Num dia frígido de dezembro em Sabetta, um porto localizado na Península de Yamal, no Norte da Rússia às margens do Oceano Ártico, líderes políticos e empresariais russos se reuniram para marcar a abertura de uma nova instalação industrial que poderia ajudar a Rússia a reduzir a influência dos EUA na Europa.
Não, não é uma nova base submarina ou silo de mísseis; é uma instalação de gás natural liquefeito (GNL) chamada Projeto Yamal.
A cerimônia de abertura em 8 de dezembro contou com a presença do presidente russo Vladimir Putin e uma série de altos executivos da energia russa, convocados para o desolado extremo norte por Putin, onde o presidente exaltou o Yamal como um projeto que “assegura o futuro da Rússia, o futuro da sua economia”.
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E isso não é uma hipérbole. O Projeto Yamal dá à Rússia maior peso no mercado de gás natural liquefeito (GNL) de rápido crescimento, que é dominado pelos Estados Unidos, o Catar e a Austrália. Mais importante ainda, a Rússia planeja diminuir as incursões dos EUA no mercado europeu de gás, que historicamente dependia da oferta russa.
Após a cerimônia de 8 de dezembro e um evento de imprensa, Putin pessoalmente deu ordens para embarcarem a primeira entrega de GNL da usina Yamal no Christophe de Margerie, um navio quebra-gelo transportador de GNL. O navio rumou para a ilha britânica de Grain e entregou seu primeiro carregamento de GNL ao Reino Unido, que enfrentava uma falta temporária de gás.
O Projeto Yamal é uma usina de exportação de GNL de US$ 27 bilhões, localizada entre o pergelissolo (ou solo permanentemente congelado) e as renas na costa norte da Rússia. Ele é um dos primeiros projetos de GNL da Rússia, um tipo de marco histórico, e é operado pela gigante do gás natural Novatek OAO, uma empresa russa que foi colocada sob sanções dos EUA em 2014. O Projeto Yamal GNL é 50% controlado pela Novatek e tem investimentos minoritários da gigante francesa de energia Total, da chinesa CNPC e do Fundo Rota da Seda da China.
Crescente demanda global
Normalmente, o gás natural é entregue através de redes de gasodutos, que são caros de construir e manter, e o tamanho do mercado é limitado pelo alcance físico das tubulações. O GNL é o gás natural resfriado e comprimido em forma líquida (a temperaturas entre -165°C e -155°C), que pode então ser transportado eficientemente em navios e em transportes terrestres.
A demanda global de GNL aumentou para 258 milhões de toneladas métricas por ano em 2016, um aumento de 5% em relação a 2015. Os níveis relativamente baixos de emissões de carbono do GNL tornam-no uma boa escolha para países sem gasodutos e aqueles que procuram reduzir o uso de carvão. O GNL é considerado o combustível fóssil mais limpo, gerando cerca de 30% menos CO2 do que o petróleo e 45% menos do que o carvão.
O Japão é o maior importador mundial de GNL, seguido pela China e Coreia do Sul, de acordo com dados da Thomson Reuters Eikon. A China ultrapassou a Coreia do Sul como o segundo maior importador do mundo em 2017, com um aumento de 50% em relação ao ano anterior nas entregas. Os três países juntos representam 60% da demanda global de GNL.
GNL dos EUA ameaça gás russo
A Rússia é tradicionalmente o maior fornecedor de gás para a Europa continental, em virtude de uma rede de gasodutos da gigante estatal de gás Gazprom, que remonta à Guerra Fria.
O presidente estadunidense Donald Trump tem promovido as exportações americanas de GNL desde as reuniões do G20 no meio do ano de 2017, como forma de aliviar a Europa da dependência do gás russo e da influência econômica e política que acompanha a condição. Depois de assinar um contrato de GNL de cinco anos com a Polônia, o primeiro transporte de GNL dos Estados Unidos chegou em junho de 2017.
Um importador de longa data de gás, o recente boom na extração de gás nos EUA e o desenvolvimento de novos terminais de exportação de GNL (o primeiro foi aberto em 2016) deu aos Estados Unidos a capacidade de distribuir o GNL globalmente. Além da Europa, os Estados Unidos têm cortejado clientes na Índia, no Japão e na Coreia do Sul.
Tudo isso tem sido uma grande ameaça para o negócio de gás natural da Rússia na Europa continental. De fato, devido à sua geografia e rede de gasodutos existentes, a Europa é o único mercado que pode escolher entre GNL e gasodutos.
A construção de um gasoduto da Gazprom da Sibéria para o Nordeste da China não deverá entrar em operação até 2019, de modo que a nova instalação de exportação de GNL do Projeto Yamal permite que a Rússia converta o seu gás de gasoduto em GNL e compita nos mercados de GNL na Europa e na Ásia.
Além disso, o Kremlin deu à Gazprom “carta branca” para vender gás a qualquer preço para boicotar as ambições americanas de GNL na Europa.
O Kommersant, um jornal de negócios com sede em Moscou, informou em 28 de dezembro que uma ordem executiva da gestão Putin autorizou à Gazprom a vender gás de gasoduto para empresas envolvidas na produção de GNL a “preço não regulamentado” a partir de 1º de janeiro de 2018.
Em última análise, a Rússia está visando uma participação de 15-20% do mercado global de GNL, disse o presidente da Novatek, Leonid Mikhelson, aos jornalistas em 12 de dezembro, em Moscou, de acordo com a Reuters.
Preocupações com excesso de oferta
O aumento das exportações da Austrália, dos Estados Unidos e da Rússia ajudou a reduzir os preços globais do GNL nos últimos anos. Os preços do GNL na Ásia caíram de mais de US$ 14 por milhão de unidades térmicas britânicas (mmbtu) para menos de US$ 10 mmbtu em dezembro de 2017.
“Quando totalmente operacional em 2019, [o Projeto Yamal] deveria dobrar a capacidade de liquefação do país para cerca de 26 milhões de toneladas por ano, ou 11% da produção mundial de GNL em 2016”, informou a empresa de classificação financeira Fitch Ratings numa nota de pesquisa em 21 de dezembro.
Os maiores obstáculos enfrentados pelos projetos russos de GNL nos próximos anos serão o financiamento, devido às sanções dos EUA. Mas os bancos chineses e outros asiáticos provavelmente estarão prontos para emprestar, e as participações diretas, que não estão sujeitas a sanções, podem ser uma fonte alternativa de financiamento.
“É provável que o mercado de GNL seja superabastecido por vários anos devido à capacidade adicional de GNL produzida nos EUA, Austrália e outros lugares, o que pode resultar em preços deprimidos até a demanda chegar junto”, disse a Fitch Ratings.