Steve Keen: “Podemos evitar outra crise financeira?”

17/04/2017 07:00 Atualizado: 17/04/2017 12:14

A teoria econômica é como um bolo com várias camadas ou níveis: explicações numa camada fazem sentido, mas quando você se move para outra camada, elas não se aplicam mais. O novo livro do economista Steve Keen, “Podemos evitar outra crise financeira?” (tradução livre do título), é um exemplo ilustrativo.

A boa notícia é que Keen descreve com precisão o sistema econômico atual; a má notícia é que a resposta para a pergunta no título é “não”. (E, apesar de eu acreditar que sua avaliação geral é exata, ele perde de vista ou ignora alguns elementos-chave não tão evidentes da teoria econômica.)

Keen define sua pergunta dentro da camada de um sistema bancário corrupto, o sistema que temos agora. Ele explica como os bancos criam dinheiro sob a forma de dívida e como isso leva à instabilidade financeira. No livro, ele cita os próprios economistas do Banco da Inglaterra:

“Na economia moderna, a maior parte do dinheiro toma a forma de depósitos bancários. Mas como esses depósitos bancários são criados é muitas vezes mal interpretado: a principal forma é por meio dos bancos comerciais fazendo empréstimos. Sempre que um banco faz um empréstimo, ele simultaneamente cria um depósito correspondente na conta bancária do mutuário, criando assim dinheiro novo.”

Keen baseia-se no trabalho de Hyman Minsky e Joseph Schumpeter para explicar por que a dívida privada criada a partir do nada pelos bancos privados leva à instabilidade econômica.

“O investimento desejado em excesso dos lucros retidos é financiado pela dívida. Isso leva a um processo cíclico no capitalismo que também provoca uma tendência secular de acumular demasiada dívida privada ao longo de vários ciclos”, escreve Keen.

O ciclo de expansão e contração é o seguinte: durante os estágios iniciais de um ciclo de dívida, a dívida impulsiona o investimento, o que aumenta a demanda. A economia crescente pode facilmente servir a dívida e a maioria dos empréstimos são reembolsados. Quanto mais prolongada esta fase de crescimento benigno, mais bancos são incentivados a ignorar a cautela e emprestar mais; os valores dos ativos que servem de colateral para os empréstimos também estão aumentando em valor neste momento, o que incentiva a imprudência.

Em algum momento, os níveis de dívida se tornam tão altos que os atores econômicos mais fracos não podem manter seus pagamentos de juros, desencadeando uma onda de inadimplência que leva a contração da oferta de dinheiro e resulta em perdas nos bancos. Os bancos então reduzem seus empréstimos, reduzindo ainda mais a oferta de dinheiro (onde o dinheiro é dívida), retardando a atividade econômica. Neste ponto, mesmo os atores mais fortes estão em apuros e são forçados a liquidar ativos. O círculo vicioso simplesmente continua.

“O declínio transforma expectativas eufóricas em depressão e inverte a taxa de juros, o preço de ativos e a dinâmica de distribuição de renda que a fase de expansão pôs em movimento. A demanda agregada cai, levando à queda do emprego, dos salários e dos custos dos materiais”, escreve Keen.

Pessoas que testemunharam a expansão e a contração dos créditos subprime concordariam na maior parte com esta avaliação. Então, por que os principais economistas não estavam cientes disso?

Economia dominante ignora dívida

Em seu primeiro e importante livro “Debunking Economics“, Keen prometeu que “não haveria mais sorrisos largos” para economistas convencionais que ignoram completamente a dívida privada em seus modelos, previsões e recomendações políticas.

Keen prossegue com o mesmo tom em seu livro atual e crítica a profissão onde é devido, explicando por que o corrente econômica principal continua insistindo no erro.

“A teoria de Minsky é convincente, mas foi ignorada pela corrente econômica principal quando ele a desenvolveu pela primeira vez, porque ele se recusou a fazer as suposições que eles então insistiram que estavam obrigados a desenvolver uma ‘boa’ teoria econômica”, escreve Keen.

Keen, que é extremamente bem lido em todos os campos da economia, usa material de base de seus opositores ideológicos para desmontar seus próprios argumentos. Por exemplo, ele cita Benjamin Bernanke, o ex-presidente do Federal Reserve (o banco central dos EUA):

“Hyman Minsky (1977) e Charles Kindleberger (1978) têm defendido em vários lugares a instabilidade inerente ao sistema financeiro, mas, ao fazê-lo, tiveram de se afastar do pressuposto de um comportamento econômico racional. [Uma nota de rodapé acrescenta:] ‘Não nego a possível importância da irracionalidade na vida econômica; no entanto, parece que a melhor estratégia de pesquisa é avançar o postulado da racionalidade tanto quanto for possível.’” (Bernanke, 2000, p. 43)”

Demasiados pressupostos ilógicos e irracionais são as razões pelas quais o modelo econômico dominante sofre de uma crise de confiança.

Os leitores tecnicamente inclinados podem aprofundar a explicação de Keen sobre por que a prevalente extrapolação da macroeconomia a partir da microeconomia é errada, por que a macroeconomia deve ser modelada segundo um sistema dinâmico, por que um sistema bancário corrupto cria desigualdade e por que os ciclos privados de dívida sempre apresentam sua melhor aparência antes da tempestade se abater.

