Esperar que a China impulsione a economia mundial é só uma ilusão

Os países ocidentais devem ajustar sua própria estrutura econômica para se encaixar em um mundo em que a China não seja o comprador nem o investidor

11/02/2019 15:38 Atualizado: 11/02/2019 15:38

Por He Qinglian

Muitos atribuem a desaceleração econômica da China em 2018 à guerra comercial entre os Estados Unidos e o gigante asiático.

Com a perspectiva de uma crescente debilidade em 2019, muitos países aguardam ansiosamente o fim da guerra comercial. Eles aguardam pela retomada do crescimento econômico chinês, esperando que a China continue sendo o motor da economia mundial, o maior comprador de recursos e o maior consumidor de produtos fabricados por países desenvolvidos. Mesmo na Alemanha, país “motor da economia europeia”, sua comunidade empresarial também compartilha essas mesmas esperanças. Eles não percebem que é uma mera ilusão; de fato, a economia da China começou a declinar já em 2015, e a atual guerra comercial apenas acelerou o processo.

Onda de compras da China no exterior parou

Nos últimos 15 ou 16 anos, os compradores chineses foram um dos principais impulsionadores do crescimento econômico em alguns países. Existem dois tipos de compradores. Um deles é o investimento, que inclui grandes fusões e aquisições feitas pelas empresas estatais chinesas e investimentos no exterior por parte do setor privado. O outro é o turismo internacional dos consumidores chineses, acompanhado pela compra de produtos de luxo.

Os investimentos chineses no exterior parecem fortes. De acordo com o Boletim Estatístico de Investimento Estrangeiro Direto da China em 2017, publicado pelo Ministério do Comércio chinês, o investimento estrangeiro direto total no país foi de 158,29 bilhões de dólares, atrás apenas dos Estados Unidos e do Japão. O investimento estrangeiro direto foi o segundo mais alto do mundo, com 1,81 trilhão de dólares. De janeiro a setembro de 2018, as fusões e aquisições da China no exterior foram de US$ 1,07 trilhão, um aumento de 11,2% em relação ao ano anterior, segundo a Thomson One.

No entanto, empresas privadas que compravam ativos no exterior, como o HNA Group, o Dalian Wanda Group, a Anbang Insurance e a Fosun International, estavam vendendo suas aquisições anteriores com grandes descontos e devolvendo o dinheiro para a China. A principal razão foi a pressão exercida pelo Partido Comunista Chinês.

De acordo com o Financial Times, o HNA Group fez aquisições no exterior no valor de mais de 40 bilhões de dólares entre 2015 e 2017. Agora, o HNA está vendendo suas propriedades aos poucos a preços baixos, desde ações e imóveis até prédios de escritório. Em 26 de dezembro de 2018, durante o Fórum de Marcas da China, Chen Feng, presidente do HNA Group, disse em uma entrevista que havia vendido mais de 300 bilhões de iuanes (44 bilhões de dólares) de ativos apenas em 2018, estabelecendo um novo recorde mundial.

Todas essas empresas possuem um nível de endividamento superior a 70%. Seus fundos para a atividade de fusões e aquisições vieram de empréstimos bancários chineses ou produtos financeiros que elas mesmos emitiram. Sua fase de compras fez com que as reservas cambiais da China despencassem. No final de 2016, as reservas cambiais chinesas caíram abaixo de 3 trilhões de dólares. O primeiro-ministro chinês, Li Keqiang, teve que enfrentar a infeliz realidade: “Diante do meu nariz, eu vi centenas e centenas de bilhões de capitais escorrendo para longe”.

Neste contexto, a Comissão Reguladora Bancária da China ordenou uma auditoria de crédito e uma análise de risco abrangente no exterior para empresas como o Dalian Wanda Group, a Anbang Insurance, o HNA Group, a Fosun International e a Zhejiang Rossoneri. Com foco nas fusões e aquisições e nos empréstimos coercitivos, teve início uma batalha interna para proteger as reservas cambiais.

À medida que os gigantes do setor privado da China devolviam capital ao país asiático e o número de compradores chineses diminuía, os preços dos imóveis caíam em lugares como Nova Iorque e Austrália. Por muitos anos, o aumento do capital chinês impulsionou o preço dos imóveis ao redor do mundo. A tendência se inverteu em 2018, quando o regime comunista chinês reforçou o controle sobre as saídas de capital.

De acordo com estatísticas do Real Capital Analytics, empresas chinesas e investidores institucionais venderam 233 milhões de dólares em imóveis na Europa, incluindo hotéis, prédios de escritório e outras propriedades comerciais, e compraram apenas 58 milhões de dólares em imóveis no mesmo continente. Nos Estados Unidos, os investidores chineses venderam mais de um bilhão de dólares e compraram apenas 231 milhões de dólares.

Na Austrália, o mercado imobiliário está esfriando devido à diminuição do número de compradores chineses. Analistas preveem universalmente que o mercado imobiliário continuará em queda em 2019.

A China já não é mais o mercado ideal para investidores estrangeiros

Em seu artigo “Empresários norte-americanos que vieram para a China voltaram para casa decepcionados”, o repórter James T. Areddy, do Wall Street Journal, disse que empresários estrangeiros acham muito mais difícil fazer negócios na China por causa do “aumento dos custos, aumento de impostos, controle político cada vez mais rigoroso e regulação caprichosa”, e que “os seus melhores dias ficaram no passado”.

Os problemas com o ambiente de investimento chinês que são discutidos no artigo existem há muito tempo. Além do aumento dos custos da terra e dos salários, os investidores estrangeiros também têm que enfrentar os custos de regulação (perdas devido à falta de transparência na política e na legislação) e os custos externos (por exemplo, os custos incorridos para proteger a propriedade intelectual ou a credibilidade das empresas), que estão intimamente relacionados às políticas governamentais.

O artigo aponta especificamente o custo externo dos desafios relacionados à propriedade intelectual e argumenta que as empresas norte-americanas gastaram muito dinheiro e esforço em processos judiciais relacionados à propriedade intelectual, mas que não estavam nem perto de dar um fim às infrações cometidas por empresas chinesas. As empresas alemãs e francesas também tiveram parceiros chineses que roubaram sua tecnologia e criaram seus próprios negócios. A violação da propriedade intelectual continua sendo uma questão importante hoje em dia, e se tornou um gatilho para a guerra comercial entre os Estados Unidos e a China.

O mercado chinês atraiu capital de todo o mundo desde os anos 90, especialmente do Japão, dos Estados Unidos e da Europa. Nem todos os investimentos estrangeiros tiveram lucro, eles nem sequer sobreviveram. A primeira onda de retirada de capital ocorreu de 1999 a 2003 (principalmente capital industrial), seguida pela segunda onda de 2008 a 2013, que incluiu tanto a fabricação quanto o financiamento. A onda atual começou no final de 2015.

Eu estive acompanhando os investimentos estrangeiros na China e descobri que as três ondas de retirada de capital ocorreram por razões semelhantes: o custo (da terra e da mão-de-obra), a carga tributária e o marco regulatório.

O bilionário Li Ka-shing foi um dos primeiros a se aposentar. Embora ele tivesse lucrado muito dinheiro na China, estava pronto para sair em pleno auge de seus negócios com os chineses. Seu conglomerado CK Hutchinson, com sede em Hong Kong, começou a vender ativos já em 2008 e, ao mesmo tempo, estabeleceu um sistema de capital na Europa. Até o final de 2017, Li havia amealhado 150 bilhões de iuanes (22 bilhões de dólares) ao longo da década, e as empresas europeias representavam quase 40% de sua renda, enquanto a participação da China foi reduzida para cerca de 30%.

O magnata taiwanês Terry Gou também construiu sua fortuna na China Continental, mas começou a aumentar o investimento em outros países em 2015.

Os fatos acima mencionados mostram que a China perdeu seu charme como um “mercado ideal”. A guerra comercial só reforçou a decisão dos investidores estrangeiros de deixar o gigante asiático e tornou a situação ainda mais difícil para os chineses.

A demanda dos consumidores chineses é esmagada pela dívida imobiliária

Ultimamente, o baixo desempenho da Apple na China tem recebido muita atenção. Mas a perda já tem acontecido há alguns anos, porque o declínio do poder aquisitivo dos consumidores chineses já havia começado. Analistas externos ignoraram o fato de que o declínio do poder aquisitivo não foi o resultado da guerra comercial, mas a consequência da estrutura econômica e da distribuição de renda chineses.

A disparidade entre os salários está piorando. Segundo as estatísticas oficiais, o coeficiente de Gini (medição da desigualdade de renda) da China cresceu por três anos consecutivos desde 2015. Em 2017, o índice atingiu 0,467, maior do que o limite da ONU de 0,4, considerado um nível perigoso.

As teorias econômicas argumentam que a tendência de compra dos consumidores de alta renda é menor do que a dos consumidores de renda média/baixa. Como resultado, o consumo interno de um país cresce apenas quando os consumidores de média/baixa renda gastam mais.

Os consumidores chineses contribuíram com um terço das vendas mundiais de bens de luxo em 2016, de acordo com o “China Luxury Report 2017” da McKinsey. Grande parte das compras de itens de luxo foi feita no exterior, por isso teve um impacto muito limitado no mercado interno chinês.

O índice de alavancagem dos consumidores chineses ainda é alto, o que limita o potencial de crescimento e o consumo. A Academia Chinesa de Ciências Sociais estimou que o índice de alavancagem do consumidor da China (dívidas dos consumidores em relação ao PIB chinês) subiu de 28% em 2011 para 49% em 2017.

A dívida per capita é de 170 mil iuanes (aproximadamente US$ 25 mil), segundo dados oficiais. Alguns previram que o índice em janeiro de 2018 seria de mais de 60% e que os empréstimos para moradia pessoal seriam um fator-chave nas crescentes dívidas. Todas as outras indústrias sentiram a pressão, simplesmente porque as pesadas hipotecas afetaram inevitavelmente todos os outros consumos, à medida que os proprietários chineses se esforçaram para pagar suas hipotecas.

Ajustar a estrutura econômica é melhor do que fantasiar sobre o resgate da China

Não importa quanto os analistas estrangeiros desejem que a China se recupere e continue impulsionando o crescimento econômico global, a verdade é que o crescimento da China chegou ao fim. Por mais rigoroso que seja o regime chinês no controle da economia, ele não tem escolha a não ser imprimir mais dinheiro e aumentar os gastos do governo.

Em janeiro de 2019, o Banco Central da China anunciou que cortará as reservas obrigatórias do banco em um ponto percentual para estimular os empréstimos bancários. A medida vai injetar 150 milhões de iuanes (US$ 22 milhões) no mercado. Esta é a quinta vez que o banco central reduz as reservas obrigatórias em menos de um ano.

Enquanto isso, a agência de gerenciamento macroeconômico da China, a Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma, aprovou mais de 1,2 trilhão de iuanes em projetos de infraestrutura, como trens do metrô, demonstrando que a infraestrutura voltou a ser o foco principal de Pequim para “estabilizar a economia”.

Por muitos anos, o capital da China passou da economia real para as bolhas econômicas, passando pelo setor imobiliário e pelo mercado de ações. Um relatório recente do Fundo Monetário Internacional (FMI) diz que esse estímulo ao crédito levou a China ao ponto de ter um retorno decrescente. Como parte das novas dívidas serão usadas para pagar as dívidas anteriores, para atingir o mesmo crescimento de antes, o país precisará de três vezes mais dívidas. Portanto, o maior desafio da China é impedir que os empréstimos se transformem em novas bolhas.

O mundo está testemunhando todos os tipos de atritos e distúrbios que acompanham a reversão da globalização. O presidente Donald Trump não sabotou o sistema de comércio mundial existente. Em vez disso, ajustou a estrutura em dois sistemas separados: um sistema de livre comércio entre os Estados Unidos e seus parceiros comerciais tradicionais e outro sistema fora do sistema de livre comércio que inclui a China.

Até agora, nenhum dos dois sistemas foi totalmente configurado, mas é certo que a China não poderá servir como motor da economia mundial. Em vez de buscar o resgate da China, acredito que os países ocidentais devem ajustar sua própria estrutura econômica para se encaixar em um mundo em que a China não seja o comprador nem o investidor.