A pressão do Partido Comunista Chinês (PCCh) sobre a República do Quirguistão, para censurar críticas às suas operações no país, tem aumentado nos últimos anos. Com foco principal na mineração, empresas estatais chinesas expandiram suas atividades e enfrentam resistência local, devido a danos ambientais significativos. Ansiosas por cada vez maior lucro e domínio, realizam operações cujas normas legais locais são frequentemente ignoradas, o que tem aumentado a tensão em relação às comunidades quirguizes.
Ao denunciarem a conduta das empresas ligadas a Pequim, formadores de opinião do Quirguistão – tais como ativistas ambientais, jornalistas e cineastas – são censurados e perseguidos. O PCCh reprime a narrativa pública no país da Ásia Central, no afã de garantir que suas alegadas contribuições econômicas sejam retratadas positivamente, apesar da desaprovação local crescente.
Em artigo para o site The Jamestown Foundation – Global Research & Analysis, a pesquisadora Niva Yau relata detalhes sobre essa censura e opressão. Nascida em Hong Kong e atualmente radicada em Bisqueque, capital do Quirguistão, ela cita quatro filmes populares produzidos no país fronteiriço com a China.
A pesquisadora ressalta que cada produção cinematográfica tem sido mais crítica que a anterior, refletindo uma piora percebida na conduta das estatais ligadas ao PCCh.
Cinema quirguiz: O ladrão de Luz
O primeiro filme é Svet-Ake, traduzido para o inglês como “The Light Thief” e no Brasil como “O Ladrão de Luz”, lançado em 2010 e dirigido por Aktan Arym Kubat. A produção narra a história de um eletricista quirguiz que quer usar o vento como energia para iluminar sua pobre aldeia.
Um empresário quirguiz encampa a ideia e passa a tentar arrecadar dinheiro para o projeto de energia eólica do eletricista. Para isso, convida investidores chineses, a quem são apresentadas jovens mulheres quirguizes dentro de uma yurt – tenda nômade comum na Ásia Central.
Esse momento do filme ficou mais conhecido como “cena da vergonha”. Ao perceber que entrou num esquema envolvendo prostituição de suas compatriotas, o eletricista se revolta e intervém, quando os homens começam a se despir. Ele foge, mas acaba sendo perseguido e assassinado.
Percebe-se o duplo sentido presente no título do filme: os investidores chineses exploram não apenas a eletricidade de uma população fragilizada, mas também roubam a inocência das jovens quirguizes, bem como a vida de um humilde e criativo trabalhador.
O roteirista do filme, Aktan Abdykalykov, relatou em 2021 à Yau que ele foi a primeira pessoa a denunciar o comportamento dos investidores chineses no Quirguistão. “Acho que foi uma previsão inconsciente do futuro”, refletiu Aktan à pesquisadora.
Sexagenário, ele relembra o tiroteio da polícia contra manifestantes pacíficos na vila de Aksy, que se opuseram a uma transferência de 125 mil hectares de terras quirguizes aos chineses: “Não entendo de geopolítica, mas meu medo da China é razoável. Eles já tomaram nossas terras no Uzengi-Kush”.
Aktan se refere à independência do Quirguistão em relação à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), ocorrida em 1991. Isso fez com que fosse redimensionado o limite fronteiriço em 1996, que antes era entre URSS e China. O acordo de fronteira foi finalizado apenas em 2009, com o Quirguistão cedendo aos chineses o Uzengi-Kush, área montanhosa localizada ao sul da região de Issyk Kul.
“O Ladrão de Luz” é seguido por Salam, New York! (2013) e Kök Börü (2018), cujas traduções para o inglês são respectivamente “Hello, New York” e “Game of the Tough”. Ambos escritos por Ruslan Akun, os filmes abordam a resistência quirguiz contra investidores e mineradores de ouro chineses.
Em Salam New York, um homem larga a vida de advogado bem-sucedido que vive o “sonho americano”. Ele volta para casa e luta pela terra de seu pai, vendida à força para investidores de mineração chineses.
Já Kök Börü conta a história de uma aldeia competindo no torneio nacional de um esporte tradicional da região. Os moradores esperam ser premiados em dinheiro para pagar suas taxas legais na batalha. Assim poderão recuperar suas terras após elas terem sido vendidas à força para uma empresa chinesa.
Quando perguntado por Yau sobre qual foi o tipo de pesquisa realizada para a elaboração dos seus filmes, Akun respondeu: “Eu vi um rio muito sujo. Era verão, então não deveria estar sujo. Eu me perguntei por que, [já que] nosso rio de montanha vem de geleiras e é sempre cristalino. Então dirigimos mais, e eu vi escavadores cavando na nascente do rio. Essas pessoas estavam minerando ouro de uma forma muito selvagem. Eu perguntei quem eram; eram chineses”.
