A origem ‘Frankenstein’ do BRICS e seu futuro obscuro — Parte I

05/09/2017 00:21 Atualizado: 08/09/2017 11:17

Nos últimos anos, muito tem se falado em ‘economias emergentes’: países que representariam a possibilidade de “libertação” da condição de uma economia subdesenvolvida para um ator relevante nas relações internacionais. Dentre os ditos ‘emergentes’, talvez o conjunto de países com maior destaque seja o BRICS — Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul — os quais apresentaram indicadores econômicos interessantes durante um período em que a maior parte das economias “centrais” enfrentava dificuldades em meio à crise financeira internacional; ademais, a atuação internacional conferiu proeminência política a esses países emergentes, atraindo ainda mais holofotes a essa sigla. No entanto, hoje a comunidade internacional já não encara o BRICS com a mesma “euforia” de alguns anos atrás, dando a impressão de que ele de alguma forma sumiu um pouco do radar.

Revisitemos então um pouco a história desse bloco de países: o quão grande é a relevância de cada um dos membros no cenário geopolítico global, como esses cinco países se juntaram nessa coalizão, as semelhanças e diferenças entre os membros constituintes e alguns fatores que têm conduzido esse bloco para a prosperidade ou para o fracasso.

Primeiramente, vamos apresentar alguns dados gerais sobre os países do BRICS que fornecem um panorama básico sobre a importância de cada um de seus membros:

Área do território:

            Brasil: 8.515.767 km² — 5º maior do mundo

            Rússia: 17.098.246 km² — 1º maior do mundo

            Índia: 3.287.263 km² — 7º maior do mundo

            China: 9.596.961 km² — 3º maior do mundo

            África do Sul: 1.221.037 km² – 24º maior do mundo

População:

            Brasil: 207.700.000 habitantes — 5º maior do mundo

            Rússia: 146.804.372 habitantes — 9º maior do mundo

            Índia: 1.318.180.000 habitantes — 2º maior do mundo

            China: 1.384.130.000 habitantes — 1º maior do mundo

            África do Sul: 55.426.000 habitantes – 25º maior do mundo

Produto Interno Bruto (nominal) [Banco Mundial, 2016]:

            Brasil: US$ 1,79 trilhão — 9º maior do mundo

            Rússia: US$ 1,28 trilhão — 12º maior do mundo

            Índia: US$ 2,26 trilhões — 7º maior do mundo

            China: US$ 11,2 trilhões — 2º maior do mundo

            África do Sul: US$ 312,7 bilhões — 33º maior do mundo

Volume de exportações [CIA World Factbook, estimativas de 2016]:

            Brasil: US$ 189 bilhões — 23º maior do mundo

            Rússia: US$ 259 bilhões — 19º maior do mundo

            Índia: US$ 262 bilhões — 18º maior do mundo

            China: US$ 2,09 trilhões — 1º maior do mundo

            África do Sul: US$ 83 bilhões — 38º maior do mundo

Volume de importações [CIA World Factbook, estimativas de 2016]:

            Brasil: US$ 143 bilhões — 30º maior do mundo

            Rússia: US$ 165 bilhões — 24º maior do mundo

            Índia: US$ 381 bilhões — 12º maior do mundo

            China: US$ 1,58 trilhão — 2º maior do mundo

            África do Sul: US$ 85 bilhões — 35º maior do mundo

A partir destes dados, já é possível notar que não se trata de países quaisquer: os cinco países juntos representam cerca de 40% da população mundial e aproximadamente 22% do PIB do mundo todo. Além disso, todos são economias de destaque a nível pelo menos continental.

A comunidade internacional já não encara o BRICS com a mesma euforia de antes, dando a impressão de que ele sumiu um pouco do radar.

O rápido crescimento econômico do BRICS, aliado ao cenário de recessão mundial nos anos subsequentes à crise do subprime, fez com que esses cinco países obtivessem ampla projeção internacional, na medida em que, embalados pelo desempenho econômico, o BRICS passou a ter uma inserção mais ativa em outros aspectos da governança global, como comércio internacional e meio ambiente. Por outro lado, seus cinco membros possuem notáveis diferenças entre si, sendo bastante heterogêneos não só na cultura e nos costumes, mas também na configuração econômica, na orientação da política externa e na maneira como encaram uns aos outros. Compreender essas diferenças é fundamental para entender a falta de uma identidade mais forte do BRICS e em que sentido essas diferenças acabam constituindo uma complexa teia de interesses que condicionam a ação do bloco como um conjunto, bem como o futuro dessa coalizão.

