Onda de doenças silenciosas durante pandemia no Brasil preocupa especialistas

22/09/2021 18:19 Atualizado: 22/09/2021 18:19

Por Agência EFE

O grande aumento de casos de obesidade, do consumo de álcool e da automedicação durante a pandemia de covid-19 fizeram disparar o número de doenças silenciosas, como aquelas que afetam o fígado, maior glândula e maior órgão maciço do corpo humano, e cujo impacto na saúde dos brasileiros agora e também durante a próxima década preocupa especialistas.

O presidente do Instituto Brasileiro do Fígado (IBRAFIG), Paulo Bitencourt, afirmou em entrevista à Agência Efe que as hepatites virais, alcóolicas e medicamentosas, além da esteatose (gordura no fígado), as principais doenças que acometem este órgão do sistema digestivo, evoluem sem apresentar sintomas, até o desenvolvimento de cirrose e câncer.

Por isso, é preciso estar atento às condições associadas ao maior risco de desenvolver esses quadros, muitas delas agravadas durante a pandemia, como o sedentarismo e a obesidade, segundo o especialista, que relatou um “crescimento muito grande dos casos de hepatite medicamentosa” relacionados à automedicação de fármacos ou suplementos com o objetivo de tratar precocemente ou prevenir a covid-19.

O médico também alertou para o aumento da frequência, em unidades de terapia intensiva (UTIs), de casos de hepatite alcoólica aguda, que pode levar à insuficiência hepática em poucas semanas devido ao consumo abusivo de álcool, e que tem uma taxa de mortalidade de cerca de 50%.

Além disso, o especialista alertou para aumentos do consumo de alimentos industrializados e multiprocessados na pandemia e dos casos de ganho de peso, que devem se refletir muito, no Brasil, no número de pessoas com excesso de gordura no fígado, que já é a maior causa de transplantes em alguns estados dos Estados Unidos.

OBESIDADE E SEDENTARISMO NA PANDEMIA DE COVID-19.

De acordo com a coordenadora do departamento de doenças do fígado da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica (Abeso), Claudia Oliveira, a esteatose acomete entre 20% e 30% da população mundial e brasileira, e tem como principais fatores de risco para gordura no fígado aumento de peso, diabetes, colesterol e triglicerídios altos e sedentarismo.

Por esse motivo, o aumento do peso é altamente preocupante no Brasil, onde 60% da população tem sobrepeso, e a obesidade já afeta 20% dela.

“A gordura no fígado não é uma doença tão benigna assim, ela pode evoluir para formas mais graves, incluindo cirrose e câncer de fígado, e o acúmulo de gordura pode ocorrer em semanas ou meses, mas a fibrose e a inflamação demoram de sete a 10 anos”, estimou a professora associada do departamento de Gastroenterologia da faculdade de medicina da USP.

Mesmo assim, Oliveira alertou que essa evolução é silenciosa e pode levar a uma esteato-hepatite, que se dá quando, além da gordura, o paciente apresenta uma inflamação no fígado e até fibrose (depósito de colágeno), quadro que vem crescendo muito na pandemia e que, como ela alertou, “já é quase a segunda causa de transplantes no Brasil”.

“A esteatose já era a principal doença ambulatorial de fígado, mas, na pandemia, com o aumento da obesidade, da ansiedade e da compulsão alimentar e piora de estilos de vida que já não eram muito bons devido ao isolamento social, vimos um aumento de casos de gordura no fígado durante esse período”, disse.

“O aumento de consumo do álcool também preocupa, porque ele aumenta a gordura no fígado por si só, então quando você junta sedentarismo, má alimentação, obesidade e ainda uma ingestão maior de álcool, esse é um trio bastante ruim para esses pacientes, e na pandemia isso se exacerbou”, acrescentou.

Oliveira explicou que, nas primeiras fases da doença, quando há mais gordura e pouca fibrose, o tratamento é perda de peso, redução de calorias, do consumo de açúcar, de frutose, e aumento da prática de exercícios, tanto atividades aeróbicas quanto de resistência.

“Em todas as fases essa mudança de estilo de vida é preconizada. Então, por mais que haja a necessidade de um remédio para a fibrose, por exemplo, o ideal é que o paciente adote essas medidas, senão, só o medicamento não será suficiente. Então, ele tem que se conscientizar. Quando o indivíduo perde 10% do peso, ele já tem uma melhora na esteatose, na inflamação e até na fibrose”, ressaltou.

A médica lembrou também que, no início da pandemia, consultas médicas foram suspensas devido ao risco de contrair a covid-19, o que foi mais um agravante para o aumento de doenças hepáticas, devido à falta de acompanhamento e também de diagnóstico.

“Qualquer pessoa acima de 45 anos, até para afastar hepatites virais, deve fazer sorologia para hepatites virais, enzima hepática, ultrassonografia”, disse.

CRESCIMENTO DA AUTOMEDICAÇÃO E A PANDEMIA DE “FAKE NEWS”.

Outra consequência da disseminação da covid-19 e do isolamento social foi o crescimento da automedicação, um problema de saúde pública no Brasil e que, segundo o especialista Raymundo Paraná, se deve a uma questão cultural no Brasil e também à dificuldade de acesso a atendimento médico e saúde.

