Golpes furiosos, combates mortais, disputas sangrentas e, porque não, apresentadores engraçados, fazem parte da mitologia moderna do kung fu. Entretanto, para a surpresa de muitos, nada disso é kung fu de verdade.
O kung fu assim como outras técnicas marciais (Wǔshù 武術) promovidas pelos filmes de lutas dos anos 1980 — principalmente os produzidos em Hong Kong —, fascinaram o ocidente. Desde então, as artes marciais foram amplamente difundidas mundo afora.
Poucos percebem todavia que entre as cenas dos filmes de luta e a verdadeira essência e profundidade do kung fu existe uma grande lacuna.
Atualmente, o que vem sendo popularizado sobre as artes marciais é apenas a casca, que tem deixado de fora o significado interno, ou seja, um rico caminho de aprimoramento moral.
Historicamente na China, as artes marciais são irmãs da dança e coexistem há cinco mil anos. Não é por acaso que o termo “Wǔ武”, que se traduz como “marcial”, possui a mesma pronúncia para dança (Wǔdǎo 舞蹈) em chinês.
Os verdadeiros mestres do kung fu, mesmo quando estão lutando, manifestam tamanha beleza que parecem estarem dançando.
Enquanto a dança era utilizada para louvar os deuses e os ancestrais, as artes marciais foram usadas para combater a maldade; nunca utilizadas para infligir dano, mas sim para proteger a sociedade.
O kung fu está intimamente relacionado ao cultivo espiritual, principalmente, através da escola Tao (Dao) a qual possui muitos praticantes de kung fu, devido a seus métodos envolverem o cultivo do interior (coração e mente) e o exterior (corpo). Os praticantes de kung fu do passado focavam em cultivar a virtude, alcançar a técnica marcial perfeita, nutrir a longevidade, aprimorar as condições físicas e prevenir a violência.
A história no cinema
Apesar de ter sobrevivido a incontáveis turbulências na história chinesa, o verdadeiro Wǔshù desapareceu quase que completamente quando o Partido Comunista Chinês (PCC) tomou poder em 1949. Desde então, o PCC tem prosseguido com a destruição sistemática da cultura tradicional chinesa de 5 mil anos.
Durante a Revolução Cultural, entre as décadas de 1960 e 1970, as artes tradicionais chinesas, incluindo as marciais, foram proibidas de serem praticadas. Muitos grandes mestres de kung fu foram forçados a parar de praticar, outros morreram tentando resistir. Nas décadas seguintes muitos acabaram perecendo.
Assim como tantos outros aspectos da cultura tradicional chinesa, o Wǔshù foi esquecido, reaparecendo somente nos anos 1980 através dos filmes de luta de Hong Kong; estes, por sua vez, inspirados pelos filmes de artes marciais japoneses, como os legendários filmes do diretor Akira Kurosawa.
Essa tendência gerou um número avassalador de fãs de kung fu ao redor do mundo, onde muitos se dedicaram a aprender e ensinar suas técnicas. Porém, como resultado da forte redução da tradição na China, era quase impossível se encontrar uma escola real. Na verdade, quase ninguém mais sabia ou realmente levava em conta que no Wǔshù clássico e verdadeiro, o cultivo do interior é o requisito absoluto, essencial e primário.
Os filmes oriundos de Hong Kong carecem desse aspecto vital e não puderam se consagrar como lendas do cinema. O motivo principal foi o enfoque dado apenas ao entretenimento e a satisfação instantânea. Já os filmes japoneses se tornaram lendas do cinema, porque conseguiram resgatar boa parte do significado profundo das artes marciais.
A cultura do Japão provêm da China, enquanto a cultura tradicional da China era banida e destruída pelo regime comunista, o Japão a preservou e adaptou; influenciando assim o Wǔshù, o jogo de tabuleiro Go, a cerimônia do chá, a cerâmica, etc.
O famoso diretor e ator japonês Akira Kurosawa (1910-1988), apelidado de “o imperador”, tornou o Wǔshù famoso com seus 88 filmes. “Os Sete Samurais” (1954) e “Rashomon” (1950) estão entre o mais conhecidos e influentes.
Kurosawa era um genuíno descendente de Samurai. Na cultura Samurai, é considerado de suma importância os princípios: honestidade, coragem, compaixão, respeito, honra, honestidade e lealdade; esses são, de fato, alguns dos princípios básicos para o comportamento humano dentro da cultura chinesa tradicional.
Kurosawa baseou seus personagens nestes princípios, de modo que os seus filmes de artes marciais ficaram eternizados como material didático sobre o comportamento correto do homem.
O Wǔshù “Moderno”
O Wǔshù, essencialmente é uma técnica de auto-cultivo, mas que hoje se transformou meramente em um conjunto de técnicas praticadas para competição, luta e busca de benefícios pessoais. A maioria dos jovens ocidentais e chineses não imaginam qual é a verdadeira herança deixada pelas artes marciais.
Mesmo o milenar kung fu, hoje em dia, é considerado uma mera prática de luta. O Taichi, também uma vertente marcial, não possui mais a essência do passado.
O Tai Chi Chuan (tàijí quán) foi desenvolvido pelo praticante taoísta, Zhang Sanfeng, durante a dinastia Ming (1368-1644). Era parte da Escola Tao para o cultivo interno. O Tai Chi Chuan usa a energia interna; os seus movimentos são suaves e lentos fazendo a suavidade dominar a força. No entanto, com o passar do tempo, o Taichi perdeu a parte mais importante – o cultivo interno e começou a se distorcer. Agora abundam ensinamentos em todo o mundo por pessoas que se autodenominam “Mestres” e comercializam a arte, mas isso não tem nada a ver com o Taichi original.
Felizmente, em Taiwan se tem salvaguardado parte da cultura tradicional chinesa. Atualmente, nesse país ocorre um florescimento do Wǔshù clássico, guiado por princípios morais. Os grandes mestres de hoje em dia vêm de Taiwan; eles incentivam a moral em seus ensinamentos.
A grande diferença
A maior diferença do Wǔshù tradicional para o moderno é que ele carrega uma riqueza cultural muito grande e elevada. Para assimilá-lo, devemos vivenciar a filosofia por trás da prática, entender seu conteúdo interno, dar valor a beleza dos movimentos, experimentar o grau de dificuldade na aprendizagem, incorporar a realização da excelência, e acima de tudo, priorizar o cultivo interior.
Em suma, o Wǔshù não é apenas um conjunto de técnicas de combate, mas um compêndio de ciência que abrange a filosofia social, a medicina chinesa, a ética, a ciência militar, a estética, o qigong (ou “chi kun”) e outros valores e tradições culturais oriundos da cultura tradicional chinesa de 5 mil anos. Assim, entra-se tanto no cultivo interno como no externo. Isso inclui aprender sobre princípios como o equilíbrio entre “yin – yang” e a teoria da energia (chi).
O kung fu, assim como muitas artes marciais antigas, são ricas em conteúdo e possuem profundo significado interno. O kung fu é um valioso patrimônio que o povo chinês legou à humanidade, cuja essência verdadeira se aguarda ressurgir.