Em discurso memorável, chanceler condena marxismo, globalismo e reaviva patriotismo; leia íntegra

24/10/2020 16:58 Atualizado: 24/10/2020 16:58

Por Bruna de Pieri, Terça Livre

Em um memorável discurso de aproximadamente 30 minutos, o ministro do Itamaraty, Ernesto Araújo,  afirmou na quinta-feira (22) que prefere ver a política externa do Brasil sendo condenada por outras nações a se aliar ao “cinismo interesseiro dos globalistas, dos corruptos e semicorruptos”. Ele discursou durante cerimônia de novos diplomatas do instituto Rio Branco.

O chanceler declarou que se a atuação da diplomacia do país “faz de nós um pária internacional, então que sejamos esse pária”. Denunciou ainda a perda da religiosidade e do amor à pátria.

O ministro condenou globalismo e multilateralismo, e também afirmou que o Brasil estava perdendo a sua identidade antes de o presidente Jair Bolsonaro assumir o mandato, em janeiro de 2019.

“Sim, o Brasil hoje fala de liberdade através do mundo. Se isso faz de nós um pária internacional, então que sejamos esse pária”, destacou o chanceler, que acrescentou que “é bom ser pária”.

“Esse pária aqui, esse Brasil, essa política do povo brasileiro, tem conseguido resultados. Talvez seja melhor ser esse pária deixado ao relento, deixado de fora, do que ser um conviva no banquete no cinismo interesseiro dos globalistas, dos corruptos e semicorruptos”, afirmou Araújo.

O ministro fez críticas ao viés marxista da personalidade que foi escolhida pelos formandos para ser o patrono da turma, o poeta e diplomata João Cabral de Melo Neto.

Ponderou que apesar de Melo Neto ter tido “grande sensibilidade para o sofrimento do povo brasileiro”, ele acabou se desvirtuando para o “lado errado do marxismo e da esquerda”.

“Sua utopia, esse comunismo brasileiro de que alguns ainda estão falando até hoje, consistia em substituir esse Brasil sofrido, pobre e problemático por um não-Brasil, um Brasil sem patriotismo, sujeito naquela época, anos 50, 60, aos desígnios de moscou, e hoje, nesse novo conceito de comunismo brasileiro, sujeito aos desígnios sabe-se lá de quem”, disse Araújo.

Leia na íntegra o discurso do ministro:

Bom dia a todos,

Excelentíssimo Senhor Presidente da República, Jair Bolsonaro,

Excelentíssima Primeira-Dama, Senhora Michelle Bolsonaro,

Excelentíssimo Senhor Antônio Hamilton Martins Mourão, Vice-Presidente da República,

Excelentíssima Senhora Paula Mourão,

Excelentíssima Senhora Embaixatriz Maria Eduarda de Seixas Corrêa, minha esposa,

Excelentíssimos Senhores Ministros de Estado que tanto abrilhantam aqui esta ocasião,

Demais autoridades,

Senhor Senador Nelsinho Trad e Senhor Deputado Eduardo Bolsonaro, Presidentes das Comissões de Relações Exteriores do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, em nome dos quais cumprimento todos os demais parlamentares presentes,

Excelentíssimo Senhor Embaixador Otávio Brandelli, Secretário-Geral das Relações Exteriores,

Excelentíssima Embaixatriz Rosa Brandelli,

Excelentíssima Senhora Embaixadora Maria Stela Pompeu Brasil Frota, Diretora do Instituto Rio Branco,

Senhores Membros do Corpo Diplomático,

Senhoras e Senhores,

Quero inicialmente saudar aqui, muito especialmente, os formandos. Os formandos da Turma João Cabral de Melo Neto do Instituto Rio Branco, justamente neste ano em que o nosso instituto completa 75 anos, três quartos de século de vida. Quero saudar as famílias dos formandos também, muito especialmente e, falando em família, Maria Eduarda, minha companheira nessa pequena tarefa de tentar ajudar o Presidente Jair Bolsonaro a mudar o Brasil e tentar ajudar o Brasil a mudar o mundo.