Esta prática representa um grande risco não só para o fígado, mas também para a saúde do indivíduo, seja por prescindir de um tratamento adequado comprovado cientificamente, por consumir substâncias tóxicas ou por realizar combinações entre componentes que acabam sendo nocivas para o organismo.

“A automedicação com alopáticos continua hoje, embora mais restrita por conta de políticas públicas. Mas a questão do consumo de ervas, folhas, suplementos, fitoterápicos, ficou livre e foi rapidamente captada em um contexto muito comercial nas redes sociais, nas mídias e até mesmo por profissionais de saúde”, disse Paraná, que alertou para os perigos do “cházinho da vovó” ou de “medicações tradicionais indígenas” não testadas em contexto científico, que podem até mesmo levar à morte.

Para Paraná, a facilidade de acesso à informação fez com que as pessoas se contentem com informações superficiais que não confiram a a fonte, o que aumenta a exposição do público a notícias falsas que podem ser extremamente prejudiciais à saúde, como foi o caso da popularização do uso de medicamentos como cloroquina ou ivermectina para um suposto tratamento precoce contra a covid-19 ou o uso de multivitamínicos para se proteger da doença.

“O que se fala rapidamente ganha espaço e se transforma em uma verdade, esse é o mal que as fake news fazem. A situação é gravíssima, e durante a pandemia o terreno ficou mais fértil para essas sementes malignas e maliciosas. Elas proliferaram muito, muitas informações equivocadas”, lamentou o especialista em hepatologia.

Nesse sentido, o professor titular de Gastro-Hepatologia da UFBA lembrou que “não existe alternativa à ciência, e atribui esse fato também à falta de honestidade e transparência de alguns profissionais da área da saúde.

Por outro lado, Paraná também criticou a dicotomização entre o que é sintético e o que é natural, que considerou como “uma jogada perversa e desonesta de marketing”.

“O que é natural é santificado, e o que é sintético é demonizado. Não é assim, só um profissional que não tem nenhum cuidado com a honestidade e a ética pode passar uma informação tão pouco verdadeira como essa, já que vários medicamentos alopáticos tem origem natural”, defendeu.

ÁLCOOL, UM VILÃO DO ISOLAMENTO SOCIAL.

Segundo dados da pesquisa ConVid, da Fundação Oswaldo Cruz e realizada em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais e a Universidade Estadual de Campinas (2020), 17,6% dos mais de 40.000 entrevistados (18,1% entre homens e 17,1% entre mulheres) afirmaram ter ingerido mais bebidas alcoólicas nesse período. O maior avanço, 24,6%, foi registrado na faixa etária de 30 a 39 anos de idade, e o menor entre idosos (11,2%).

O estudo indicou, ainda, que quanto maior a frequência dos sentimentos de tristeza e depressão, maior o aumento do uso de bebidas alcoólicas, atingindo 24% das pessoas que têm se sentido dessa forma durante a pandemia.

No total, 40% da população se sentiu triste/deprimida e 53% se sentiu ansiosa/nervosa frequentemente (muitas vezes ou sempre). Entre os adultos jovens (18-29 anos), os percentuais subiram para 54% e 70%, respectivamente.

“O consumo abusivo de álcool e o Beber Pesado Episódico, ou seja, o consumo de mais de cinco doses por ocasião para homens e quatro para mulheres, geralmente em um intervalo de duas horas, estão muito associados com as alterações de saúde mental que ocorreram durante a pandemia da covid-19, que a gente sabe que teve um impacto muito grande na saúde mental”, destacou o presidente do IBRAFIG, instituto vinculado à Sociedade Brasileira de Hepatologia.

“Essa elevação de consumo do álcool pode elevar a frequência de doenças hepáticas, principalmente cirrose hepática a longo prazo, e o álcool é uma substância que causa dependência, então o que começou durante a pandemia pode ser que não desapareça. Pode ser um hábito que veio para ficar e que pode levar a um incremento importante das doenças do fígado”, acrescentou.

Bitencourt lembrou, ainda, que, 48% das causas de cirrose no mundo são atribuídas ao consumo de álcool, fator importante também no Brasil, onde cerca de 41% da população consome álcool, tendo como bebida preferida a cerveja.

O especialista também ressaltou que, apesar de o consumo ser mais abusivo entre homens com alto poder aquisitivo, o aumento no consumo entre mulheres nos últimos anos vem chamando a atenção, principalmente porque elas têm uma predisposição maior para desenvolver doença alcoólica do fígado.

Um estudo retrospectivo divulgado pela Organização Pan-americana de Saúde (OPAS) em abril de 2021, também apontou que o consumo do álcool contribui para mais de 300 mil mortes nas Américas, e que quase 65% delas correspondem a pessoas com menos de 60 anos de idade e 64% ocorreram por doença hepática.

Além disso, os números indicam que cerca de 80% das mortes atribuíveis ao álcool aconteceram em três países: Estados Unidos, Brasil (quase 25% do total) e México.

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