Vamos explorar em detalhes cada um desses aspectos. Primeiramente, vamos analisar o cenário no qual o BRICS surgiu, bem como as circunstâncias no sistema internacional que lhe proporcionaram o destaque nos anos recentes.

Globalização e a onda do multilateralismo: os ‘primeiros emergentes’

O termo ‘globalização’, que tanto tem se propagado nos últimos anos, já deixou de ser um conceito e se tornou uma realidade de uma pessoa do século XXI: a partir da tela de um smartphone, qualquer um pode efetivamente se conectar aos mais longínquos cantos do planeta em frações de segundo. As transformações tecnológicas provocaram uma integração sem precedentes entre os indivíduos e as nações — não necessariamente no sentido de união, mas no da praticidade. O advento dessas transformações da ‘era digital’ coincidiu com um dos principais pontos de inflexão da história da política internacional: o fim do chamado “bipolarismo”.

O sistema ‘bipolar’ era basicamente o cenário geopolítico que se manteve entre o fim da Segunda Guerra Mundial (1945) e a dissolução da União Soviética (1991), com o mundo polarizado entre duas superpotências atômicas: Estados Unidos, representando o ‘capitalismo’, e União Soviética, representando o ‘socialismo’. Apesar de esses dois países não terem entrado em conflito armado direto entre si, suas influências atingiram o resto do mundo, formando diversos palcos de conflitos indiretos (Guerra da Coreia, Crise dos Mísseis de Cuba, Guerra do Vietnã, etc.), além do constante embate no âmbito ideológico entre os dois lados. Este período ficou conhecido como ‘Guerra Fria’.

Com o fim da União Soviética, a globalização inaugurou uma era de “multipolarismo”, ploriferando acordos de “integração” econômica e coalizões políticas.

Com o fim da União Soviética, porém, o sistema político internacional não se transformou num “unipolarismo” com os Estados Unidos no centro absoluto. Pelo contrário, a globalização fez com que o grau de interdependência entre os países aumentasse, permitindo o surgimento de novos ‘polos’, inaugurando uma era de “multipolarismo”, em que mais países teriam voz no processo decisório internacional. Isso se refletiu na multiplicação de acordos de “integração” econômica internacional e coalizões políticas. O BRICS foi justamente uma dessas coalizões.

Entendendo esse contexto que propiciou que alianças multilaterais entre países do globo “brotassem” com mais facilidade, é possível notar o papel que as economias ditas ‘emergentes’ representam para a chamada ‘nova ordem mundial’, em substituição à “ordem antiga” da Guerra Fria: por um lado, os países desenvolvidos (também chamados de ‘centro’); e de outro, os subdesenvolvidos (também chamados de ‘periferia’, ou ainda ‘países em desenvolvimento’, esta última terminologia mais popular nos últimos anos); os ‘emergentes’ representam uma possibilidade de ‘transição’ para os países de menor destaque internacional, os quais, a partir do crescimento econômico, aos poucos adquirem cacife para se juntar ao “clube” dos países com maior prestígio. A inserção desses “novos atores” é um dos principais fatores que definem a ordem mundial no pós-Guerra Fria.

A primeira “onda” de ‘emergentes’ foram os chamados Tigres Asiáticos — Taiwan, Coreia do Sul, Singapura e Hong Kong — os quais ganharam destaque ainda durante a Guerra Fria, por apresentarem altos níveis de crescimento econômico, orientados principalmente pela exportação. Não se limitando à esfera econômica, os ‘tigres’ demonstraram consistência na evolução de indicadores sociais, tornando-se referências em educação e produção intelectual.

