Dois artigos publicados no início de abril deste ano mais uma vez expuseram a escuridão no sistema legal da China.
Um deles era um diário escrito por uma prisioneira do Campo de Trabalho Masanjia no nordeste da China, que detalhou as cruéis torturas perpetradas diariamente no campo. O outro foi o relatório anual da Anistia Internacional sobre a pena de morte, publicado em 10 de abril.
Ambos revelam claramente a natureza desumana do sistema legal da China, que brutalmente tira a vida das pessoas e não se limita em aviltar a dignidade humana.
Tortura diária em Masanjia
O artigo “Fora de Masanjia” que a revista Lens de Pequim publicou em sua edição de abril foi centrado num diário contrabandeado do campo por uma prisioneira. Os abusos infernais descritos indignaram o mundo inteiro.
Se olharmos mais de perto o abuso dos detentos em Masanjia, vemos que isso é realmente uma notícia antiga. Um relatório publicado pela Comissão das Nações Unidas sobre os Direitos Humanos em 13 de fevereiro de 2001, “Integração dos direitos humanos das mulheres e a perspectiva de gênero: Violência contra as mulheres”, descreveu em detalhes as torturas no Campo de Trabalho Masanjia.
Seu relato é muito semelhante ao artigo recente de revista Lens, mas também incluiu uma história trágica ignorada pelo periódico. Em outubro de 2000, guardas de Masanjia despiram 18 mulheres praticantes do Falun Gong e as jogaram em celas masculinas.
No entanto, o relatório da ONU praticamente não conseguiu obter atenção da mídia e é fácil entender por quê.
Em 2001, aparentemente o mundo inteiro abriu seus braços para saudar entusiasticamente a China na Organização Mundial do Comércio (OMC). A maneira como Masanjia usa todos os meios, não importa o quão vil, para violar a dignidade humana não se harmoniza com o ambiente internacional.
Além disso, a maioria dos chineses naquele tempo acreditava que uma nação poderosa seria garantia de bem-estar pessoal. Eles não esboçaram qualquer dúvida sobre a propaganda do regime chinês contra o Falun Gong.
Como resultado, o relatório oficial da ONU foi largamente ignorado pela mídia internacional, cuja atenção estava voltada para a brilhante perspectiva do desenvolvimento econômico da China.
A maioria dos chineses fora da China que soube a respeito do relatório da ONU escolheu acreditar que ele foi fabricado por “forças anti-China no estrangeiro” para difamar a China.
Alguns outros, que sabiam a verdade, encontraram desculpas para não agir. Eles se convenceram de que a maioria dos prisioneiros nos campos de trabalho é punida pelo Estado porque é a escória da sociedade e por isso merece o tratamento.
Doze anos depois, a resposta do público ao diário publicado na revista Lens é dramaticamente diferente. Há apenas uma explicação. Os conflitos sociais na China se tornaram cada vez mais agudos e as pessoas perderam completamente sua confiança no Estado.
A forte dependência do regime na violência ajudou o povo chinês a perceber que o tenebroso sistema de reeducação pelo trabalho forçado está arruinando a dignidade dos civis e destruindo suas vidas.
Os intensos conflitos na sociedade chinesa podem ser vistos por meio dos dados registrados no Livro Branco da Defesa da China: Entre 2011 e 2012, a China implantou em média 4.384 policiais militares por dia, o que equivale a mais de 1,6 milhão em um ano.
O uso de tamanha força militar em questões domésticas deixa claro que o Estado e o povo se tornaram inimigos.
Oficiais se beneficiam
A Anistia Internacional apontou em seu relatório anual sobre a pena de morte que as execuções estimadas na China em 2012 superaram o total de todos os outros países juntos.
Porque o Estado chinês sempre trata o número de execuções como segredo de Estado, a Anistia não conseguiu obter um número exato e estima que milhares de prisioneiros tenham sido executados na China no ano passado, enquanto o Irã ficou em segundo lugar com 314 execuções.
O regime chinês, no entanto, declarou com firmeza que em 2011 tinha adoptado uma emenda para reduzir o número de crimes capitais de 68 para 55. Treze categorias de crimes não violentos e econômicos não incorreriam pena de morte, o que representaria 19,1% dos casos originais de crimes capitais.
Também foi estipulado que, para pessoas com mais de 75 anos no momento do julgamento, a pena de morte, em geral, não deveria ser aplicada. Numa conferência internacional relacionada, a China admitiu que essa redução nos crimes capitais não foi baseada na opinião pública.
