Os smartphones fornecem uma fonte interminável de conexão, informação e entretenimento. Mas um corpo crescente de evidências mostra um lado mais sombrio de nossos hábitos eletrônicos: o vício.
A psicoterapeuta Nancy Colier, em seu livro “O poder de estar desconectado: a maneira consciente de permanecer são num mundo virtual” (tradução livre), traça um padrão de dependência dos dispositivos eletrônicos a partir de pesquisas e da observação do comportamento de seus clientes, família e amigos.
“Para onde estamos indo – para onde vamos com cada vício – é que fica cada vez mais difícil obter alegria no momento presente”, disse Colier. “Estamos neste estado crônico de querer alcançar a nossa substância.”
O vício é uma palavra usada em excesso hoje em dia. Mas quando se trata do uso de smartphones, estudos apontam para comportamentos muito semelhantes ao do abuso de drogas psicoativas.
No projeto “O Mundo Desconectado” da Universidade de Maryland, os pesquisadores descobriram que uma clara maioria dos estudantes de 10 países participantes experimentou sofrimento quando tentaram ficar sem o telefone celular por 24 horas. Estudantes relataram ter medo quando perceberam quão forte era seu vício.
Um estudo de 2011 com jovens entre 16 a 22 anos descobriu que mais de metade desses chamados “nativos digitais” preferem perder seu sentido do olfato do que seu smartphone.
Em 2013, pesquisadores do Cohen Children’s Medical Center em Nova York estimaram que mais de 3 mil mortes de adolescentes e 300 mil ferimentos por ano resultam de mensagens de texto durante a condução, tornando-se a principal causa de morte entre motoristas adolescentes nos Estados Unidos.
Talvez seja porque não engolimos ou fumamos os dispositivos eletrônicos, ou porque tantas pessoas compartilham um grande apego a eles, que permanecemos cegos para esse vício mesmo quando ele está na nossa cara. Um dos clientes de Colier, um produtor de notícias de televisão em seus 20 anos, sempre traz dois smartphones para suas sessões de terapia. Eles descansam um em cada braço da cadeira e ele olha para eles pelo menos uma vez por minuto, mantendo-se em contato constante com seu escritório enquanto ele está ausente do trabalho.
É um exemplo extremo, mas qualquer pessoa com um smartphone reconhece a comichão. Se não estamos procurando obsessivamente o próximo texto ou e-mail, estamos percorrendo nossos aplicativos recreativos como se fosse um tique nervoso. Um estudo descobriu que o usuário médio de smartphones clica ou desliza o dedo na tela mais de 2.600 vezes por dia; enquanto usuários intensos fazem isso 5.500 vezes por dia.
Desespero pela distração
Numerosos fatores contribuem para o vício da tecnologia. Por exemplo, estudos sugerem que a validação que recebemos da mídia social age como um gatilho de dopamina e oxitocina, muito similar ao mecanismo das drogas.
Mas o nosso vício em tecnologia é mais do que apenas uma resposta química, nossos relacionamentos, autoestima e senso de significado sofrem como resultado, diz Colier. “Isso alimenta esse medo primordial de parar e estar com nós mesmos”, comentou ela.
Os seres humanos sempre procuraram a distração, mas antes dos celulares havia muito menos oportunidades para isso. Agora que todos nós carregamos um dispositivo de distração, nunca temos de estar sozinhos com os nossos pensamentos.
Desta forma, o uso obsessivo de mídias eletrônicas é o oposto de estar consciente ou em meditação, que foi mostrado ser capaz de aguçar a nossa atenção e foco. Um estudo de 2015 da Microsoft mostra que o nosso crescente hábito de multitarefa entre múltiplos aplicativos torna “difícil filtrar estímulos irrelevantes”. Os pesquisadores também descobriram que desde o ano 2000 (pouco antes de a tecnologia móvel decolar), a atenção média caiu de doze para oito segundos.
“Nós nos tornamos tão hipermaníacos em encontrar respostas fora de nós mesmos que não olhamos para onde estão as verdadeiras respostas: dentro de nós mesmos”, disse Colier.