Uma saudação muito especial à querida Professora Sara Walker com quem aprendi, acho que a maior parte do inglês que eu sei e dizer da imensa gratidão minha e de tantos diplomatas brasileiros ao trabalho da Professora Sara Walker, não apenas no ensino da língua inglesa, mas no passar a profundidade desse maravilhoso instrumento de comunicação que é a língua inglesa, com a sua profundidade, com a sua simplicidade e a sua sabedoria.

Quero expressar minhas condolências e de todos nós pela perda de tantas vidas que tem ocorrido em função da Covid e, especialmente, meus sentimentos pelo falecimento ontem à noite do querido Senador Arolde de Oliveira que faleceu no Rio de Janeiro aos 83 anos e queria expressar as nossas condolências também por pessoas que falecerem de todas as doenças de todas as causas nesse mesmo período, não apenas da Covid, obviamente.

Gostaria de parabenizar os formandos pela escolha do patrono da turma, João Cabral de Melo Neto, por ser um poeta e diplomata. Modestamente, considero-me também as duas coisas, diplomata e poeta.

Durante muito tempo achei que se tratava de dois ofícios muito diferentes, duas vocações quase incompatíveis, que poderiam talvez conviver na mesma pessoa, mas não na mesma personalidade, como água e azeite que podem estar no mesmo jarro mas que não se misturam. Poesia e diplomacia constituem-se ambas num trabalho com a linguagem, coabitam na linguagem, mas – pensava eu – tampouco se misturam.

Poesia é expressão do sentimento, segundo a definição romântica, que eu acho que é a melhor que existe, mas também, se preferirem outra definição, poesia é a exploração da realidade humana através da linguagem posta em liberdade. Ou ainda: poesia é quando você não precisa ir até o final da linha. Que é uma brincadeira, mas que, no entanto, aponta, igualmente, para o aspecto libertário da poesia, sua busca pela essência, pelo “algo” determinante, dentro de um campo vazio, o mistério da criação de sentido e geração de sentimento a partir do caos e da inércia da matéria, que no fundo é o mistério da humanidade. Então: Libertação, exploração, aventura, sentimento, essência, criação, mistério. A poesia se nutre de todos esses alimentos e ao mesmo tempo nutre com eles a alma humana.

Já a diplomacia, pensava eu, nada tem a ver com poesia. No exercício diplomático a linguagem aparece como instrumento para a concatenação de propósitos entre duas ou mais partes com vontades distintas. Na diplomacia e em sua linguagem, nesse entendimento, não haveria liberdade, mas apenas a sujeição a regras rígidas de forma e conveniência; não haveria sentimento, mas apenas interesse; não haveria aventura, mas apenas prudência; não haveria mistério, mas apenas informação. Não haveria criação.

Hoje não penso assim, e quero encorajar os formandos, e a todos os colegas diplomatas, a não pensarem assim. Há alguns anos comecei a pensar diferente, e a cada dia vejo com mais clareza que precisamos de poesia na diplomacia, que a diplomacia também pode criar e libertar. Que a diplomacia, como todas as atividades do ser humano, está pronta a receber o vento do espírito. A diplomacia pode ajudar a libertar o pensamento, libertar a língua, libertar a grande nação brasileira e o próprio mundo, da pobreza material e da pobreza de espírito.

A diplomacia pode e precisa ter sentimento e expressá-lo.

A diplomacia pode e deve aventurar-se, constituir-se numa aventura intelectual e sentimental, romper as fronteiras da mediocridade e embrenhar-se no mistério da existência.

A diplomacia pode ser lírica, pode ser dramática, mas também pode ser épica. A diplomacia pode ter bandeira e pátria.

A diplomacia pode pensar. A diplomacia pode falar.

Para mim isso foi uma descoberta transformadora, e quero compartilhá-la com todos aqui.

Vocês, da nova turma, chegam a um Itamaraty que se renova, que se abre ao mundo das ideias, que sai de um pequeno açude de clichês, frases feitas e lugares-comuns para mergulhar no oceano da vida do espírito, que é o conteúdo fundamental da vida humana. Um Itamaraty que sai de si mesmo para entrar no Brasil.

