Nal Oum disse que nunca vai esquecer o dia em que o Khmer Vermelho tomou a capital. Ele era um dos pouco mais de 400 médicos no Camboja, e tinha ficado apesar da conflagração que engolia seu país, com a crença de que os médicos sempre seriam neutros e iriam trabalhar para salvar qualquer vida, independentemente de política, raça ou credo.
Ele entende agora que estava errado. Ele, como muitos outros, não acreditava que os seres humanos fossem capazes de tamanha maldade.
Foi uma tarde movimentada no hospital francês construído em Phnom Penh, quando homens em uniformes pretos deram ordens para desocupar a capital do Camboja. O Khmer Vermelho enviou meninos com rifles de assalto para levar a cabo as suas ordens.
O trabalho manteve Oum ocupado. Ele tinha enviado sua então esposa e dois filhos para a França para esperar o fim da guerra, o que lhe deu mais tempo para cuidar dos feridos, como uma das pessoas responsáveis no hospital.
O hospital foi construído originalmente para abrigar cerca de 450 pacientes, mas com a guerra civil recebeu bem mais do que 1.000. As camas estavam todas ocupadas. Muitos dos doentes e feridos estavam deitados no chão.
Um dos prédios abrigava mais de 100 crianças de todas as idades, incluindo recém-nascidos. Em 17 de abril de 1975, o dia em que o Khmer Vermelho tomou a capital cambojana, Oum estava lá, com as crianças. “Eu me lembro perfeitamente das pequenas camas”, disse ele.
Quando os homens começaram a expulsar o pessoal do hospital, Oum pediu-lhes para continuar a cuidar dos pacientes mesmo sem outros médicos ou enfermeiros. Eles simplesmente lhe disseram para ir para fora, e disseram que iriam cuidar dos pacientes. “Mas era tudo mentira”, disse Oum. “Eu ficava pensando naquele momento, naquele momento em que todas as crianças morreriam.”
“Até hoje, a imagem dessas crianças ainda permanece em minha mente. Eu não pude fazer o meu trabalho para salvá-las “, disse ele. “É algo que me acompanha todos os dias.”
“Meu hospital desapareceu em questão de horas”, disse ele. “Tornou-se um hospital fantasma.”
Os campos da morte
Oum é meu sogro, e foi um dos primeiros que denunciaram o genocídio que teve lugar no Camboja de 1975 a 1978. Recentemente, ele contou sua história no livro, atualmente apenas em francês, “Un Médecin Chez les Khmers Rouges “(Um médico dentro do Khmer Vermelho).
Ele fazia parte das delegações que expuseram os crimes contra a humanidade cometidos pelo Khmer Vermelho. Os meios de comunicação franceses o chamavam de “Doutor Jivago do Camboja”, referindo-se a um romance sobre um médico durante a Revolução de Outubro na Rússia.
O Khmer Vermelho fez uma longa lista de vítimas, desde o corajoso e bondoso ao inteligente e alfabetizado. Suas formas de matar eram da mesma forma bastante variadas. As pessoas foram baleadas, sufocadas, cozidas vivas em fornos de cerâmica, espancadas até a morte, enterradas vivas, e mortas pela fome.
A Universidade de Yale compilou uma série de testemunhos de pessoas que sobreviveram. Uma história contada por Teeda Butt Mam menciona um velho homem que ela conheceu, que disse: “É preciso um rio de tinta para escrever nossas histórias.”
Depois que o Camboja foi invadido pelos norte-vietnamitas em 1965 e bombardeado pelos Estados Unidos a partir de 1969, uma guerra civil começou. A guerra civil permitiu que o Khmer Vermelho permanecesse no poder, e depois de sofrer um genocídio nas mãos do Khmer Vermelho, o Camboja foi novamente invadido em 1978 pelo Vietnã do Norte.
Oum assistiu a uma única parte desta história. De acordo com a organização de direitos humanos “Cultural Survival”, apenas 45 médicos sobreviveram ao genocídio do Khmer Vermelho. Oum é o único médico conhecido por ter escapado de um dos campos de extermínio.
O dia 28 de março
Os assassinatos começaram quase imediatamente. Depois que Oum foi arrancado de seu hospital, foi enviado em uma longa marcha para fora da cidade em direção ao campo. Pessoas vinham de todas as direções e para destinos desconhecidos, escoltadas por soldados armados.
Aconteceu tão rápido que Oum não teve tempo de trocar sua roupa branca de médico. As pessoas não tinham chance de pegar pertences, as famílias não tinham tempo para procurar um ao outro.