Para as pessoas que dependem muito da tecnologia para o seu sentido de identidade, o hábito pode ser danoso. Estudos mostram que as crianças que passam mais tempo na mídia social são mais propensas a sofrerem com baixa autoestima, problemas de saúde mental e habilidades sociais deficientes.
Ao contrário de amizades reais, cara-a-cara, as amizades digitais que as crianças agora cultivam são passageiras, diz Colier.
“Existe uma noção falsa de que quanto mais ‘curtidas’ eu atrair, mais eu gostarei de mim mesma, mas isso só dura cerca de seis ou sete segundos”, disse ela. “Estamos perdendo o contato com o que realmente nutre um ser humano. Estamos adotando os valores de popularidade e facilidade e aplicando-os às questões mais amplas da vida.”
Os seres humanos são naturalmente atraídos pelo conforto rápido e o escapismo que a tecnologia móvel oferece. Mas gastar todo o nosso tempo num mundo de gratificação instantânea nos custa algo mais valioso.
“Se você quer um namorado, basta indicar isso deslizando o dedo para a direita na tela. Se você quiser sentir que tem propósito, basta sinalizar com sua foto no Facebook. Tudo o que você quer está aqui, e tudo é superfácil”, disse Colier. “O problema é que a verdadeira autoestima é construída ao longo do tempo e com esforço. São as coisas que são difíceis, com as quais realmente trabalhamos ao longo do tempo, que criam verdadeira autoestima.”
Um usuário atento
Um norte-americano típico usa algum tipo de mídia, incluindo rádio, televisão, computadores e smartphones, mais de 10 horas por dia, de acordo com um relatório Nielsen 2016.
Os dispositivos eletrônicos monopolizam nossas vidas de vigília e, para alguns de nós, até o sono; 90% das pessoas entre 18 a 29 anos dormem com seus smartphones, assim como 70% das entre 30 a 49 anos, de acordo com uma pesquisa de 2010.
Uma intolerância pelo tédio e um medo de perder algo são os impulsos identificáveis que nos mantêm agarrados aos nossos dispositivos, mas o design manipulativo na própria tecnologia também desempenha um papel.
De acordo com Tristan Harris, um designer de software no Vale do Silício que se tornou um campeão da ética digital, nossos dispositivos e aplicativos são minuciosamente criados para nos manter colados à tela.
A prática conhecida como design de comportamento é essencial para uma indústria onde tantos aplicativos competem por nossa atenção. Muito planejamento e concepção estão envolvidos em decisões sobre o design sutil que garante que continuaremos engajados na tecnologia.
O grupo de defesa de Harris, Time Well Spent, apela aos criadores de produtos para criarem software que não explore nossas vulnerabilidades psicológicas. Harris acredita que os produtos podem ser projetados para tornar mais fácil para nós afastar-se da tela e se concentrar no que realmente importa.
Mas até que o Vale do Silício enxergue o valor em projetar seus produtos com integridade moral, recai sobre nós a responsabilidade de manter nosso vício da tecnologia sob controle.
Em vez de rejeitar a tecnologia abruptamente, Colier tem algumas sugestões.
“Existem algumas ferramentas incríveis e benefícios na tecnologia, mas queremos readquirir o controle de modo que estejamos decidindo como usamos a tecnologia, ao invés de ser seu escravo”, disse ela.
A abordagem de Colier começa com a conscientização. Quando você sentir aquela coceira habitual para verificar mensagens, jogar um jogo ou buscar detalhes sobre o último escândalo de celebridades, pergunte primeiro o que você pode estar tentando evitar.
“Nós questionamos para que o pensamento impulsivo se torne uma oportunidade de verificar o que está acontecendo, ao invés de uma oportunidade para nos anestesiarmos”, disse Colier.
Uma vez que você é capaz de capturar o momento (em vez de seu telefone), pergunte-se o que você realmente quer. Em seguida, experimente alguns novos comportamentos. Você dorme melhor se desligar os aparelhos uma hora antes de dormir? Você fica mais calmo se sai para passear 10 minutos por dia sem tecnologia? Existe mais intimidade em seus relacionamentos quando você desliga o telefone durante o jantar?