Os seguintes versos do Auto do Frade, de João Cabral de Melo Neto, representam bem este momento da nossa Casa:

“Acordo fora de mim,

Como há muito não fazia (…)

Acordo fora de mim:

Como fora nada eu via

Ficava dentro de mim

Como vida apodrecida.

Acordar é reacordar-se

Ao que em nosso redor gira.”

O Itamaraty ficou muito tempo preso dentro de si mesmo, cantando glórias passadas, lustrando troféus antigos e esquecendo-se de jogar o campeonato deste ano. Fazendo marcas na parede para contar quantos dias faltam até a próxima remoção. Vivendo no intelecto a vida apodrecida de conceitos ultrapassados, superficiais, satisfeito com a própria fama.

Em seu discurso na noite da vitória, quase exatamente dois anos atrás, em 28 de outubro de 2018, o Presidente Jair Bolsonaro, então recém-eleito, proclamava: Vamos libertar o Itamaraty!

E era disso que precisávamos, Senhor Presidente: libertação.

O poema de João Cabral de Melo Neto que acabo de citar é sobre Frei Caneca, no momento em que o tiraram de seu calabouço para ser executado, executado por amor à pátria, essa pátria então ainda no berço. Executado pelo sentimento de liberdade, que é impossível de sufocar nos grandes homens e nas grandes mulheres, nos mártires, visionários, criadores e líderes que pontuam a aventura humana.

Precisamos de libertação. Libertação para que despertemos e voltemos a enxergar o Brasil e o mundo.

Então digo à nova turma, digo aos colegas:

“Acordar é reacordar-se

Ao que em nosso redor gira.”

João Cabral possuía uma grande sensibilidade para o sofrimento do povo brasileiro, plasmado em sua obra-prima, Morte e Vida Severina.

Como muitos de sua geração, tinha a percepção clara do problema secular do Brasil, da causa central do sofrimento de seu povo: aquilo que Raymundo Faoro chamou o “patronato político brasileiro”, o sistema de clientelismo construído por uma oligarquia corrupta.

Mas a resposta de muitos da sua geração, e talvez do próprio João Cabral, a esse gigantesco e premente problema, dirigiu-se para o lado errado. Para o lado do marxismo e da esquerda. Sua utopia, esse “comunismo brasileiro” de que alguns ainda estão falando até hoje, consistia em substituir esse Brasil sofrido, pobre e problemático por um não-Brasil.

Um Brasil sem patriotismo, sujeito naquela época, anos 50, 60, aos desígnios de Moscou, e hoje, nesse novo conceito de comunismo brasileiro, sujeito aos desígnios sabe-se lá de quem.

Um Brasil materialista, do ser humano sem sua dimensão espiritual, esse grande roubo do espírito que na época se realizava pela redução de tudo ao aspecto econômico (e com uma péssima noção de economia, diga-se de passagem) e ao conceito de classe, e que hoje atua pela redução de tudo a conceitos como gênero, raça e outros.

Um país que eles queriam “libertar” por meio da ditadura do proletariado. Hoje pela ditadura do politicamente correto e da criação de órgãos de controle da verdade.

Um Brasil que queriam submeter, como o resto do mundo, à sua dialética, que como sabemos não é a dialética dos diálogos platônicos da busca pela verdade que cada um traz guardada dentro de si, mas a dialética no sentido da relativização da verdade, onde a verdade é tudo aquilo que serve ao poder do partido.

E, pior de tudo, a utopia de um Brasil sem Deus, de um povo brasileiro arrancado aos braços de sua fé cristã. Como dizia Dostoievski, um povo sem Deus não merece o nome de povo, e era justamente isso que os comunistas de todas as épocas queriam e querem, destruir o povo em sua organicidade viva e sentimental e transformá-lo em uma massa. Foi assim na revolução soviética que destruiu a velha Rússia de Dostoievski, e assim querem fazer hoje, por exemplo, aqui tão perto de nós, no Chile, destruindo igrejas e imagens e assim quiseram e quererão sempre fazer no Brasil. Com o agravante perverso, de que no nosso caso, em que tentaram destruir a fé cristã não apenas de fora, mas também de dentro. Não queimaram, ainda, igrejas, mas inventaram a infame teologia da libertação, que nem é teologia nem muito menos de libertação, mas sim um instrumento para corromper e estraçalhar a fé e a espiritualidade natural dos brasileiros, uma tarefa em que, reconheça-se, na qual avançaram muito.

Então, os diferentes marxismos e esquerdismos tentaram enfrentar o tradicional poder oligárquico corrupto brasileiro, mas não porque amassem o povo brasileiro, sofrido e oprimido. Ao contrário. Sim porque adoravam e ansiavam pelo poder que as oligarquias detinham. A partir de 2002, esperava-se ver o grande embate entre as esquerdas e as oligarquias. Mas não foi o que aconteceu. Porque as esquerdas e as oligarquias não queriam coisas opostas, mas a mesma coisa, o poder. Deu-se então o grande amálgama entre a ideologia esquerdista e o patronato político brasileiro, o que produziu esse grande paroxismo, essa grande orgia de corrupção. Quando a esquerda e a oligarquia se encontraram, descobriram que eram irmãos há muito tempo estranhados, ambos filhos do cinismo e da sede de poder, abraçaram-se e puseram-se a roubar o povo brasileiro.

Milagrosamente, interrompemos essa marcha para o abismo. Como? Porque o povo brasileiro, como no poema de João Cabral de Melo Neto acordou e conseguiu olhar para fora, para fora daquela vida apodrecida, e configurou uma esperança, e encontrou um líder, que é o nosso Presidente, que conhece e ama esse povo e nos ensina a conhecer e amar esse povo. Esse povo que sofre, mas que crê em Deus, que crê sobretudo no Deus incarnado, que sofre e, pelo sofrimento, liberta. Esse povo que é cristão e conservador, Severinos e Severinas que são cristãos e conservadores.

Severina era uma a moça paraibana que veio do agreste para Brasília nos anos 60 fugindo da pobreza, como o Severino, de João Cabral de Melo Neto, e que juntamente com meus pais, me criou praticamente desde que nasci e tornou-se parte da nossa família. Lembro-me de uma vez, lá por 1986 ou algo assim, quando estávamos em família vendo televisão e apareceu o programa partidário do Partido Comunista do Brasil. Logo Severina exclamou: “Nossa, eu odeio esse negócio de comunismo.” Na tela o presidente do Partido falava do ideal comunista de libertar todos os povos do planeta, ou algo assim. E Severina comentou indignada: “Hum, mentira. Eles são contra Deus.”

Severino e Severina sabem muito mais do que a maioria dos acadêmicos.

Por isso o povo brasileiro, esse povo Severino, confia no Senhor, Presidente, porque o Senhor fala de liberdade e do poder libertador da verdade, porque o Senhor fala de Deus. Fala de Deus como Aquele em que o Senhor realmente crê, fala de liberdade como aquilo que realmente sente.

Esse povo escandaliza os intelectuais prudentes e sofisticados, esse povo revolta os esquerdistas que o detestam, amedronta os antigos e os mais recentes donos do poder. O poder oligárquico pela primeira vez está efetivamente ameaçado. A oligarquia e a esquerda se acasalaram confortavelmente, mas diante do povo, elas tremem.

Somente a fé verdadeira deste povo cristão e conservador proporciona a couraça moral e o coração palpitante de amor patriótico para enfrentar o dragão da maldade.

Este povo Severino, esta grande nação Severina é o que queremos levar para o mundo.

Para isso, precisávamos libertar o Itamaraty e despertar o Itamaraty. Esta nova turma, quero crer, já nasce com os olhos abertos, já chega com o sorriso de quem sabe que está ingressando, não numa burocracia talvez um pouco mais glamorosa do que outras burocracias, muito menos numa espécie de ONG incrustada no governo federal, mas sim numa grande demanda, no sentido medieval, numa aventura nacional e mundial de proporções históricas, uma “Gigantomachía perí tes Ousías” para usar a expressão de Platão, um combate de gigantes pela essência, pela essência da pátria, pela essência da nossa civilização, pela essência e dignidade do próprio ser humano.

Não apenas o brasileiro, mas todo ser humano é um Severino que sofre no mundo por todos os tipos de problemas, peregrino num vale de lágrimas, mas que possui uma dimensão espiritual, que é feito à imagem e semelhança do criador como acreditamos os cristãos, que possui uma alma imortal como demonstrava Platão, e que somente pelo reconhecimento e cultivo dessa dimensão espiritual poderá exercer plenamente sua humanidade e sua liberdade. Não é que o ser humano tenha aspirações à transcendência, o ser humano é uma permanente aspiração à transcendência.

O iluminismo não deu resposta a essa aspiração, quis resolver os problemas e contradições humanas matando o espírito. “Écrasez l’infâme”, pedia Voltaire, esmagai o infame ou a infame. Normalmente se considera que ele se referia à Igreja católica, mas penso que em última instância ele queria esmagar Deus, o Cristo, o espírito humano, o próprio homem em sua essência indefinível, que escapa à lógica.

O marxismo depois procurou transformar o homem de um trabalhador explorado, mas que, pelo menos, tinha o direito de rezar e pela fé respirar o ar da transcendência, em um trabalhador ainda mais explorado, mas que já não reza porque Deus foi proscrito.

Hoje temos o globalismo e o politicamente correto tentando consertar a humanidade sem entendê-la, sem amá-la, “salvar a humanidade de si mesma” como sustentou absurdamente uma Embaixadora aposentada, que deveria ser o objetivo da política internacional. Tentam salvar a humanidade de si mesma construindo um ser humano artificial, um androide, sem sentimento, sem instinto, sem sexo, sem família, dominado por mecanismos de controle social e psicolinguístico. Um ser humano constituído pela estranha mistura de indignação furiosa e passividade letárgica. Fúria diante de falsos problemas criados pelo gigantesco mecanismo de manipulação do discurso e incutidos na sua cabeça. Passividade diante da corrosão de sua nobreza intrínseca, diante da corrosão de suas liberdades fundamentais, de seus direitos, que estão todos lá, na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, mas que o globalismo esqueceu.

Nada disso pode dar certo.

A liberdade do ser humano reside na sua espiritualidade. Sem ela o homem é escravo do ciclo inútil do viver e do morrer. Sem ela o intelecto torna-se puramente calculador desprovido de poesia e criatividade. Sem a espiritualidade o homem perde o bom-senso e a capacidade de navegar num mundo de difíceis julgamentos morais, caindo em um dos extremos: ou a permissividade absoluta ou esse estranho hipermoralismo da atualidade, muito mais restritivo que o da era vitoriana. “Se Deus não existe, tudo é permitido”, pensava o personagem de Dostoievski, e se deu mal. “Se Deus não existe, nada é permitido”, afirmou Jacques Lacan nos anos 60, reconhecendo – cinicamente ou não – que a perda da transcendência faz do homem um permanente escravo do medo. A falta de transcendência faz o homem dobrar-se à arbitrariedade.

Só existe democracia, ou seja, só existe controle externo do poder, quando existe um valor maior externo ao poder. Essa é uma das principais lições do magnífico livro Du Pouvoir, do historiador Bertrand de Jouvenel. Se as leis não correspondem a alguma lógica que as transcenda, a um sentimento inato de justiça, à fé em alguma ordem das coisas, chamemos isso de Direito Natural ou como seja, essas leis podem tornar-se arbitrárias e opressivas. Isso porque o sentimento de justiça e a moralidade não são deriváveis puramente da estrutura material do universo. Não há justiça nem expectativa de justiça no mundo da química, da física e da biologia. No pensamento materialista não há como justificar a justiça. Não há nem nunca poderá haver comprovação científica da dignidade humana. A ordem moral, a percepção do bem e do mal, pressupõe uma dimensão vertical do ser humano, que transcende a dimensão horizontal da natureza. Na construção materialista só existe o poder. A lei é ali um instrumento do poder e a ele se subordina. No materialismo a verdade se subordina ao poder e às suas conveniências, somente na presença da esfera espiritual é que o poder se subordina à verdade. As ideologias amorais do Século XX tiveram seu terreno preparado pelo assoreamento das correntes espirituais do ser humano. Esquecido o espírito, desprezado o espírito, a lei pode legislar para o mal, pode premiar a brutalidade e punir a inocência e não haverá ninguém para contestá-la.

Tanto a liberdade quanto a justiça, portanto, requerem que o homem continue a poder beber do caudal da transcendência.

Alguns aspectos do chamado multilateralismo podem até ser bem-intencionados, mas jamais alcançarão seus objetivos declarados. Como não creem, os multilateralistas têm medo, têm vergonha de falar em liberdade. Nos discursos de abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas deste ano, por exemplo, os Presidentes Bolsonaro e Trump foram praticamente os únicos a falar em liberdade. Naquela organização que teria sido, que foi fundada no princípio da liberdade, mas que a esqueceu.

Sim, o Brasil hoje fala em liberdade através do mundo. Se isso faz de nós um pária internacional, então que sejamos esse pária. Que sejamos esse Severino que sonha e essa Severina que reza e que, no meio de todos os seus padecimentos, sabem que existe um céu mais alto do que o céu, um mar mais profundo do que o mar, como diria o poeta E. E. Cummings. Talvez seja melhor ser esse pária, deixado ao relento do lado de fora, do que ser um conviva no banquete de cinismo interesseiro dos globalistas, dos corruptos e semicorruptos. Este pária não tem o seu nome em nenhuma planilha, não fez negociatas para promover partidos amigos em outros países, não pertenceu ao Conselho de nenhuma grande construtora exportadora de propina.

É bom ser pária. E este pária aqui, este Brasil, esta política externa do povo brasileiro, esta política externa Severina, digamos assim, tem conseguido resultados. Concluímos acordos comerciais com as maiores economias do mundo, como União Europeia e Estados Unidos, restauramos as relações com países de alta tecnologia como Israel e o Japão, criamos parcerias com grandes centros de capital como Arábia Saudita e Emirados Árabes que nos trazem novos investimentos. Assinamos novos instrumentos com a Índia, aumentamos as exportações do agronegócio, para o mundo árabe e para a China, conquistamos novos mercados nos países da ASEAN, começamos a reconfigurar nossas relações com a África com base no objetivo de ter acordos de livre comércio e cooperação também no combate ao crime organizado. Apoiamos a abertura de novos horizontes de paz e prosperidade no Oriente Médio. Estamos reposicionando o Brasil nas grandes cadeias globais de produção para receber mais investimentos, criar muito mais empregos e tornar-nos uma verdadeira economia de mercado, uma grande potência do agro mas também uma economia industrial e tecnológica de ponta. Estamos trabalhando com grandes parceiros para a reforma das instituições multilaterais, por exemplo, com os EUA na OMC, com a Alemanha, Índia e Japão no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Também reposicionamos o Brasil nos foros de Direitos Humanos. Por exemplo, para defender o direito à vida, à liberdade, à liberdade de expressão e à liberdade religiosa, contra a cultura da morte, contra a instrumentalização das tecnologias de comunicação para fins de controle social, contra a perseguição dos praticantes de qualquer religião, não apenas em defesa concreta do direito de praticar uma ou outra religião específica, mas também em defesa da própria religiosidade e espiritualidade intrínseca do ser humano.

Reposicionamos o Itamaraty e a política externa para enfrentar os verdadeiros problemas e desafios da nossa região, da América do Sul e da América Latina, que se concentram no complexo político-criminoso, do qual a Venezuela de hoje, a Venezuela do regime de lesa-humanidade de Maduro é apenas a ponta do iceberg.

Ao contrário de muitos multilateralistas, nós, os párias, lemos e acreditamos no que está escrito nos grandes instrumentos multilaterais. Por exemplo, na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Essa Declaração é um verdadeiro hino à liberdade. A liberdade aparece em praticamente todos os seus artigos. O Artigo 18, por exemplo, estabelece a liberdade de pensamento e de crença. O Artigo 19 consagra a liberdade de opinião e de expressão. O Artigo 21 determina o direito à democracia e diz, com palavras apenas ligeiramente diferentes da nossa Constituição, que todo o poder emana do povo.

Então, quando a nossa Constituição coloca, entre os princípios que devem reger as relações internacionais do Brasil, a prevalência dos Direitos Humanos, é disso que nós estamos falando. Se não defendermos a liberdade religiosa contra aqueles que perseguem pessoas de todas as fés, inclusive contra aqueles que praticam, sim, a Cristofobia, não estaremos cumprindo a Constituição. Se não defendermos a liberdade de expressão contra os riscos da criação de uma sociedade mundial de controle, não estaremos cumprindo a Constituição.

No entanto, quando trabalhamos por esses objetivos, quando nos reunimos com nações amigas que também acreditam na liberdade para defender esses mesmos princípios, algumas pessoas dizem que estamos descumprindo a Constituição. Convido essas pessoas à reflexão e ao autoexame de consciência, pois em alguns casos esses mesmos críticos são pessoas que passam todo o seu tempo tentando mudar a Constituição para atender aos seus próprios interesses. E quando não conseguem mudar, tentam encontrar maneiras de distorcer a interpretação do texto constitucional para seus objetivos de poder. Ora, a prevalência dos direitos humanos também deve valer dentro do Brasil. Vamos ler o Artigo 21 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, inciso 3: A Vontade do Povo é o fundamento da autoridade dos poderes públicos.

Chamam-nos de ideológicos. Então vamos ver o que é ideologia. Ora, o conceito de ideologia foi introduzido por Marx e Engels para designar pejorativamente toda essa massa de pensamento, filosofia e sabedoria humanas existentes que atrapalhavam a implementação da sociedade comunista. Expulsavam do campo do saber toda a vida do espírito, para ficar apenas com as relações materiais de produção, e diziam que assim libertariam a humanidade. Mas tudo o que eles consideravam os fantasmas da consciência que mascaravam as relações de dominação, tudo isso simplesmente é aquilo que faz o homem humano, tudo aquilo que permite a um “bicho da terra tão pequeno” como dizia Camões, sonhar e viver uma vida com significado – onde o significado é justamente a liberdade para buscar o significado. A pergunta “qual é o sentido da vida” não tem resposta direta. A resposta é: o sentido da vida é dar sentido à vida. Ou, dito por outro poeta, “aquilo que procuras está guardado no fundo de tua procura”. Ideologia, para Marx e Engels, é proibir a verdadeira procura. Eles querem dialética só para os outros, para solapar as bases milenares do pensamento e destruir a alma. Para si mesmos e para o seu comunismo, querem a certeza impositiva.

Quem hoje nos atira o epíteto de “ideológico” está reproduzindo essa estratégia marxista, que diz que o ideológico é todo o pensamento humano livre para questionar, todo o sentimento humano livre para amar: isso é o que os nossos pragmáticos e isentões querem proibir. Talvez sem saber o que estão fazendo, porque podemos dizer que todo isentão é escravo de algum marxista defunto. Reproduz cada um deles a estratégia marxista porque intui que se trata de um bom caminho para o poder. Mas talvez a explicação seja mais simples: pessoas com baixa capacidade intelectual descobriram que podem parecer inteligentes chamando de ideológico tudo aquilo que não alcançam compreender. Compreendem.