“Nós nem sequer sabíamos para onde íamos”, disse Oum. “Apenas nos diziam para seguir em frente o tempo todo, e não voltar para a cidade. Caso contrário, os jovens soldados tinham suas armas, e de vez em quando eles disparavam um tiro no ar como um aviso para continuarmos caminhando.”
Eventualmente, eles paravam para obter comida. Pessoas foram colocadas em fila para ganhar um pequeno punhado de arroz, que foi distribuído por soldados do Khmer Vermelho. Um homem vestindo apenas um calção se aproximou e pediu mais arroz, então eu vi um soldado trajado de preto sair de um caminhão”, disse Oum.
O soldado amarrou as mãos do homem por trás das costas, arrastou-o para longe da fila, “então, ouvi os tiros”, disse Oum. O homem caiu, e uma poeira avermelhada subiu ao seu redor.
As mortes logo se tornaram comuns durante a marcha que durou um mês. “Nós víamos cadáveres por toda parte”, disse ele. “Dois ou três cadáveres aqui, mais dois ali.”
O povo cambojano foi aprisionado em fazendas e forçado a trabalhar nos campos de arroz. Muitas pessoas foram transferidas várias vezes, uma estratégia usada para desorientá-los e evitar que os presos ficassem muito familiarizados uns com os outros. Como alimento, todos eles ganhavam apenas uma porção de arroz por dia.
A pressão mental era constante. O Khmer Vermelho muitas vezes matava as pessoas e deixava seus corpos nos campos de arroz para que os prisioneiros o vissem. “Eles os colocavam em covas rasas, por isso, algum tempo depois, você podia sentir o cheiro dos corpos em decomposição”, disse Oum.
“Foi muito chocante para todos. Não só para mim,” disse ele. “Nós vivemos uma época de terror, quando as pessoas não se atreviam a falar.”
“Nós ensinávamos uns para os outros que, se você quisesse sobreviver você precisava tornar-se cego, fazer-se mudo e fazer-se surdo”, disse ele. “Nós tivemos que nos calar completamente. Mesmo se você tivesse visto com seus olhos, você precisava agir como se não tivesse visto.”
A fuga
Oum foi transferido para quatro campos diferentes, e enquanto ele estava em um trem que o levava para seu acampamento final depois de seis meses que o Khmer Vermelho tinha tomado o poder, ele foi tomado por uma terrível percepção.
“Enquanto eu viajava de trem de um distrito para outro, eu não via muitas crianças”, disse ele. Só recentemente foi revelado o que aconteceu a elas.
Quando o comandante da prisão Kaing Guek Eav, mais conhecido como “Duch”, foi a julgamento em 2009 pelos 16 mil cambojanos torturados e mortos em sua prisão S-21 em Phnom Penh, ele foi questionado sobre as alegações de que os guardas haviam executado as crianças batendo suas cabeças contra troncos de árvores.
Duch revelou a política do Khmer Vermelho para as crianças detidas: “Não havia nenhuma vantagem em mantê-las vivas, e elas poderiam se vingar de você” Então, para evitar o risco das crianças crescerem e buscarem vingança para seus pais, eles mataram as crianças e os recém-nascidos.
Oum contou que, durante seu primeiro mês como um prisioneiro, ele sabia que tinha de escapar, mas a oportunidade não se apresentou até que ele foi removido para esse último acampamento. Era em uma cidade chamada Poy Samrong, perto da fronteira com a Tailândia, e que abrigava cerca de 1.000 famílias.
“Quando eu decidi escapar, eu disse a mim mesmo que seria uma viagem sem retorno. Se eu fosse capturado vivo, eles me fariam passar por todas as misérias do mundo na frente dos outros prisioneiros”, disse ele. “Eles não me julgariam. Eles me matariam lentamente.”
Ele começou a deixar de lado o arroz que recebia cada dia, escondendo-o em uma manga que ele havia arrancado de uma camisa. Ele arranjou uma pequena quantidade de medicamento, suficiente apenas para, disse ele, se matar caso fosse capturado.
A viagem não seria fácil. Havia quilômetros de campos abertos que ele teria de atravessar. Guardas o matariam ou prenderiam se o vissem. Um prisioneiro trabalhando em um campo que por acaso o visse precisaria denunciá-lo ou ele próprio seria morto.