A ascensão dos tigres deixou claro que era possível se juntar ao “clube do centro”, e foi acompanhada por outros países asiáticos que mostraram ímpeto semelhante, tanto que motivaram a alcunha de ‘Novos Tigres’ os países: Indonésia, Filipinas, Tailândia e Malásia. Enquanto o mercado asiático crescia freneticamente e atraía a atenção do mundo, as turbulências que viriam a seguir mostraram que era necessário cautela:

Em 1997, uma crise financeira assolou a Ásia, contagiando grande parte da economia mundial e afetando seriamente os tigres (tanto os originais quanto os novos). Deflagrada por uma crise cambial na Tailândia, o câmbio dos países asiáticos despencou drasticamente, ocasionando grandes perdas para investidores estrangeiros e catalisando um efeito dominó, de desvalorização dos mercados acionários e fuga de capital, que se alastrou por economias como Japão, Rússia e Brasil (o chamado ‘efeito samba’, no início do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso). Os tigres sofreram com altos índices de desemprego e a falência de empresas de grande porte (em especial a Indonésia e a Coreia do Sul), o que acabou por afetar significantemente até mesmo o cenário político desses países, acarretando a queda de vários governos então vigentes, contribuindo indiretamente, inclusive, para a independência do Timor Leste, em meio ao colapso econômico da Indonésia; o desempenho econômico de alguns dos tigres levou anos para se recuperar, e sem a plenitude do seu auge.

A suposta “identidade” do BRICS surgiu de forma arbitrária, imputada de fora, ao invés de ser resultante da ação propriamente dita dos países que constituem essa sigla.

A experiência dos tigres demostrou que a ascensão no sistema internacional é possível, mas também evidenciou que um bom desempenho econômico está longe de prover “blindagem” às oscilações da economia de mercado, que podem levar a catástrofes — em especial, considerando o incômodo fato de que atrair investidores estrangeiros frequentemente atrai também investimentos especulativos. Por exemplo, o famoso (e infame) bilionário George Soros — que ganhou US$ 1 bilhão especulando contra a libra esterlina em 1992 — foi responsabilizado pelo governo da Malásia como um dos principais especuladores que teriam contribuído para a derrocada do câmbio da moeda local.

Hoje, grande parte dos tigres são considerados economias emergentes de grande potencial ou mesmo membros “aceitos” no “clube do centro” — como o caso da Singapura, que atualmente é reconhecidamente um país ‘desenvolvido’.

A emergência de novos atores relevantes no cenário internacional motivou os países ‘subdesenvolvidos’ a entrar em ação. Foi nesse contexto que o BRICS germinou, e o sucesso que estes cinco países viriam obter nos anos subsequentes aqueceu ainda mais as expectativas quanto à inserção cada vez maior de países tradicionalmente mais afastados do núcleo do processo decisório das relações internacionais.

A ascensão dos emergentes e a “morte do G-8”: a atuação internacional dos países do BRICS

Formalmente, o BRIC surgiu apenas em 2009, ainda sem a participação da África do Sul, que adentrou o grupo em 2010, formando o ‘BRICS’ que se conhece hoje. No entanto, os quatro países pioneiros — Brasil, Rússia, Índia e China — já eram referenciados em conjunto desde 2001 como um grupo de emergentes promissores. Cunhado pelo americano Jim O’Neill, do banco de investimentos Goldman Sachs, o termo ‘BRIC’ surgiu conjuntamente numa grande lista de países semelhantes que o economista classificou como sendo os próximos aspirantes a entrar para o “clube do centro” chamados de ‘os próximos onze’ (‘the next eleven’ ou ‘N-11’): México, Irã, Nigéria, Vietnã, Turquia, Coreia do Sul, Egito, Paquistão, Bangladesh e Filipinas.

