Em novembro de 2014, Li Yuxiao, um aclamado pesquisador da Chinese Academy of Cyberspace informou, de acordo com o jornal estatal chinês China Daily: “Agora é o momento da China se tornar consciente das suas responsabilidades. Se os Estados Unidos estão motivados a transferir o comando internet, a questão que fica é quem será o próximo a assumir esta posição e como isto será feito.
Nós temos que, primeiramente, determinar nossos objetivos no cyberespaço, e, então, pensar sobre qual estratégia tomar, antes de prosseguir no refinamento de nossas leis”, disse Li.
Li é, no momento, o responsável pelo departamento designado a aplicar as leis do regime chinês em empresas de tecnologia. Seus comentários estão intimamente ligados ao processo anunciado pelos Estados Unidos, em 2014, a respeito da transferência de controle da internet, quando o contrato entre o U.S. Department of Commerce e a Internet Corporation for Assigned Names and Numbers – ICANN – terminar.
Este processo está próximo de entrar em vigor, já com data marcada para primeiro de outubro.
A mudança do comando será tecnicamente a transferência do IANA – Internet Assigned Numbers Authority (Autoridade responsável pela atribuição de números para a internet), que é um departamento do ICANN. O órgão lida com o Domain Name System (Sistema de Domínio de Nomes) – DNS – root zone (zona raiz) para garantir que os usuários de internet sejam direcionados para os sites que pretendem visitar, além de lidar também com protocolos de internet.
A integridade do DNS, em particular, é crítica, uma vez que ele poderá ser utilizado em cyberataques, encaminhando pessoas para sites falsos ou infectados. É também um dos sistemas primários manipulados pela censura do regime, ao visar a censura que pode bloquear o acesso a sites específicos.
Os Estados Unidos estão planejando um novo modelo para a internet, de forma que esta seja executada por um modelo multistakeholder (em que haja a participação da coletividade), sem a supervisão do governo, de forma que abrir mão do controle da ICANN será o último passo neste processo. No entanto, o novo modelo não significa que a ICANN, ou a internet mais ampla, permanecerá livre de influência governamental. Em vez disso, os Estados Unidos estão simplesmente se afastando deste papel.
De acordo com Chris Mattmann, a entrega da ICANN é um processo preocupante:
“Com esta mudança, o processo de determinar qual site aparece quando se digita um endereço da web deixará de ser conduzido pelo Departamento de Comércio dos Estados Unidos, e isso pode ser manipulado por potências estrangeiras para qualquer coisa, desde censura, a ataques cibernéticos”, disse Mattmann.
Por exemplo, se o regime chinês se opor a um site que publica informações sobre seu histórico de direitos humanos, ao influenciar o IANA, ele poderá fazer com que o site praticamente se torne invisível na web.
Mattmann foi um dos cientistas que ajudaram a desenvolver a forma como os sistemas de e-mail funcionam sob o domínio da IANA. Ele também ajudou a desenvolver vários sistemas Apache, que ocupam, hoje, um lugar importante na internet.
Mattmann, que atualmente trabalha no Laboratório de Propulsão de Jatos da NASA, disse que acredita que os processos que estarão sob o comando do ICANN precisam ser fortemente controlados, pois “mesmo quando a internet é, em si mesma, distribuída e descentralizada”, o sistema aberto começa a se desestabilizar, caso não haja uma autoridade para assegurar que ele permaneça aberto.
O regime chinês já está se preparando para preencher o vazio deixado pelos EUA, quando este finalizar o seu contrato com a ICANN; no entanto governar a internet vai muito além das responsabilidades detidas pelo órgão.
Ao longo dos últimos dois anos, os líderes chineses elaboraram um conjunto autoritário de leis que regem todas as facetas da internet. O regime chinês tem formado instituições nacionais e adquirido controle sobre organismos internacionais no intuito de pressionar estas novas leis da internet através das Nações Unidas; através da pressão feita pelo regime chinês sobre empresas estrangeiras dentro da China; e através de organizações constituídas para trabalharem diretamente com grandes empresas de tecnologia no exterior, e, mais frequentemente, com um estratégico público interessado em internet.
Uma ferramenta para engajamento no exterior
Há dois anos, quando Li palestrou na Conferência Mundial da Internet, em 2014, o regime chinês já vinha tentando preparar o terreno em relação à meta de Li para governar a internet global. A conferência de três dias em Wuzhen, com o tema “Um mundo compartilhado, interligado e regido por todos”, reuniu mais de 1.000 empresas de internet, em mais de 100 países e regiões.
Li agora é o secretário-geral da Associação de Segurança Cibernética da China, que é presidida por Fang Binxing, o criador do Great Firewall da China, muro virtual que censura e monitora a internet do país. A Associação, formada em 25 de março, proporciona ao Partido Comunista Chinês (PCC) um veículo para espalhar seus sistemas e leis, com o objetivo de governar a internet no exterior, enquanto concentram seus esforços em passar uma fachada benigna sob o rótulo de “cibersegurança”.