Exploração de ouro e censura
O quarto filme, intitulado Meken e traduzido para o inglês como “Homeland”, foi feito em 2020 e banido dos cinemas. O enredo gira em torno de uma batalha legal e física entre moradores locais e uma empresa da China comunista, que realiza mineração de ouro no Quirguistão. Os exploradores bombardeiam montanhas, poluem água, matam o gado e levam doenças à população quirguiz.
O produtor do filme, Bektemir Mamayusupov, relatou em 2022 para Yau as reiteradas tentativas de liberar “Meken”. Subjugado por Pequim, o governo quirguiz pediu que dois censores revisassem o filme antes do lançamento.
“Mas antes que eles me dessem uma resposta, uma mulher ligou, dizendo que era jornalista trabalhando para um meio de comunicação chinês. Ela estava me perguntando se eu achava que meu filme prejudicaria as relações entre a China e o Quirguistão”, contou Bektemir. A jornalista parecia saber muito sobre o roteiro, o que surpreendeu o produtor, pois ele não havia mostrado o filme a ninguém além dos dois funcionários estatais quirguizes.
Então, um comitê especial governamental foi criado para revisar Meken. “Cortamos [cenas] a pedido deles. Mas a intervenção não parou. Eles ligaram várias vezes e assistiram várias vezes. Toda vez que assistiam ao nosso filme, pediam para cortar mais e mais cenas”, lamentou Bektemir.
A equipe de Meken desistiu de esperar pela permissão para que o filme fosse lançado nos cinemas, e publicou no YouTube – rendendo um milhão de visualizações em apenas uma semana. Essa foi uma marca significativa, considerando que a população do Quirguistão, naquela época e atualmente, está entre 6 e 7 milhões de habitantes.
O interesse positivo foi ecoado até mesmo por políticos, embora em particular. “Todos os políticos com quem conversei gostaram [do filme]. Ninguém disse uma palavra ruim. Mas eles não o apoiaram abertamente. Todos estavam com medo”, segundo o produtor.
No início de 2024, o filme foi retirado do YouTube, sem nenhuma razão clara ter sido fornecida para sua remoção.
Perseguição atinge trabalhadores
A imposição de uma percepção positiva, quanto às operações das empresas chinesas no Quirguistão, se tornou crucial para o PCCh. E uma maneira eficaz de evitar que visões hostis criem raízes é a censura – não apenas de filmes, mas também de pessoas valorizadas nessas produções culturais, como ativistas ambientais e seus apoiadores.
Um ativista ambiental local que não quis se identificar detalhou à Yau, em 2021, o impacto da censura promovida pela China comunista em seu país. Segundo ele, mineradores quirguizes são obrigados a assinar “acordos de confidencialidade”, que os proíbem de falar qualquer coisa, tanto sobre as empresas quanto em relação aos funcionários chineses.
Mas a perseguição não termina aí. Funcionários quirguizes são constrangidos a fazer testes, diante dos quais respondem questões como: o que pensam a respeito da China e a maneira como ela trata outros países; quais são suas opiniões políticas pessoais; e onde querem que seus filhos estudem no exterior.
O objetivo é sondar os trabalhadores quanto à sua potencial orientação ideológica, garantir lealdade e reduzir a necessidade de censura direta.
Tentativas de subornos e punições
O PCCh frequentemente tenta pagar ou cooptar os críticos. Um jornalista quirguiz, que também não quis revelar seu nome, contou a Yau que denunciou violações por parte de empresas estatais chinesas.
Diante disso, recebeu convite do governo para ser secretário de imprensa, diante do qual manteve seus princípios e recusou. Em consequência da negativa, foi acusado pelo Ministério de Assuntos Internos, bem como pelo Comitê Estadual de Segurança Nacional, de receber dinheiro indevido por suas atividades.
“Eles disseram que me dariam um alto salário se eu escrevesse coisas boas sobre investidores chineses. Eles ainda estão me monitorando”, afirmou o jornalista em 2021. Ele revelou saber de um colega que acabou aceitando o trabalho.
A pressão e o assédio que permeiam as escolhas de ativistas, cineastas, jornalistas e críticos de um modo geral são intensas e constantes. E ainda maiores diante de um governo local submetido à pressão do PCCh. De Svet-Ake a Meken, o cinema quirguiz tem buscado dramatizar histórias das lutas de Davi e Golias que acontecem por todo o país, além de transmitir ao mundo livre sinais de alerta.
Graças ao heroísmo de pessoas cujos princípios não se abalam, a censura tem sido rompida e as ações predatórias da China comunista tem sido reveladas. Mesmo que lentamente, os “ladrões de luz” e seu desrespeito aos Direitos Humanos estão progressivamente sendo expostos. As saídas criativas protagonizadas pela população do Quirguistão são mensagens de luta e esperança para o mundo.