A suposta “identidade” do BRIC (posteriormente BRICS) surge, portanto, de forma artificial e arbitrária, como algo imputado por uma fonte externa, ao invés de ser resultante da ação propriamente dita dos países que constituem essa sigla. Desde o princípio, a união dos países do BRIC se deveu mais à conveniência do que a uma aliança estratégia de fato. Dado que “o BRIC” já possuía então um status de destaque a nível regional e presença internacional de certa magnitude, investidores internacionais e governos ao redor do mundo “compraram a ideia” de amarrar esses quatro países numa única sigla, como um símbolo dos países emergentes que estariam se esforçando para crescer economicamente. A situação era bem semelhante à dos Tigres Asiáticos e dos Novos Tigres, os quais nunca assinaram um acordo formalizando a criação de uma instituição ou aliança chamada ‘Tigres’, mas que, ainda assim, são referenciados em conjunto, não porque sejam um bloco homogêneo, mas por simbolizarem a ideia de transição entre o mundo ‘em desenvolvimento’ e o mundo ‘desenvolvido’. De fato, hoje, em 2017, você talvez não saiba quem são os ‘N-11’, essa sigla não causa impactos significantes e de certa forma foi relegada ao ostracismo; porém, a cada ano, novas siglas surgem, amarrando países “com potencial” que não necessariamente têm algo em comum além do índice de crescimento do PIB, mas passando a impressão de que são membros de uma “nova fraternidade” destinada a desafiar os países desenvolvidos.

Desde o princípio, a união dos países do BRICS se deveu mais à conveniência do que a uma aliança estratégia de fato.

Então, porque o BRIC conseguiu o destaque que conseguiu? O BRIC realmente ganhou atenção com a crise dos subprimes, que levou abaixo instituições financeiras renomadas (Freddie Mac, Fannie Mae, Lehman Brothers, Merrill Lynch, AIG, e tantos outros), e que atingiu o mundo em 2008 e 2009, gerando um clima generalizado de recessão na economia global. Foi neste contexto que os emergentes deixaram de ser um prospecto e passaram realmente a fazer frente a economias tradicionalmente “centrais”, representadas pelo chamado grupo dos oito (G-8) — grupo de países constituído em 1976 (ainda como ‘G-7’) que abarca as sete principais economias do mundo: Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido, França, Japão, Canadá e Itália. Em 1997, a Rússia também foi incorporada, formando-se o G-8.

Em meio às proporções que a crise tomou, as economias do G-8 viveriam anos de instabilidade. Foi nesse contexto que o BRIC, em 2009, finalmente saiu do mundo das ideias e se apresentou ao mundo como uma coalizão real. No ano seguinte, a África do Sul adere ao grupo oficialmente, que atualiza o nome para ‘BRICS’.

Os cinco países do BRICS certamente lograram êxito em ampliar sua presença no cenário internacional, numa conjuntura em que grande parte do mundo ainda se recuperava do baque da crise de 2008.

Aproveitando o destaque nos indicadores econômicos, os países do BRICS têm evidenciado suas ambições políticas em variadas dimensões das relações internacionais. O Brasil, por exemplo, buscou aumentar sua presença na agenda de comércio e de meio ambiente, sediando a cúpula da RIO+20 (conferência das Nações Unidas que discutiu sobre mudanças climáticas e desenvolvimento sustentável), em 2012, bem como elegendo Roberto de Azevêdo para o cargo de diretor-geral da OMC, em 2013. Ademais, é possível notar que os ‘BRICS’ buscaram incrementar sua visibilidade mediante a organização de grandes eventos como um meio de usá-los como vitrine para divulgar a imagem de “potências emergentes” — exemplos são os Jogos Olímpicos de Pequim (2008 e 2022), Sochi (2014) e Rio de Janeiro (2016) e as Copas do Mundo de Futebol de 2010 (África do Sul), 2014 (Brasil) e 2018 (Rússia).

Os cinco países do BRICS certamente lograram êxito em ampliar sua presença no cenário internacional, numa conjuntura em que grande parte do mundo ainda se recuperava do baque da crise de 2008. Por um momento, viveu-se um clima de otimismo entre as economias emergentes, que vislumbraram a oportunidade de introduzir novos “polos” de influência na ordem global. O ministro das relações exteriores do Brasil durante os dois governos Lula, Celso Amorim, chegou a declarar em 2011 que o “G-8 está morto”, referindo-se ao declínio das economias centrais após a crise e o deslocamento do eixo de poder em favor dos emergentes, enfatizando a necessidade de se “rever” a estrutura de poder definida no pós-Segunda Guerra. Essa bandeira foi aclamada pelos ‘países periféricos’, que se animaram para ser os “próximos da fila”. Mas seria o BRICS um representante plausível para esse anseio? As clivagens entre os cinco países que o constituem mostram que não.

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