Desta forma, cada momento que você sacrificou anteriormente em favor de seu dispositivo torna-se agora uma oportunidade para melhorar sua qualidade de vida.
Gerenciando o tempo de tela para crianças
Para aqueles que podem se lembrar de uma vida antes dos celulares, nós pelo menos temos uma base familiar para o qual podemos retornar. Para as gerações mais jovens, no entanto, a vida com uma tela sempre por perto é tudo o que eles conhecem. E uma vez que a tecnologia móvel é uma característica tão arraigada na cultura jovem de hoje, o hábito da tecnologia é ainda mais difícil de quebrar.
“Houve tanto estresse para fazer minha filha afastar-se disso, e todas as brigas de família em casa eram em torno da tecnologia”, disse Colier. “Eu testemunhei em primeira mão como é viver com um viciado. Eu vi as mudanças na personalidade, as mudanças de humor e o desespero.”
Os especialistas recomendam que antes que os maus hábitos da tecnologia se afirmem, os pais devem colocar limites no uso da tela por seus filhos, mesmo para recém-nascidos. De acordo com a Academia Americana de Pediatria, crianças menores de 2 anos de idade devem evitar qualquer exposição a telas, exceto para conversar por vídeo com familiares distantes, por exemplo. Crianças de 2 a 5 anos não devem estar expostas mais de uma hora por dia, e é fundamental que este tempo seja gasto em programação educacional de alta qualidade.
De acordo com a Dra. Jean Moorjani, pediatra do Hospital Arnold Palmer para Crianças, não há uma medida única do tempo de exposição para crianças em idade escolar. Em vez disso, a questão é a qualidade da mídia que os pais permitem.
“É muito diferente se a criança está assistindo a um filme ou jogando videogame em relação a estar realmente criando algo, como aprendendo programação ou desenvolvendo um projeto”, disse Moorjani. “O que realmente queremos é que os pais se envolvam e ajudem a orientar seus filhos para se tornarem bons guias digitais do que eles fazem online.”
No passado, os pais só tinham de ensinar aos seus filhos como serem inteligentes e hábeis no mundo real, mas agora os pais têm de aplicar essas lições para o mundo online também. Por esta razão, Moorjani não é contra adolescentes usarem redes sociais, mas ela diz que é crucial que eles entendam que o que eles compartilham pode ficar lá para sempre.
“O que você acha que é privado, nem sempre continuará privado”, disse ela. “É difícil para os adolescentes entenderem que as consequências dessas coisas podem ser graves.”
Outra consideração é certificar-se de que os dispositivos não prejudiquem uma vida saudável no mundo real.
“Olhando para uma tela você perde o contato face-a-face. Para crianças e adolescentes é muito importante que eles tenham tempo com suas famílias, que tenham essa interação”, disse Moorjani.
Os avanços tecnológicos prometeram tornar nossas vidas mais fáceis e mais conectadas, mas para muitos de nós, estar diante de uma tela o dia inteiro e estar disponível eletronicamente todos os dias sem cessar tornou-se mais uma maldição do que uma bênção. Como resultado, há um movimento crescente em direção a simplificar a vida e eliminar as distrações eletrônicas.
Por outro lado, muitos usuários estão ansiosos por um futuro que seja ainda mais tecnologicamente imersivo. No ano passado, o CEO do Facebook, Mark Zuckerberg, anunciou que sua equipe está trabalhando para criar novas experiências de mídia social que os usuários teriam acesso por meio de um dispositivo de realidade virtual.
Colier diz que não importa quão avançada a tecnologia se torne, cada momento ainda nos permite uma escolha para decidir que tipo de vida queremos.
“Tenho esperanças de que o espírito humano prevalecerá e que reobteremos o controle de como queremos usar isso, porque você não pode nutrir o coração humano com gigabytes”, disse ela. “Temos de recuperar o hábito de criar para nós um lugar de valores e significado.”