Depois de dois anos, o tratamento dispensado aos presos acusados de envolvimento nos atos de 8 de janeiro de 2023 permanece pouco divulgado, especialmente em relação ao rigor com que têm sido punidos em comparação a outros criminosos, como traficantes de drogas. A versão oficial associa o evento a uma suposta tentativa de golpe de Estado.
O 8 de janeiro é um marco na história recente do Brasil, tanto pela controvérsia das versões divulgadas sobre o acontecimento, quanto pelas implicações jurídicas posteriores, levando à morte na cadeia do empresário Cleriston Pereira da Cunha, de 46 anos, mais conhecido como “Clezão”, que deixou viúva e duas filhas.
Naquela tarde, manifestantes se direcionaram às sedes dos Três Poderes em Brasília em repúdio ao resultado eleitoral de 2022, enquanto vândalos — que até hoje não se sabe se eram militantes infiltrados — arrombaram os prédios do Congresso Nacional, Palácio do Planalto e Supremo Tribunal Federal (STF) e incitaram as depredações.
A Corte condenou 371 pessoas a penas de prisão, com outras 552 investigações em andamento. Dentre os condenados, 225 foram sentenciados por crimes como tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado e associação criminosa armada, cujas penas variam entre três e 17 anos de prisão.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) excluiu os envolvidos no 8 de janeiro do indulto natalino de 2024. Embora o decreto tenha concedido perdão a outros tipos de presos, como mães e avós de crianças com deficiência, os participantes do 8 de janeiro não puderam se beneficiar, mesmo que tivessem esse direito.
A decisão impactou casos como o da cabeleireira Débora Rodrigues dos Santos, que, apesar de ser mãe de filhos menores de 12 anos, não foi incluída no indulto. Ela, que escreveu “perdeu, Mané” numa estátua da Justiça, mas não invadiu prédios públicos, viu-se equiparada a criminosos de crimes hediondos. Outros casos são emblemáticos.
Karina Rosa dos Reis: entre doença e Justiça
Natural de Araxá (MG), Karina Rosa dos Reis, é apontada como uma das pessoas envolvidas nos atos do 8 de janeiro. Ela foi presa no acampamento no dia seguinte e, após passar mal devido a problemas de saúde, foi liberada com liberdade provisória em 20 de janeiro de 2023.
Karina, que possui câncer de tireoide, pediu permissão ao ministro Alexandre de Moraes, do STF, para retirar sua tornozeleira eletrônica a fim de realizar um exame médico, uma ressonância magnética. No entanto, o pedido foi negado.
A decisão gerou um impasse, considerando que Karina, além do câncer, enfrenta uma série de restrições devido às medidas cautelares impostas, como o uso da tornozeleira eletrônica, a proibição de se ausentar de sua comarca, de se comunicar com outros presos e de utilizar redes sociais.
Jorge Luiz dos Santos: erro jurídico e saúde
Outro caso que chama atenção é o de Jorge Luiz dos Santos, pastor preso em 8 de janeiro, que também enfrenta um quadro delicado de saúde. Detido por supostos crimes de associação criminosa armada, golpe de Estado e abolição violenta do Estado, Santos foi alvo de um erro judicial.
Moraes negou o pedido de liberdade provisória, alegando que o pastor possuía antecedentes criminais, citando, no entanto, os dados de um homônimo. A defesa de Santos contestou a decisão, apontando o erro e defendendo que ele nunca teve envolvimento com crimes anteriores.
Além do equívoco judicial, Santos apresenta sérios problemas de saúde, como sopro cardíaco e dilatação na aorta, que colocam sua vida em risco. A defesa, junto com familiares, solicitou a prisão domiciliar para que o pastor pudesse ser tratado de maneira adequada. No entanto, o STF tem negado sistematicamente esse pedido, o que agrava ainda mais sua condição.
Marileide Marcelino da Silva: prisão e câncer
Marileide Marcelino da Silva, de 54 anos, também é uma das pessoas afetadas pela prisão decorrente dos atos. Ela foi condenada a 14 anos de prisão, sendo 12,6 anos de reclusão e 1,5 ano de detenção, além de multa e indenização.
A prisão aconteceu após ela se envolver em manifestações, orando por líderes do Brasil. No entanto, o que se destaca no caso de Marileide são as sequelas do câncer de mama que ela superou anos antes.
Após o tratamento, Marileide desenvolveu complicações graves, como trombose venosa profunda em um de seus braços, o que exige cuidados médicos constantes.
Durante os sete meses em que permaneceu presa, ela enfrentou dificuldades ainda maiores para gerenciar sua saúde. Sem plano de saúde, ela depende do Sistema Único de Saúde (SUS), mas encontra dificuldades para obter exames especializados.
Marileide descreve em uma carta os desafios diários com as sequelas do câncer, incluindo dores intensas e a impossibilidade de realizar atividades simples, como pegar um bebê no colo. A prisão e a falta de assistência médica adequada pioraram seu quadro, levando a uma situação de vulnerabilidade extrema.
Sérgio Amaral Resende: cadeia, pancreatite e UTI
O caso de Sérgio Amaral Resende, engenheiro civil de 54 anos, também ilustra a gravidade da situação de alguns réus. Condenado a 16 anos de prisão pelos supostos crimes cometidos durante os atos do 8 de janeiro, Resende passou a sofrer de pancreatite aguda enquanto estava preso na Penitenciária da Papuda.
O quadro de saúde crítico levou-o à Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital Regional de Santa Maria, no Distrito Federal, onde recebeu atendimento médico.
A defesa de Resende, que já estava em busca de uma prisão domiciliar devido à gravidade de seu estado de saúde, agora considera intensificar o pedido para garantir que ele tenha um tratamento adequado, dado o risco de complicações adicionais, como insuficiência renal.
Juristas denunciam violações de direitos
Os presos têm enfrentado um tratamento jurídico diferenciado, com julgamentos que juristas consideram como de exceção. Para Fabricio Rebelo, coordenador do Centro de Pesquisa em Direito e Segurança (Cepedes), as acusações não têm base sólida, visto que os envolvidos não estavam armados nem organizados para um golpe de Estado.
A pressão para que os presos do 8 de janeiro sejam severamente punidos tem se intensificado e, segundo juristas, a Constituição Federal, bem como as garantias legais dos acusados têm sido desrespeitadas, incluindo o direito ao juiz natural e à ampla defesa.
De acordo com a consultora jurídica Katia Magalhães, a comparação com narcotraficantes e outros criminosos é clara. Ela lembra que, em outras situações, traficantes foram soltos sob alegações como a necessidade de cuidar de filhos, enquanto os presos do 8 de janeiro continuam a ser tratados com extrema severidade.