Embora o regime chinês não atribua qualquer importância à opinião pública em sua abolição de certos crimes capitais, na verdade, isso conta uma meia-verdade e uma meia-mentira ao dizer que não tem o apoio da opinião pública.
De fato, o regime chinês realizou três pesquisas sobre a pena de morte.
Em 1995, o Instituto de Direito da Academia Chinesa de Ciências Sociais e a Secretaria Nacional de Estatísticas, realizaram uma pesquisa sobre se a pena de morte deveria existir. Mais de 95% dos entrevistados se opôs à abolição da pena de morte.
Uma pesquisa realizada em 2003, envolvendo 16 mil internautas, mostrou que mais de 83% se opunham a abolição da pena de morte.
Num terceiro levantamento em abril de 2008, 67,2% dos internautas entrevistados se opuseram a abolição e 21,8% achavam que os crimes capitais deveriam ser redefinidos para reduzir o âmbito de aplicação da pena de morte.
Mas uma reforma não foi baseada na opinião pública: a abolição da pena de morte para oficiais corruptos. Os principais beneficiados com a reforma da pena de morte foram os altos oficiais envolvidos em corrupção.
O regime chinês tem sido bastante lento na adoção de padrões administrativos amplamente utilizados na sociedade internacional. No entanto, ao remover os crimes de corrupção da lista de pena de morte, o regime agiu rapidamente.
As autoridades encontraram uma base teórica para a remoção, dizendo que contar com a pena de morte para controlar a corrupção é uma abordagem preguiçosa porque não visa o problema fundamental ou as lacunas no sistema.
Zheng Youyu, o ex-diretor da Administração de Drogas e Alimentos da China, foi executado por corrupção em 2007. Depois de 2007, a dispensa de oficiais corruptos da pena de morte se tornou rotina.
Um artigo publicado na revista Caijing em 17 de maio de 2012 examinou 120 crimes de corrupção envolvendo oficiais provinciais e ministeriais desde 1987.
Entre eles, apenas seis foram condenados à pena de morte e, desses seis, dois envolviam assassinatos.
Por exemplo, Duan Yihe, o diretor dos representantes de Shanxi para o Congresso Nacional Popular, matou sua amante por meio de uma explosão de carro; Lu Debing, o ex-vice-governador da província de Henan, assassinou sua esposa.
Ou seja, apenas 5% dos 120 casos foram submetidos à pena de morte. Ao mesmo tempo, de acordo com informações divulgadas das prisões, 20-30% dos oficiais detidos se beneficiam da redução de pena anualmente. Liberdade condicional ou médica são concedidas principalmente aos ex-oficiais de alto escalão que foram enviados para prisão por corrupção.
Esta leniência é raríssimamente concedida a pessoas comuns. Por exemplo, Xia Junfeng, um vendedor ambulante nas ruas de Shenyang, lutou contra a polícia ‘chengguan’, que é encarregada de fazer cumprir os regulamentos da cidade. Os chengguan são geralmente odiados na China por suas táticas brutais.
Xia Junfeng matou um policial chengguan após ter sido intimidado por ele. Embora a causa do incidente tenha sido o chengguan ter apelado à violência e a maioria dos advogados acreditar que o caso de Xia Junfeng devesse ser tratado com misericórdia, por fim, ele foi condenado à morte.
Yuan Ling, o repórter da revista Lens, arriscou sua vida para publicar o diário de Masanjia. Logo após seu artigo sair, muitos chineses indignados esperavam ver uma investigação sobre os abusos em Masanjia e, eventualmente, a abolição do sistema de campos de trabalho forçado.
Autoridades da província de Liaoning estabeleceram imediatamente uma equipe de investigação, que foi ridicularizada por jornalistas chineses como sendo paternalista, como se um pai investigasse o filho. Pouco mais de 10 dias depois, a equipe de investigação publicou seu relatório, alegando que o artigo “Fora de Masanjia” estava grosseiramente enganado.
Até hoje, os altos oficiais em Pequim ainda não fizeram qualquer comentário sobre o incidente de Masanjia nem prometeram abolir o sistema de reeducação pelo trabalho. A escuridão no sistema legal da China continua.
He Qinglian é uma proeminente autora chinesa e economista que atualmente vive nos Estados Unidos. Ela é autora de “China’s Pitfalls”, que trata da corrupção na reforma econômica da China da década de 1990, e “The Fog of Censorship: Media Control in China”, que aborda a manipulação e restrição da imprensa. Ela escreve regularmente sobre questões sociais e econômicas da China contemporânea.