O leitor leigo pode ignorar tudo isso e ir direto para a explicação de Keen sobre a explosão da dívida privada de 1990 no Japão e da crise dos subprime em 2008.

O livro é essencialmente uma extensa monografia acadêmica, repleta de referências a artigos arcanos, notas de rodapé e gráficos detalhados. E se apresenta como uma explicação confiável e bastante direta para um leitor educado sobre o que impulsiona as expansões econômicas num sistema bancário corrupto (ou seja, um baseado na dívida privada) e porque isso é responsável por todos os tipos de consequências perniciosas, como contrações e grande desigualdade da distribuição de renda.

Podemos evitar outra crise financeira?

Keen responde à pergunta de 1 trilhão de dólares com um retumbante “não”. Isso se deve ao fato de muitos países terem sofrido uma onda de explosão da dívida privada durante a última expansão e agora estão no equivalente do purgatório econômico. Keen identifica a China como a maior ameaça.

“Eles enfrentam o dilema do viciado, uma escolha entre ‘parar bruscamente’ agora ou continuar a emitir (crédito) e experimentar uma crise maior mais adiante. A China é, sem dúvida, o maior país enfrentando o dilema do viciado em dívidas atualmente. Mas não falta companhia”, escreve Keen.

Outros países com um alto nível de dívida privada e uma dependência da dívida para estimular a demanda econômica, os quais Keen chama de “zumbis da dívida”, são a Austrália, Bélgica, Canadá, Coreia do Sul, Noruega e Suécia.

No total, a influência da China e dessas economias menores é simplesmente muito grande para o mundo evitar uma crise financeira.

Soluções

De acordo com Keen, a solução dentro desta camada da teoria econômica é mais regulamentação governamental do sistema bancário e déficits do governo para combater a queda da demanda privada, o que é essencialmente a resposta política à crise financeira de 2008.

Opções mais agressivas são a flexibilização quantitativa sob a forma de “dinheiro de helicóptero”, em que o banco central monetiza a dívida pública e o governo em seguida escreve um cheque às famílias para pagarem dívidas ou gastá-lo com bem quiserem no caso de não haver dívida pendente. Também poderia haver um jubileu de dívida mais abrangente, em que a dívida é simplesmente perdoada.

“Por si só, um jubileu da dívida moderna não seria suficiente: tudo o que faria seria reiniciar o relógio para permitir que outra bolha de dívida especulativa decolasse. Atualmente, a criação de dinheiro privado é ‘um subproduto das atividades de um cassino’ (Keynes, 1936, p. 159), ao invés do que ela deve ser: a consequência do financiamento do investimento corporativo e da atividade empresarial”, escreve Keen.

O objetivo final seria o governo combater as bonanças excessivas da dívida privada.

Sendo um pensador agnóstico, Keen também entretém os conceitos de dinheiro emitido pelo governo e criptomoeda, embora ele não ache que eles possam eventualmente substituir o sistema bancário, em parte por causa da escala, em parte por causa da resistência política.

“Enquanto esse modelo dominar os políticos e o público em geral, as reformas sensatas enfrentarão uma batalha árdua, mesmo sem a resistência do setor financeiro às propostas, o que naturalmente será enorme.”

E nesta camada do bolo econômico, em meio às limitações de nossa economia política atual, Keen está de novo absolutamente correto.

Camada oculta

Em outra camada da teoria econômica, no entanto, Keen e Minsky estão incorretos ao argumentar que o próprio capitalismo provoca expansões e contrações e que mais intervenção do governo é a solução final para todas as camadas econômicas, especialmente a financeira.

Num mercado livre para o dinheiro, os bancos que criam dívida demasiada com colaterais de baixa qualidade teriam suas obrigações (ou passivos) desvalorizadas no mercado, e os depositantes levariam seus negócios para outro lugar. Esse processo competitivo drenaria as reservas dos bancos predatórios e eventualmente os levaria à falência, sem que houvesse resgate, a menos que melhorassem seus processos de empréstimo.

É somente quando os governos impõem leis de curso forçado ou aceitam obrigações bancárias privadas sem avaliação apropriada no pagamento de impostos é que estes passivos excessivamente reemitidos e com colaterais de péssimo respaldado conseguem preservar o seu valor, levando a ciclos de expansão e contração. É também o governo que socorre os bancos predatórios sucessivamente para salvar um sistema corrupto, resultando no risco moral descrito por Keen.

A maioria dos economistas modernos, incluindo Keen neste livro, ignora essa interferência fundamental do Estado no mercado e concluem que mais governo é necessário para resolver os problemas que a própria intervenção governamental criou em primeiro lugar.

Para o crédito de Keen, ele pesquisou casos históricos de sistemas bancários de mercado livre e conclui que a história não confirma a teoria austríaca do refluxo. Assim, ele está de um lado de um debate acadêmico acaloradamente contestado, enquanto do outro lado estão os estudiosos da escola austríaca de economia.

Hoje, no entanto, temos apenas esta versão bastarda do capitalismo, em que os governos e os bancos conspiram para criar a instabilidade que o Sr. Keen discute neste livro. É essa camada do sistema que o Sr. Keen descreve para o leitor educado: de forma acurada, convincente e com um toque de humor mordaz.