, é que vai atingir muitos, muitas pessoas de outras regiões.
E na verdade, aqui [na Raposa Serra do Sol] o que saísse, o que fosse, a gente já passou por um momento ruim, que foi o período da demarcação, um período muito ruim, ao longo de quase 20 anos, período da demarcação, e voltamos a ter atenção de 2018 em diante.
Mas de 2001 até 2018 foi um período muito longo de sobrevivência, então um período muito ruim que a gente passou
E se não for aprovado, o marco temporal vai atingir muita gente no Brasil inteiro, vai criar um caos.
Na minha região, aqui mesmo do estado, existiram pessoas que saíram de sua localidade. Pessoas de uma vila inteira já tiveram ordem judicial para desocupar os lugares e então a gente já começa a reviver esse sofrimento que a gente viu na demarcação da Raposa Serra do Sol, e isso dói o coração de qualquer um, você ver uma criança chorando, um pai de família chorando, uma pessoa, um homem adulto, uma mulher adulta chorando, sem saber o que fazer, sem saber para onde ir, sem saber para onde se alocar.
E isso não vai ser só aqui. Aconteceu também no estado de Roraima, a desocupação de algumas áreas que são pretendidas pela Funai e já estão desocupadas e os fazendeiros não têm como levar os seus bois, não tem para quem vender, ninguém quer comprar, não tem onde colocar, não tem onde realocar. Isso é triste para a gente.
Aqui vai atingir… se demarcar, se for aprovado, o marco temporal vai nos atingir de novo nesta guerra interna da gente, sob ameaça de não precisar sair e tal, se luta para isso aqui e ali.
Mas assim, nós não temos problemas e somos a favor por outras pessoas. Tem indígenas no Brasil que depois de 88, casou (sic) com pessoas brancas e tudo, que mora numa região que até escolheu (sic) para viver, que não era o local dele conviver, que a gente tem que conviver na comunidade, não tinha um local para viver na comunidade e foi viver nessa região e acabou ocupando lá. Se não sair esse marco temporal, vai acabar tendo que sair de lá.
Não é o nosso caso aqui, a gente está aqui no mesmo lugar onde eu nasci, me criei e estou vivendo até agora e assim por diante.
D.D.: No caso, se o marco temporal não for aprovado, isso pode acabar reproduzindo o que aconteceu na Raposa Serra do Sol em outras regiões do país?
I.C.: Justamente isso. Também se acontecer essa aprovação do marco temporal, essa não aprovação do marco temporal, quem é a favor e quem é contra, na verdade, vai ser atingido de todas as maneiras.
Porque se não for aprovado o marco temporal, muita gente vai ser atingida fora do meu estado. Mas se for aprovado o marco temporal, se permanecer como está, o que é que vai acontecer para a gente, é que a gente vai perder de novo o apoio do governo, porque ainda ninguém conseguiu comprar nossas máquinas.
Não tem como financiar esse dinheiro, não tem como fazer nada aqui. Então a gente ainda depende das máquinas do governo. Se permanecer como está aí, a gente acaba perdendo de novo o que a gente já está produzindo. Como eu mandei os vídeos aí para você, da produção que nós temos.
O bom é que tem a forma tradicional né, mas retirar as máquinas vai piorar tudo de novo, se retirar as máquinas, se retirar as estradas, ponte, vai tudo acabar de novo e aí a gente vai ter que reconstruir de novo.
Aí nós não sabemos quanto a nós, se nos tornaremos escravos deles, porque vão querer nos escravizar em forma de doação de Bolsa Família, cesta alimentícia, e essas coisas aí.
As pessoas começam a depender disso porque não produzem, não têm como produzir, não tem como extrair, não tem como trabalhar com ouro e diamantes, porque é proibido por lei, que é danos ambientais e outras coisas… mesmo existindo tudo aqui, não podemos fazer isso.
E daqui a pouco o camarada está dependente da bolsa família, se torna dependente da cesta básica. E aí pronto, aí teremos gerações dependentes de novo e voltaremos ao pior. Isso nós não queremos!
Nós fomos para Brasília na audiência pública. Só tinha representante deles e agora mandamos nosso representante também.
D.D.: E se o marco temporal for aprovado, o que acontecerá?