Depois dos campos havia a selva, com seus próprios perigos. “Você também tinha que evitar os cães”, disse ele. “Se um cão latisse, eles saberiam onde encontrá-lo e você estaria acabado. Felizmente não havia mais cães. Eles já haviam matado todos os cães naquela época”.
Então, finalmente a oportunidade chegou. Os guardas anunciaram que o primeiro feriado seria realizado em 16 de abril de 1976, para comemorar o dia em que o Khmer Vermelho havia tomado o poder. Aos presos seriam concedidos três dias em que não teriam que trabalhar.
Foi por volta de 19h quando a música começou. A lua estava cheia e brilhante. Os guardas estavam distraídos.
“Eu não senti qualquer medo ou qualquer coisa, confrontado com aquela selva desconhecida”, disse Oum. “Foi uma viagem rumo ao desconhecido. Eu não tinha nenhum instrumento para me guiar. Eu pude contar apenas com a minha fé para fazer isso, porque eu não tinha mais nada”.
“Ao anoitecer, quando não se podia ver muito longe, eu escapei com meu pacote de arroz”, disse ele.
O refúgio
Os campos de arroz se estendiam até onde a vista alcançava. Oum determinou que durante o dia ele precisaria se esconder e dormir no mato alto. Durante a noite, caminhava sobre os montes levantados acima da água nos campos.
A cada noite, ele tentava percorrer 5 ou 6 milhas. Durante o dia, enquanto tentava dormir, ele conseguia ver as pessoas perto das casas que pontilhavam o campo.
Depois de pelo menos 10 dias de caminhada através dos campos, Oum chegou à selva. Lá, ele adotou novas regras para continuar. Ele caminhava durante o dia e à noite ele dormia nos galhos das árvores para evitar os animais que caçavam no escuro. Ele disse: “Eu usei uma corda para amarrar meus braços aos galhos. Era o suficiente para, pelo menos, me acordar a tempo de não cair no chão”.
A selva logo cobrou seu pedágio. Ele contraiu malária. Ele ficou fraco e desorientado e perdeu a noção do tempo.
Ele finalmente chegou a uma aldeia. Na Tailândia, perto da fronteira, muitas pessoas parecem com os cambojanos e falam o idioma cambojano. A aldeia tocava música à noite, e Oum esperou até que eles apagassem as luzes. Ele caminhou ao longo da estrada principal em direção às barracas, “e quando as alcancei, fui perseguido por dois ou três cães, que latiram alto.”
Ao ouvir os cães, um homem apareceu na porta com um rifle e começou a disparar contra ele. Oum correu o mais rápido que pôde. “Eu fazia ziguezagues e assim consegui escapar na escuridão.”
Na noite seguinte, ele chegou a um rio, e percebeu que não tinha forças para atravessá-lo. Ele disse: “Eu encontrei um pequeno refúgio. Era um abrigo sob a grama alta. Cavei um buraco e fui dormir.”
Na manhã seguinte, ele ouviu o som de galhos se quebrando. Oum levantou a cabeça acima do capim alto e viu um homem velho que parecia ser cambojano. Oum estava cansado e sua mente não estava alerta, então decidiu perguntar ao homem qual era o caminho mais curto para a Tailândia.
“Eu preparei o meu discurso em cambojano para dizer a ele que eu queria fugir e chegar à Tailândia e voltar para minha família na França”, disse ele.
O velho ficou surpreso. “Ele disse que não, você já está em solo tailandês, no território da Tailândia.”
Oum caiu de joelhos e abraçou as pernas do homem velho. “Agradeci-lhe muito”, ele disse e falei “Eu estou salvo, eu estou salvo.”
Então, o homem contou a Oum algo que ele nunca vai esquecer. Ele apontou para o rio que ele quase tinha atravessado a noite anterior, e disse: “Não fale muito alto. A 100 metros daqui, se você cruzar esse rio, você estará de volta ao Camboja. Na outra margem do rio está o Khmer Vermelho, e você seria capturado”.
A margem da morte
Infelizmente para Oum, a viagem para a Tailândia não foi o fim de sua provação. Ele foi preso por cruzar a fronteira ilegalmente. Ele foi enviado para uma prisão em Chanthaburi. A cela tinha cerca de 8 metros por 8 metros, e havia cerca de 20 pessoas lá dentro. Lá, a doença de Oum piorou.
Durante a primeira chamada da noite em frente à prisão, Oum disse: “Eu vi uma faísca em frente aos meus olhos e caí.” Quando ele recuperou a consciência, ele estava de volta na cela da prisão.
“Comecei a pensar que eu ia morrer”, disse ele. “Eu lamentei por, depois de superar tantos obstáculos ao longo da fronteira, chegar e morrer em uma prisão na Tailândia.
“Fiquei muito decepcionado ao pensar que não sobreviveria e que não teria a chance de contar às pessoas o que eu queria dizer sobre o meu país”, disse ele. “Este foi o meu pensamento quando estive muito perto de morrer.”
Seus dedos se enrigeceram. Seu corpo começou a tremer. Ele já não era capaz de sentar-se sem ficar tonto e cair para trás. Como médico, ele sabia que iria morrer em breve.
Ele perguntou a um dos guardas se poderia enviar uma carta para a Embaixada da França. Ele foi autorizado a ditar a carta e um outro homem a escreveu. Ele disse simplesmente que ele era um médico do Camboja, que ele estava na prisão, e que “se alguma ajuda não chegasse em três ou quatro dias, eu já não estaria neste mundo.”
O embaixador francês enviou um representante para resgatá-lo. Oum foi levado para um hospital da Tailândia, e em 1º de julho de 1976, ele foi levado a um hospital na França.
Lá, ele pôde ver seus dois filhos novamente. Um deles tinha 9 anos e o outro tinha 4. “Eles gostaram de me ver, mas eu não acho que eles perceberam o que estava realmente acontecendo, ou o que aconteceu comigo”, disse ele. Ele não queria mais falar sobre esta parte.
A vida no exílio
O mundo naquela época ainda não tinha percebido totalmente o que estava ocorrendo no Camboja, e Oum desempenhou um papel crucial em expor os crimes do Khmer Vermelho.
Os jornais publicaram a história de Oum. Em abril de 1978, Oum falou em uma audiência sobre o Camboja organizada pelo Parlamento norueguês em Oslo. O presidente Jimmy Carter enviou uma carta parabenizando-o e aos outros sobreviventes.
“Depois disso, especialmente no Ocidente, na Europa e nos Estados Unidos, começou-se a conhecer um pouco melhor sobre o que realmente havia acontecido”, disse ele.
No entanto, ainda hoje, a situação do povo cambojano não melhorou. O país agora é chamado de monarquia constitucional, mas o seu primeiro-ministro, Hun Sen, do Partido Comunista, está no poder há mais de 25 anos.
Sen é amplamente acusado no Camboja de ser um fantoche do regime comunista vietnamita, e para o povo cambojano isso tem implicações profundas.
Sen foi comandante de batalhão sob o Khmer Vermelho, no leste, perto da fronteira vietnamita, e fugiu para o Vietnã em 1977, quando o Khmer Vermelho conduziu expurgos internos. Mais tarde, ele se tornou um líder dos rebeldes patrocinados pelos comunistas vietnamitas antes de sua invasão final do Camboja, e começou sua carreira política sob o governo comunista vietnamita do Camboja em 1979.
Em agosto de 2014, por ocasião do julgamento do chefe da prisão S-21, a Human Rights Watch acusou Sen de impedir todos os julgamentos significativos contra os assassinatos, trabalhos forçados e outros abusos cometidos pelo Khmer Vermelho.
“O desejo de justiça para as vítimas do Khmer Vermelho foi irremediavelmente manchada por interferência política do primeiro-ministro Hun Sen, o fracasso em trazer mais casos, longos atrasos e a corrupção generalizada”, disse Brad Adams, diretor da Human Rights Watch na Ásia, em uma conferência de imprensa.
Expor esses crimes, disse Oum, “é nossa obrigação moral, para todos nós, a fim de honrar a memória dos inocentes e pessoas anônimas assassinadas.”
“O que deveria ser um dia de celebração da justiça foi na verdade um lembrete das oportunidades perdidas”, escreveu Adams.
Oum está exilado de sua terra natal. Ele não se atreveu a voltar sob o atual regime. No entanto, ele ainda espera que os crimes cometidos contra o seu povo terminarão por conhecer a justiça e um dia o povo será livre da tirania trazida pelo comunismo pela primeira vez sob o Khmer Vermelho, e depois pelos vietnamitas.
“Para mim, falar hoje sobre o comunismo é falar sobre a história da miséria e da desgraça da humanidade que ainda está acontecendo nos dias de hoje”, disse ele.
Expor esses crimes, disse Oum, “é nossa obrigação moral, de todos nós, a fim de honrar a memória dos inocentes e pessoas anônimas assassinadas.”
“É nosso dever para com a memória e a história da humanidade”, disse ele. “É nosso dever moral.”
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