Parceria entre editora acadêmica e gigante chinesa da internet levanta questões sobre liberdade acadêmica

09/01/2018 15:54 Atualizado: 09/01/2018 15:54

A parceria entre uma empresa chinesa de internet e uma editora alemã de periódicos focados principalmente na pesquisa científica tem levantado preocupações de que o regime chinês usará a empresa ocidental para falar em seu nome, ao mesmo tempo em que censura a informação que contrarie seus interesses.

Em 4 de novembro, a Tencent Holdings Ltd., um conglomerado chinês que fornece serviços de internet e telecomunicações, e a Springer Nature, uma editora de revistas de pesquisa acadêmica, anunciaram uma parceria, na qual as duas empresas promoverão a ciência em conjunto e ajudarão jovens cientistas, de acordo com o Diário do Povo, um jornal estatal porta-voz do regime chinês.

O acordo passou por um grande escrutínio de acadêmicos que acreditam que o movimento sufocará a liberdade acadêmica, devido à tendência da China de censurar o conteúdo que não concorda.

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Na cerimônia de assinatura da parceria, Cheng Wu, vice-presidente da Tencent, disse que o acordo ajudaria os jovens cientistas a se conectarem com a indústria e garantir o financiamento de capital, além de apoiar projetos científicos em todo o mundo que possam precisar de investimentos de longo prazo.

A Springer Nature também se tornará oficialmente parceira do WE Summit da Tencent, um fórum anual onde os principais cientistas e profissionais se reúnem para compartilhar ideias sobre ciência e tecnologia.

A parceria foi anunciada apenas alguns dias depois que a Springer disse que bloqueou o acesso a uma parte de seus artigos online – aqueles com palavras-chave como Taiwan, Tibete e Revolução Cultural – para atender às demandas do regime chinês, de acordo com a Reuters. Pequim considera esses temas controversos, pois questionam a legitimidade do Partido Comunista Chinês e revelam sua história sombria.

China, Springer Nature, Tencent, censura, liberdade acadêmica - O logotipo, numa tela de um notebook, da plataforma chinesa de mensagem instantânea WeChat, que foi desenvolvido pela companhia de telecomunicações Tencent, em 12 de março de 2014 (Peter Parks/AFP/Getty Images)
O logotipo, numa tela de um notebook, da plataforma chinesa de mensagem instantânea WeChat, que foi desenvolvido pela companhia de telecomunicações Tencent, em 12 de março de 2014 (Peter Parks/AFP/Getty Images)

Embora a Springer Nature tenha publicado um comunicado dizendo que menos de 1% de seus artigos foram removidos, o Financial Times estimou que mais de mil artigos da revista International Politics e do Jornal de Ciência Política Chinesa foram bloqueados.

“Um exemplo das recompensas chinesas concedidas a empresas e indivíduos por satisfazer as regras do governo chinês é o caso da editora Springer Nature“, disse o representante estadunidense Chris Smith (R-N.J.) numa audiência da Comissão Executiva do Congresso sobre a China em 13 de dezembro em Washington. Smith é copresidente da comissão encarregada de monitorar os direitos humanos e o estado de direito na China.

Smith acredita que a decisão da Springer Nature significava que a editora precisava “cumprir com as diretrizes de censura da China e depois foi ‘recompensada’ por sua censura assinando uma lucrativa parceria estratégica com a gigante chinesa Tencent Holdings“.

A Springer Nature não é a primeira editora internacional a curvar-se sob a pressão da China. Em agosto, a Cambridge University Press, uma editora do Reino Unido, bloqueou o acesso online na China a cerca de 300 artigos – temas como o Massacre da Praça da Paz Celestial de 1989, a Revolução Cultural e o Tibete –, acedendo a um pedido do regime chinês, de acordo com a Reuters. A editora do Reino Unido eventualmente reverteu sua posição e republicou esses artigos online após um protesto da comunidade acadêmica.

China, Springer Nature, Tencent, censura, liberdade acadêmica - Pessoas se reúnem num estande da Cambridge University Press numa Feira Internacional do Livro em Pequim em 23 de agosto de 2017 (Greg Baker/AFP/Getty Images)
Pessoas se reúnem num estande da Cambridge University Press numa Feira Internacional do Livro em Pequim em 23 de agosto de 2017 (Greg Baker/AFP/Getty Images)

O impacto da parceria não se limita apenas a China, de acordo com a professora Lynette Ong, uma especialista em China e Ásia da Universidade de Toronto.

“A parceria entre uma grande empresa de mídia chinesa e a Springer provavelmente [significará que a Springer Nature] não terá dúvidas em censurar seu conteúdo dentro ou fora da China, por razões comerciais ou políticas”, disse Ong, numa entrevista por e-mail.

Ela acrescentou: “Isso não é bom para a liberdade acadêmica nos EUA, no Canadá ou em qualquer outro lugar.”

A Tencent tem sua própria agenda nessa parceria, de acordo com uma reportagem de 6 de novembro publicada no Finet.hk, um website de notícias de negócios de Hong Kong administrado pelo Grupo Finet, uma empresa de investimentos que fornece serviços de informação financeira e soluções tecnológicas.

“A [Springer] Nature pode basicamente entregar a lista mais recente e mais atualizada dos endereços de e-mail de todos os melhores cientistas”, afirmou o artigo. Por sua vez, a Tencent poderia usar essa lista para recrutar pessoal para o seu próprio laboratório de inteligência artificial, localizado no centro tecnológico chinês no sul da cidade de Shenzhen, e seu YouTu Lab, com escritórios em Xangai e Hefei, dedicado ao processamento de imagens, reconhecimento de padrões, aprendizado de máquinas e mineração de dados.”

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