I.C.: Se for aprovado isso, vão ser demarcadas as áreas que já estão ocupadas por indígenas antes de 1988. Só que não existe mais reserva para ser demarcada aqui no Brasil, não existe.
As que existiam, as últimas eram aqui, na região norte. Tem uma terra indígena aqui do Maracá, essa reserva que a Marina Silva requereu agora, é do Parima. Mas não tem condições, não vai ser uma reserva indígena, vai ser um parque nacional aqui, nessa área, diferente da reserva indígena.
Aqui não tem ninguém mais, não tem mais indígena aqui no estado, não tem ninguém mais que mora aqui que seria pretendido por falta de demarcação, todas já foram demarcadas aqui no estado de Roraima.
E no Brasil, todas as áreas já foram demarcadas, todas, porque as últimas terras da série demarcada, por terra para a região do estado de Roraima, não tem, não existe mais, porque como estou te falando, se eles conseguirem derrubar o que vai acontecer? Aí vai ser tomada essa parte, como eu tô falando, porque o trabalho deles é um trabalho de 10, 50, 60, 100 anos. Porque a intenção deles é formar uma nação indígena nessa região aqui
D.D.: Caso seja derrubado o marco temporal, vão expandir as terras indígenas sem limites?
I.C.: Sim, do jeito que eles quiserem. Porque assim, o que vai acontecer, como eles são idealizadores e porque qualquer indígena não tem ideia nenhuma de terra de demarcação, não sabe nem o que está acontecendo.
Se você perguntar para um indígena lá do fundo, que não tem informação nenhuma, perguntar se ele for a favor ou contra o marco temporal, ele vai dizer que não sabe nem o que você está falando, do que se trata e não entende a questão, não tem informação.
Aqui, quem tem informação são as pessoas que estão repassando as informações para essas organizações que criaram várias organizações que dão suporte para essas organizações, e eles vão incentivando essas organizações a se juntar e fazer manifestação contra, para transparecer que é o desejo da população indígena. E isso também é um tipo de manipulação das comunidades indígenas.
Mas essas organizações perderam a resistência e um pouco mais de força, porque também há aquelas pessoas que querem desenvolvimento, estão criando associações. Então, cada vez que se fala a favor do marco temporal, tem já outras associações que falam contra e isso se torna um pouco complicado e vai se tornar um caos no Brasil todo, não é só aqui.
Então, deve-se evitar tudo isso já que todo mundo já está realocado em seus lugares. Se for aprovado de fato o marco temporal, se permanecer, ninguém vai ser afetado assim, bruscamente, quem vai ser afetado vai ser a frustração do desejo de ser demarcado das ONGs, aí eles vão ficar frustrados com isso, porque indígena nenhum vai ser afetado.
Mas se realmente derrubarem, o que vai acontecer é que essa população que já produz aqui, que tem algumas fazendas, um pedaço, vão ser afetados em peso e também afeta a gente, porque nós já produzimos aqui, pouco, mas produzimos em pequena escala, mas isso pode e vai afetar a gente, mas em relação a terra não vai nos afetar, vai afetar nossa produção.
D.D.: O senhor citou que a demarcação trouxe muito sofrimento e isolamento para o seu povo. Como sua comunidade conseguiu se desenvolver depois da demarcação, como vemos nos vídeos?
I.C.: Então… a gente conseguiu sobreviver até hoje lá depois disso porque a gente já tinha essa parceria com o governo do Estado, através da associação, então a associação dava suporte e o governo do Estado criou uma Secretaria do Índio, através da SIDIU, porque a Secretaria do Estado aqui do Estado de Roraima, eles não tinham como dar assistência direto e sendo o governo do Estado, não tinha como dar assistência direta.
Então nessa época era o Tomás de Sousa Pinto, o finado brigadeiro de Souza Pinto, então ele fez com que a secretaria funcionasse e a Secretaria do Índio atendia às demandas das comunidades indígenas, mandando um carro ou caminhão para buscar a produção para a gente poder vender aí na Feira do Produtor Rural, foi dessa maneira.
