O ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), admitiu a tramitação de um recurso extraordinário que pode reverter a aplicação da Lei da Anistia de 1979, permitindo a punição de agentes do Estado responsáveis por crimes de desaparecimento forçado — quando após o homicídio, o corpo do morto é ocultado — durante o regime militar (1964-1985).
O recurso foi apresentado pelo Ministério Público Federal (MPF) e pretende responsabilizar Lício Augusto Ribeiro Maciel e Sebastião Curió Rodrigues de Moura — tenentes-coronéis do Exército envolvidos no desaparecimento de militantes de esquerda na Guerrilha do Araguaia, entre 1974 e 1976.
A denúncia contra os dois oficiais foi rejeitada em 2015 pelo Tribunal Regional Federal da 1.ª Região (TRF-1), com base na Lei da Anistia, que perdoou tanto os crimes políticos cometidos por agentes do regime militar quanto pelos militantes que se opunham ao governo.
Porém, o recurso que agora tramita no STF tem como objetivo reavaliar o perdão concedido, considerando que o crime de desaparecimento forçado é contínuo, ou seja, sua execução perdura no tempo, ultrapassando o período da anistia.
Na decisão que abre caminho para a revisão, Dino diz que a ocultação do corpo da vítima impede o luto da família e perpetua a omissão sobre o destino do desaparecido.
“O crime de ocultação de cadáver não ocorre apenas quando a conduta é realizada no mundo físico. A manutenção da omissão do local onde se encontra o cadáver, além de impedir os familiares de exercerem seu direito ao luto, configura a prática do crime, bem como situação de flagrante”, escreveu o ministro na decisão.
Dino também alegou que a lei de 1979 se aplica a crimes cometidos até aquele ano, mas não cobre os atos que continuaram a ocorrer após sua promulgação.
“A Lei da Anistia é válida para os fatos pretéritos, entretanto não alcança aqueles crimes em execução depois da sua aplicação”, declarou o magistrado em outro trecho.
Para que o recurso seja analisado pela Corte, será necessário o voto favorável de mais três ministros. Caso o recurso seja aceito, a decisão terá repercussão geral, ou seja, poderá influenciar outros casos semelhantes.
Recurso tenta reverter outra decisão do STF
Essa medida tem como objetivo reverter uma decisão do Supremo de 2010, quando a Corte declarou a constitucionalidade da Lei da Anistia, incluindo o perdão para os crimes de desaparecimento forçado. Naquela ocasião, a maioria dos ministros entendeu que o crime de ocultação de cadáver estava excluído da esfera criminal devido à anistia.
O ministro citou tratados internacionais e decisões de tribunais de direitos humanos, que condenam o desaparecimento forçado e criticam o Brasil pela falta de reparação às famílias das vítimas. Também mencionou a dor de familiares que nunca conseguiram velar e enterrar seus entes queridos.
“A história do desaparecimento de Rubens Paiva, cujo corpo jamais foi encontrado e sepultado, sublinha a dor imprescritível de milhares de pais, mães, irmãos, filhos, sobrinhos, netos, que nunca tiveram atendidos os seus direitos quanto aos familiares desaparecidos. Nunca puderam velá-los e sepultá-los, apesar de buscas obstinadas como a de Zuzu Angel à procura do seu filho”, disse Dino.
A decisão surge logo após a prisão do general Walter Braga Netto, ex-ministro da Defesa no governo de Jair Bolsonaro (PL). Netto foi acusado pelo ministro do STF, Alexandre de Moraes, de “obstruir investigações” em relação a uma alegada tentativa de golpe de Estado em 2022.