A Associação pode iniciar discussões no exterior em “níveis mais altos” através de “indústria, acadêmicos e associações internacionais de pesquisa”, que constituem o sistema global que controla a internet dentro do modelo multistakeholder, de acordo com um relatório do Center for Strategic & International Studies (Centro para Estudos Estratégicos e Internacionais).
A Associação é registrada como uma organização nacional sem fins lucrativos, mas, de acordo com o relatório, ela reporta diretamente ao pequeno grupo que lidera a segurança de redes e informação – que é presidido pelo líder do PCC, Xi Jinping – e é “responsável pela elaboração e aplicação de segurança da informação e leis e políticas de internet “.
Segundo o relatório, a Associação de Segurança Cibernética da China, entre outras tarefas, centra-se na “supervisão da opinião pública para ajudar no controle da informação e propaganda” e “proteger os intrínsecos interesses do regime chinês no processo de globalização, e promover empresas de TI chinesas globalmente competitivas.”
De acordo com Xia Yiyang, diretor sênior de pesquisa e política na Human Rights Law Foundation (Fundação das Leis dos Direitos Humanos), há informações nas entrelinhas deste comunicado “proteger interesses chineses fundamentais no âmbito da globalização” que vão muito além de nossos olhos.
“Na linguagem do PCC, esta é uma maneira de manter o PCC no poder a qualquer custo”, disse ele, acrescentando: “Eles têm uma definição muito clara de ‘interesses fundamentais'”.
Em uma entrevista publicada no site da Conferência Mundial da Internet, Li afirmou que como a China tem o maior número de internautas do mundo, ela deve ter o direito de “firmar as regras internacionais para governar o ciberespaço”.
“O estabelecimento de regras é apenas um começo”, disse ele.
Influência sobre empresas estrangeiras
O regime chinês começou trazendo grandes empresas – incluindo as de tecnologia dos EUA – Microsoft Corp., Intel Corp., Cisco Systems Inc., e International Business Machines Corp. (IBM) – para sua recém-formada comissão chamada Comissão Técnica 260.
A Comissão já está trabalhando com empresas estrangeiras para garantir o cumprimento das leis do PCC. De acordo com o Wall Street Journal, ela tem convidado empresas para ajudarem as autoridades chinesas a elaborarem regras para questões que incluem criptografia, big data e segurança cibernética, determinando quais tecnologias devem ser “seguras e controláveis” pelo PCC.
A frase “seguro e controlável” foi incluída na varredura feita pela Lei de Segurança Nacional do regime chinês, aprovada em 1 de Julho de 2015. O think tank Information Technology and Innovation Foundation (Tecnologia da Informação e Fundação Inovação), com sede em Washington, descreveu os requisitos da Lei como sendo “parte de um esforço estratégico” que destina-se “em última instância, a suplantar as empresas de tecnologia estrangeira na China e em mercados ao redor do mundo”.
De acordo com a BBC, a lei autoriza o PCC a tomar “todas as medidas necessárias” para proteger a si mesmo. A reportagem da BBC também observou que muitas empresas estrangeiras de tecnologia que operam na China “temem que sob a nova lei, eles possam ser forçados a entregar informações confidenciais para as autoridades.”
Por exemplo, a China tem repetidamente tentado forçar as empresas de tecnologia estrangeiras a entregar o código fonte de seu software. Em 2015, a Apple disse “não”, mas a IBM disse “sim” para suas chaves de criptografia, e o mesmo também tem sido exigido das empresas de tecnologia estrangeiras.
O site de notícias de tecnologia Techdirt especulou que o PCC poderia usar esta lei para renovar suas tentativas para exigir que empresas estrangeiras instalem backdoors em seus produtos de tecnologia.
Se as empresas cederem a essas exigências, elas comprometerão sua própria segurança e a de seus usuários, dentro e fora da China. E, além disso, o fato de não ceder a essas exigências pode barrar a atuação dessas empresas no mercado chinês.
Influência através das Nações Unidas
O ramo das Nações Unidas responsável pelas questões de telecomunicações, a International Telecommunications Union (ITU), tecnicamente regula somente as comunicações de rádio. No entanto, em uma reunião realizada em 2012 muitas nações concordaram que a ITU assumisse um papel no governo da internet. Enquanto isso, a China vinha trabalhando arduamente para assumir o controle da ITU.
A ITU ganhou atenção internacional em 2012, quando realizou, a portas fechadas, a World Conference on International Telecommunications (Conferência Mundial de Telecomunicações Internacionais) em Dubai, para reescrever as regras que governam a internet global.
Apesar da política de portas fechadas, muitos documentos das reuniões foram divulgados on-line, e os conteúdos desses documentos foram muito criticados por grupos focados em tecnologia e agências de notícias. Uma das leis que passaram na ITU “poderia dar aos governos e às empresas a capacidade de peneirar todos os e-mails, incluindo tráfego de um usuário na internet, transações bancárias, e chamadas por voz – sem a adequada garantia de privacidade”, de acordo com o Center for Democracy and Technology (Centro para Democracia e Tecnologia), que expôs o programa conhecido como Y.2770.
Os Estados Unidos sairam da reunião de 2012, e outros países, como o Reino Unido, o Canadá, a Dinamarca, a Finlândia, a Austrália, e outros, se recusaram a assinar o controverso tratado. No entanto, o tratado foi aprovado independentemente de tudo isso, dando à ITU um nível de poder no comando da internet jamais visto antes.
As nações que se recusaram a assinar o tratado não estão incluídas nele. Em vez disso, elas mantêm acordos no âmbito do tratado de 1988 da ITU, que não incluía quaisquer elementos sobre o regimento da internet pela ITU.
No entanto, a ITU declarou o novo tratado um sucesso, pois os membros restantes reconheceram o seu novo papel. Ela divulgou um comunicado em 14 de dezembro de 2012, dizendo que “delegados de todo o mundo concordaram com um novo tratado global que irá ajudar a pavimentar o caminho para um mundo hiper-conectado”.
Em outubro de 2014, a ITU elegeu o chinês Houlin Zhao como seu secretário-geral.
Zhao tinha afirmado anteriormente que a censura é subjetiva. Segundo o The New American, em outubro de 2014, quando Zhao foi questionado sobre o “regime de censura maciça da ditadura comunista chinesa, visando a dissidência, dissidentes e ideias que se opõem ao regime”, ele respondeu: “Algum tipo de censura pode não ser estranho para outros países”.
Uma atitude duvidosa
O senador republicano do Texas, Ted Cruz, tem liderado um esforço para impedir a entrega da ICANN, e muitos funcionários do governo dos EUA, organizações e especialistas têm estado alarmados devido a preocupações de que um poder autoritário estrangeiro possa tentar fazer precisamente o que o regime chinês já vem colocando em prática.
Durante uma audiência da subcomissão do Senado sobre o assunto, em 14 de setembro, o senador republicano de Iwoa, Chuck Grassley, disse em um premeditado discursso, que muitas questões importantes sobre a transição permanecem sem resposta. Entre estas, há a questão de se esta mudança irá “produzir uma transferência inconstitucional de propriedade do governo dos Estados Unidos; como essa transferência irá afetar os direitos humanos e questões de liberdade de expressão, e se os domínios de alto nível dos EUA tais como .gov (sites do governo) e .mil (sites militares) poderão ser comprometidos.”
“Se esta mudança da internet for para frente, não há nenhuma razão para acreditar que os Estados autoritários irão parar de tentar exercer maior controle, e não sabemos como esta situação irá se desdobrar em longo prazo”, disse Grassley.
Cobertura relacionada
Em 8 de junho, o político republicano do estado de Wisconsin (EUA), Sean Duffy, introduziu o Protecting Internet Freedom Act, que visa prevenir a transferência do ICANN pelos EUA e assegurar que os Estados Unidos mantenham a propriedade exclusiva dos domínios de alto nível .gov e .mil.
Preocupações semelhantes foram compartilhadas por Philip Zimmermann, cientista, criador do padrão de criptografia PGP, cientista-chefe e co-fundador do Silent Circle, uma empresa especializada em comunicações seguras.
Zimmerman disse que acredita que os Estados Unidos precisam manter alguma autoridade através da internet, para que não “se possa perder o controle para um organismo internacional que pode ser facilmente influenciado por Estados membros que são sociedades opressivas.”
“A internet deveria supostamente fazer os fracos terem voz, sabe. Se a China já controla seus próprios domínios dentro de seu país, com esta mudança será fácil suprimir sua oposição “, disse ele.
De acordo com Barney Warf, professor de geografia da Universidade do Kansas, que publicou uma pesquisa sobre a liberdade global da internet e seu comando, a China tem um “brutal regime fascista e opressor, que sai de seu caminho para suprimir os direitos humanos.”
Warf disse ainda que a possibilidade de que o PCC poderia aplicar suas leis através da internet global é um pensamento assustador.
Ele disse que o comando informal da internet pelos Estados Unidos permitiu que a inovação florescesse, e que a falta de comando estrita deu às pessoas espaço para “experimentarem e cometerem erros”, e acrescentou: “Eu acho que a internet tem prosperado porque não há poder central sobre ela.”
Leis para a Internet
Depois que os EUA abandonarem o controle da ICANN, tecnicamente manterão algum nível de supervisão, mas esta supervisão será fornecida juntamente com a de outros 171 membros e 35 observadores no Governmental Advisory Committee (Comitê Consultivo Governamental).
Entre os membros está a ITU, juntamente com “todas as agências das Nações Unidas com interesse direto no comando global da Internet”, de acordo com o site da comissão.
O Comité aconselha a ICANN sobre as preocupações do governo “relacionadas com as leis e acordos internacionais com base em consenso”, de acordo com Jonathan Zuck, presidente da ACT – The App Association (A Associação de aplicativos) -, em um comunicado apresentado ao Comitê Judiciário do Senado, em setembro 14. Durante o evento, os 171 membros da comissão fizeram uma recomendação consensual para a ICANN. Zuck testemunhou que a ICANN poderá rejeitá-la com uma maioria de 60 por cento de seu quadro administrativo.
Enquanto a estrutura legal da ONU irá, para todos os efeitos, eliminar a capacidade dos EUA de afetarem a política da ICANN, as autoridades chinesas têm sido muito sinceras sobre suas intenções de pressionar a lei do PCC sobre a internet. A celebração deste esforço ocorreu na Conferência Mundial Internet em 2014, logo após o anúncio de que os EUA iriam recuar do comando da Internet.
“Especialistas dizem que a China está usando a plataforma para vender a sua própria estratégia e regras para o mundo, uma missão que o maior cyberpower do mundo, com o maior número de usuários de internet, tem considerado significativo e urgente”, relatou na época a mídia estatal chinesa China Daily.
“A China agora tem a capacidade de criar regras internacionais para o ciberespaço e usar nossa estratégia e nossas regras para influenciar o mundo”, disse Shen Yi, professor-associado especialista em segurança cibernética na Universidade Fudan, de acordo com o China Daily.
“A China está considerando a criação de suas próprias regras no ciberespaço”, disse o Premier do PCC, Li Keqiang, em comentários resumidos pelo China Daily. Ele acrescentou que o PCC quer criar um “código comum de regras” para a internet.
Em julho de 2015, o PCC aprovou a Lei de Segurança Nacional, mencionada anteriormente, que exige de que certas tecnologias devem ser “seguras e controláveis.”
No mesmo mês, o PCC apresentou o projeto da sua Lei de Segurança Cibernética. A Reuters informou que tal lei exige que os operadores de rede “aceitem a supervisão do público e do governo”, e reitera os requisitos de que todos os dados pessoais dos cidadãos chineses e “dados de negócios importantes” precisam ser armazenados internamente – elemento este que expõe mais ainda dados para a vigilância do governo.
A Reuters citou que a lei foi controversa nos Estados Unidos e na Europa, uma vez que afeta as empresas estrangeiras. Ela também observou que esta situação aumentou o poder do PCC sobre o “acesso e bloqueio de divulgação de registros de informação confidencial que a lei chinesa considere ilegal”, e que isso tem causado preocupação entre os governos, companhias multinacionais e ativistas de direitos, uma vez que o PCC pode ser capaz de “interpretar a lei como bem entender”.
Em dezembro de 2015, o PCC aprovou a Lei Antiterrorismo, que permite que as autoridades chinesas possam descriptografar informações para prevenir o “terrorismo”, e para monitorar os sistemas com a desculpa de evitar a propagação de informação que possa ser usada para o que o PCC define como “terrorismo ou extremismo ”
Há uma longa lista de leis e regulamentos semelhantes. Em fevereiro de 2016, o PCC emitiu regras para publicações on-line. Em março de 2016, elaborou regras de registo de nomes de domínio. Depois, emitiu listas de aquisições do estado que restringem os fornecedores estrangeiros. Alem disso, possui leis sobre normas de criptografia que estão pendentes.
Com suas novas instituições – como a Associação de Cyber Segurança -, suas leis e regulamentos, o regime chinês está pronto para influenciar o funcionamento da ICANN e de outros sistemas no modelo multistakeholder. Ou está pronto para presenciar o ganho da influência da ONU sobre a ICANN através do ITU, com a China à sua frente.
As empresas de tecnologia que operam na China são agora obrigadas a entregar sua propriedade tecnológica, pondo em perigo seus negócios e destruindo a expectativa de confidencialidade dos seus clientes. Enquanto isso, através do Comité Técnico 260, as principais empresas de tecnologia estão fazendo lobby para o mundo a adotar a lei do regime chinês e regulamentos para a internet. E a ITU/China quer conceder às nações o direito de monitorar todo o tráfego de internet.
Assim, a China está tentando tornar realidade a promessa de Liu Yuxiao, de que a China vai “se conscientizar sobre suas responsabilidades” na ausência do controle dos EUA.
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