E os recursos que a gente precisava de necessidade urgente, a gente acabava indo para a beira do rio, atrás de diamante, atrás de ouro e até hoje, todos os indígenas da região sobrevivem disso, quem não é professor, quem não é agente indígena da saúde, aquele que não é médico, aquele que não é enfermeiro, aquele que não é técnico, ele acaba indo pro garimpo até hoje, vai passar um dia, dois, três, quatro dias… vai acabar pegando 3, 4, 5 gramas, fazendo R$1500, R$2000 nesses 3, 4 dias. Vai depender muito de como estava a situação. No inverno não têm como trabalhar porque lá é na beira do rio. Então é assim que eles sobreviveram, é assim que nós sobrevivemos até hoje.
E hoje nós temos pessoas em nossa comunidade que estudaram também né, que são formadas em direito, outros são formadas em pedagogia, outras se formaram em enfermagem, fisioterapeutas… Na minha comunidade temos um fisioterapeuta, um enfermeiro, um técnico da comunidade. Ainda não temos direito, e eu estou pensando em fazer direito agora por causa disso.
D.D.: E por que ninguém fala sobre o que acontece com a questão da demarcação indígena, o isolamento dos índios?
I.C.: Eles não falam porque todo mundo que vem aqui para fazer reportagem, veio fazer reportagem negativa.
Eles já vem com intenção de defender os interesses deles todos, da sua versão da própria organização, que quer realmente a demarcação, ou a saída.
E nós, nós passamos a ter um entendimento totalmente diferente porque tivemos a visão de mundo, uma visão muito mais extensa, um espaço um pouco maior e também, na época, o pessoal, a turma dessas associações, eles impediram que os seus membros da comunidade tivessem documentos e então ficaram um bom tempo sem ter a identidade, CPF, título de eleitor, essas coisas.
Então eles foram sempre contra tudo o que fosse desenvolvimento e queriam que nós estivéssemos em um período primitivo. Nós não temos mais condições de voltar a um período primitivo! Tenho minha cultura? Tenho minha tradição? tenho! Hoje a gente bebe caxiri, come comida moída e temos essa nossa cultura e tradição.
Mas não é o que nós queremos, viver sempre no ruim. Por exemplo, se eu tiver condição de ter um avião, eu vou comprar um avião. Se tiver condições de viver em uma casa boa, poder comer uma comida boa, eu vou ter! Eu vou fazer. Se eu tiver condições de ter um conforto na minha casa, uma boa cama, uma boa higienização na minha casa, eu vou ter. Eu não vou querer o pior para mim, nem para minha família e nem para meu povo.
Ó, eu vou te contar um exemplo aqui, a maioria das pessoas da minha comunidade tem uma casa de telha Brasilit. Aí muita gente diz: “vocês viraram branco agora? vocês não são mais índios, são brancos”. Eu falo assim: “isso não vai mudar nada sobre o meu sangue”. Não vai mudar nada sobre meu sangue, sobre a minha língua que ainda falam, porque daqui um tempo vai se perder, as coisas vão se perdendo aos poucos, né?
O português para chegar a ser o português aqui no Brasil, se perdeu o português de Portugal, então se tornou um outro tipo de português, um português diferente, um português mais… usando uma voz mais extensa.
Eu aprendi a falar português, falo português um pouco e ainda tenho muita dificuldade de falar português. Mas eu aprendi a falar, aprendi a falar macuxi com os meus pais, quando nasci. Aprendi um pouco do castelhano, entendo um pouco do inglês por causa dos garimpos da vila do Mutum, então lá a maioria são inglês, a maioria não, todos são ingleses.
Lá tem comunidade indígena? Tem, tem outras comunidades indígenas por nome “Patamona” do outro lado, é uma outra linguagem. Então aqui, nessa minha região, Raposa Serra do Sol, nós [não] somos apenas um, somos indígenas diferentes um do outro. Somos indígenas de culturas e tradições diferentes uns dos outros. Por exemplo, macuxi, ingaricó, sabará… o Inhama, que só tem uma família. Então são várias etnias dentro da Raposa Serra do Sol. Nós temos culturas diferentes, o pensamento é diferente.
D.D.: Isaías, muito obrigada por compartilhar sua história conosco!
Todas as partes dessa entrevista foram transcritas do áudio e a fidelidade das palavras e posicionamentos do entrevistado mantidas ao máximo, havendo edições somente para adequação da linguagem escrita e clareza onde foi necessário.
Entre para nosso canal do Telegram
Assista também: