Animais de estimação: coisas ou integrantes da família?

Como cada vez mais os animais são tratados como membros das famílias e inúmeros processos deste âmbito são levados ao Judiciário, é imperiosa a aprovação do projeto de lei mencionado neste artigo, já que o tema merece uma tutela jurídica própria

05/07/2019 16:59 Atualizado: 05/07/2019 16:59

Por Thais Precoma Guimarães, Migalhas

O Brasil é o 4º país com a maior população de animais de estimação do mundo e, conforme últimos dados informados pelo IBGE, em 2015, o número de pets era maior do que o de crianças nos lares das famílias brasileiras, sendo que quase metade dos domicílios possuía um cachorro. Com isso, nos últimos anos o direito precisou adaptar-se a essa nova realidade, reconhecendo que o animal de estimação não deve mais ser tratado como objeto, justamente pela preocupação com a preservação dos laços afetivos existentes nas famílias, principalmente após separações e divórcios.

Os pets deixaram de ser “o melhor amigo do homem” e passaram a ser um membro da família. Essa nova modalidade familiar, chamada de multiespécie, formada por uma pessoa, alguns membros ou um casal e o animal de estimação, com integração humano-animal e relação de afeto, merece um tratamento igualitário na legislação brasileira.

A Declaração Universal dos Direitos dos Animais, da ONU, de 1978, estipulou, em seus artigos 2º e 5º, que cada animal “tem direito ao respeito” e “o direito de viver e crescer segundo o ritmo e as condições de vida e de liberdade que são próprias de sua espécie”. Igualmente, a proteção prevista na Constituição Federal (art. 225): “§1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”.

Em que pesem a frase “cachorro também é gente” (dita em 1991, pelo então ministro do Trabalho, Antônio Rogério Magri) e algumas propostas legislativas, no Brasil os animais ainda são tratados como coisa1. Na Europa, o tratamento jurídico é diverso. Nas legislações civis da Áustria2, Alemanha3, Suíça4 e Holanda5 os animais estão em uma categoria intermediária entre coisas e pessoas. Estes países incluíram expressamente a norma “os animais não são coisas”. Já França6 e Portugal7 determinaram que os “animais são seres vivos dotados de personalidade”.

Enquanto a legislação brasileira não toma o mesmo rumo, nossos Tribunais vêm decidindo, no âmbito do Direito de Família, pela aplicação analógica da legislação atinente à guarda compartilhada de crianças e adolescentes aos conflitos familiares que envolvam pets. Tal fato se dá em razão das relações que se formam entre os cônjuges e seus animais de estimação, baseadas no amor, no carinho e no afeto.

Um dos primeiros casos levados ao Judiciário foi julgado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro8, em recurso que tratava da posse do animal e os vínculos emocionais e afetivos construídos ao longo do relacionamento. Na ocasião, foi reconhecida a conexão do ex-marido com o pet e estipulado o regime de visitação ao cachorro. Como o Juiz precisou analisar as provas e a relação do casal com o animal, o próprio pet foi levado como “testemunha” do processo.

O rito é semelhante ao de uma ação de guarda e convivência de crianças, mas a diferença é que um dos proprietários pode renunciar à custódia do animal ou à visitação. A propriedade não basta para que seja estipulada a custódia unilateral do animal, pois a prova dominante é o vínculo afetivo do pet com a família, a afinidade e as condições para cuidar do animal (estrutura física, disponibilidade e habilidade). Além disso, deverá ser analisada a questão financeira, já que os cuidados com os pets exigem banhos frequentes, tosas e alimentação específica, o que se assemelhará à fixação de “pensão alimentícia”.

Em importante julgamento realizado em junho de 2018, no RESp 1.713.167/SP9, o Superior Tribunal de Justiça destacou a competência das Varas de Família para a análise do conflito. No acórdão de origem (do Tribunal de Justiça de São Paulo), restou reconhecido o direito dos ex-companheiros em terem a guarda e o direito de visitação ao animal de estimação, adquirido na constância da união, com aplicação analógica dos arts. 1.583 a 1.590 do Código Civil.

Vale salientar alguns trechos do acórdão, de lavra do relator, ministro Luis Felipe Salomão, que norteiam as decisões acerca do tema:

“O Código Civil, ao definir a natureza jurídica dos animais tipificou-os como coisas e, por conseguinte, objetos de propriedade, não lhes atribuindo a qualidade de pessoas, não sendo dotados de personalidade jurídica nem podendo ser considerados sujeitos de direitos”. “O regramento jurídico dos bens não se vem mostrando suficiente para resolver, de forma satisfatória, a disputa familiar envolvendo os pets, visto que não se trata de simples discussão atinente à posse e à propriedade”. “A ordem jurídica não pode, simplesmente, desprezar o relevo da relação do homem com seu animal de estimação, sobretudo nos tempos atuais. Deve-se ter como norte o fato, cultural e da pós-modernidade, de que há uma disputa dentro da entidade familiar em que prepondera o afeto de ambos os cônjuges pelo animal. Portanto, a solução deve perpassar pela preservação e garantia dos direitos à pessoa humana, mais precisamente, o âmago de sua dignidade”.

Sobre o tema, o professor José Fernando Simão, destaca que:

“Se o animal pertencer a um dos cônjuges (bem particular), poderá o juiz estipular a copropriedade em caso de clara relação afetiva e de cuidado de ambos para com o animal. A sua guarda, nesse caso, poderá ser unilateral de um dos cônjuges com visita do outro, ou mesmo compartilhada. A solução depende da situação fática e das provas colhidas pelo magistrado”10.

Para Marianna Chaves, o ideal é a fixação da “guarda alternada” dos pets:

“O pet, assim como os filhos humanos, necessita de afeto, atenção e cuidado, mas não será prejudicado pela alternância constante de residência. Até mesmo em virtude da praticidade para o ex-casal, a guarda alternada se mostra mais razoável, com uma divisão equilibrada do tempo de contato. (…) Na hipótese de dúvida sobre qual modalidade guarda escolher, o magistrado sempre poderá se socorrer de laudos de médicos veterinários ou especialistas em psicologia animal, por exemplo”.11

Desta forma, com base no princípio da dignidade da pessoa humana, ainda que inexista previsão legal, os julgadores vêm buscando propor uma solução razoável para atender os interesses familiares. Outra solução é estipular no pacto antenupcial como se dará a custódia e o regime de convivência com os animais de estimação em casos de divórcio, como destacado pelo Colégio Notarial do Brasil – Seção São Paulo12.

Em atenção à participação dos pets nos lares brasileiros, o Poder Legislativo busca regulamentar a situação por meio do PL do Senado 542/18, de autoria da senadora Rose de Freitas, que “estabelece o compartilhamento da custódia de animal de estimação de propriedade em comum, quando não houver acordo na dissolução do casamento ou da união estável. Altera o Código de Processo Civil, para determinar a aplicação das normas das ações de família aos processos contenciosos de custódia de animais de estimação”. A proposição sugere que haja divisão igualitária de tempo, das despesas com veterinário, internações e medicamentos. Já as despesas com alimentação e higiene serão arcadas por quem estiver exercendo a custódia.

A proposta teve como base o enunciado 11 do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM): “na ação destinada a dissolver o casamento ou a união estável, pode o juiz disciplinar a custódia compartilhada do animal de estimação do casal”.

Assim sendo, é essencial que haja a regulamentação da legislação brasileira, com o acolhimento do entendimento já consolidado internacionalmente de que animais não podem mais ser definidos como objetos ou coisas.

Como cada vez mais os animais são tratados como membros das famílias e inúmeros processos deste âmbito são levados ao Judiciário, é imperiosa a aprovação do projeto de lei mencionado neste artigo, já que o tema merece uma tutela jurídica própria. Com estas inovações, restará revigorado o pensamento de Charles Darwin: “A compaixão para com os animais é das mais nobres virtudes da natureza humana”.

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1 Arts. 82, 445, § 2º, 936, 1444, 1445 e 1446 do Código Civil brasileiro.

2 Inclusão em 1988 do art. 285a ao Código Civil austríaco.

3 Inclusão em 1990 do art. 90a ao BGB (Código Civil alemão).

4 Inclusão em 2003 do artigo 641, inciso II ao Código Civil suíço.

5 Inclusão em 2011 do art. 3.2a do Livro 3 do Código Civil holandês.

6 Inclusão em 2015 do art. 515-14 do Código Civil francês.

7 Inclusão em 2017 do art. 201ªB do Código Civil português.

8 TJRJ. Apelação Cível 0019757-79.2013.8.19.0208. Rel. Des. Marcelo Lima Buhatem. J. 27/01/2015.

9 STJ. RESp 1.713.167/SP. Rel. Min. Luis Felipe Salomão. J. 19/06/2018.

10 Simão, José Fernando. Direito dos animais: natureza jurídica. A visão do direito civil. Revista Jurídica Luso-brasileira, v.4, ano 3, 2017, p. 908-909.

11 Chaves, Marianna. Disputa de guarda de animais de companhia em sede de divórcio e dissolução de união estável: reconhecimento da família multiespécie?.

12 Dia dos animais: pacto antenupcial pode estabelecer direito de visitas aos animais.

Thais Precoma Guimarães é advogada