Tachar os conservadores de ideológicos é a epítome da prática marxista-leninista: chame-os do que você é, acuse-os do que você faz. O grande complexo marxista-isentista cria ideologias todos os dias, ou seja, agarra traços da realidade sempre complexa e cambiante e os transforma em sistemas de elocução fechados, que não admitem questionamentos. Assim, tomam o meio ambiente e as preocupações legítimas com esse tema e o transformam em ambientalismo. Tomam a mudança climática e a transformam em climatismo. Tomam a ciência e a transformam em cientificismo. Tomam a iluminação e a transformam em iluminismo. Tomam as instituições multilaterais que podem ser muito úteis para a coordenação entre as nações e as transformam em multilateralismo, a doutrina de que tudo tem que ser resolvido por instâncias superiores aos países. Tomam uma doença causada por um vírus, a Covid, e a transformam, ou tenta transformá-la, num gigantesco aparato prescritivo destinado a reformatar e controlar todas as relações sociais e econômicas do planeta, o “Covidismo”, chamemos assim. Tudo sempre em nome de causas nobres, tudo sempre tendo como consequência o aumento do poder que manejam esses vários ismos. Do tipo: “quero salvar o planeta… quero salvar vidas… ops… chegou mais poder aqui na minha mão… olha, não era o que eu queria, mas tá bom, fica aqui… que coincidência, não?” Aqueles que nos acusam de ideológicos são aqueles que ideologizam toda a realidade e toda a vida para concentrar poderes. Já têm a solução para tudo e estão sempre à cata de novos problemas para encaixar essa solução. A solução é mais poder para eles, menos poder para as pessoas comuns, menos liberdade para o espírito.

A mídia infelizmente faz parte desse esquema, ao selecionar, manipular e inventar a informação. Antigamente, líamos a imprensa para saber o que estava acontecendo. Hoje, lemos a imprensa simplesmente para saber o que a imprensa está dizendo. Às vezes a imprensa diz coisas interessantes e importantes, portanto isso não é uma crítica. Mas distorce o debate público. Veja-se por exemplo a questão da ciência. Hoje o critério para saber o que é científico ou não deixou de ser a capacidade de cada teoria de explicar a realidade, sendo testada diante dos fatos, e permanentemente sujeita a questionamentos. Não, hoje ciência é simplesmente aquilo que é dito pelos cientistas que têm acesso à grande mídia. Não mais são as teorias que resistem ao teste dos fatos que se tornam aceitas, até serem eventualmente substituídas por teorias que explicam expliquem melhor os fatos. Não, agora são as teorias que conseguem entrar na mídia as que se tornam, não simplesmente aceitas, mas mandatórias, peremptórias, inquestionáveis, sob pena de banimento. E será que essa seleção pela mídia daquilo que é ou que não é científico, será que isso corresponde a algum interesse político por trás da mídia? Será? Mesmo quando há bilhões e trilhões de reais e dólares envolvidos, mesmo quando está em jogo o poder sobre países inteiros e sobre a estrutura do poder do mundo? Não pode ser. Deve ser teoria da conspiração. Isso de que a mídia está manipulando a informação para dar poder a esse ou aquele grupo de interesses?  Não pode ser. Mas tenho a vaga suspeita de que é.

Tenho a certeza de que muitos aqui, e não só aqui, estão despertando e rompendo as paredes da sua prisão mental. Tanto o olhar daqueles que despertam para o Brasil quanto o daqueles que despertam para o mundo convergem na mesma linha de horizonte: a liberdade e o povo. A verdade transcendente como critério que julga o poder, e não o poder como critério que estabelece a verdade.

O exercício da poesia e o da diplomacia também convergem nessa mesma linha, a convicção do valor da nossa dignidade, escrito a cada dia, linha a linha. Levei quase 30 anos para descobrir isso. Sugiro que vocês, formandos, já comecem com essa base, e poderão aprender muito mais coisas do que aprendi, ao longo de suas carreiras, e fazer muito mais coisas pelo Brasil e pelo mundo. Ambas, a poesia e a diplomacia, são expressão do sentimento de amor à pátria e à vida. Ambas são a busca da verdade, a verdade inatingível mas incontornável, e a proclamação dessa busca com seu espírito transformador e aventureiro, o espírito que sopra onde quer.

Muito obrigado.

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