A verdade por trás da discussão sobre flexibilização quantitativa na China

05/05/2015 05:42 Atualizado: 05/05/2015 05:42

Em meados de 2015, ficou claro que nem tudo vai bem na China. Agora, os sinais disso estão aumentando, pois, conforme notícias, em breve, a China fará a sua própria forma de flexibilização quantitativa (QE), o que pode ser visto como um sinal de desespero.

Para ilustrar o quão terrível é a situação: Os Estados Unidos recorreram à flexibilização quantitativa depois que o país foi atingido pela pior crise, a Grande Depressão. A Europa fez a sua forma de flexibilização quantitativa (QE) quando a moeda comum, o euro, estava prestes a entrar em colapso. O Japão tentou intermitentemente – e falhou – fazer uma QE  para conseguir sair de uma estagnação de 20 anos.

A China terá que fazer flexibilização quantitativa (QE) num momento em que seu crescimento oficial ainda está acima de 7%? Para muitos especialistas, essa é uma confirmação de que, debaixo da superfície, a China enfrenta enormes problemas.

“Esse é o absurdo do milagre econômico chinês. O simples fato de estarmos falando que o Banco do Povo da China (BPC) está pensando em fazer QE mostra como a caldeira economia se tornou quente demais. Toda a dinâmica da China mudou”, disse Fraser Howie, autor livro do Capitalismo Vermelho.

Até agora, o programa de QE não foi oficialmente confirmado, mas circulam várias notícias na mídia citando comentários de funcionários do Bando do Povo Chinês (BPC) e contêm surpreendente quantidade de detalhes. A flexibilização terá como alvo as dívidas dos governos locais e será implementada por meio de empréstimos do BPC para bancos comerciais. Segundo as notícias, a flexibilização seria meramente uma extensão dos esforços atuais da China para revigorar a economia e o vacilante setor imobiliário.

“É de causar reflexões o tanto que o modelo chinês mudou. Eles negam”, disse Howie, e agora o dia do ajuste de contas pode ter chegado.

Por que eles estão realmente fazendo isso?

Oficialmente, o PIB chinês desacelerou para 7% no primeiro trimestre, o mais baixo desde a crise financeira. No entanto, a maioria dos observadores independentes diz que a taxa real de crescimento está entre 5% e 6%. Enquanto outros países gritariam de alegria com taxas como essa, a China não pode fazer isso.

Visto de um nível macro, o crescimento do PIB precisa ser mais elevado do que os juros pagos sobre a dívida agregada, caso contrário, a dívida se tornaria insustentável e isso acabaria em inadimplência. Por muitos anos, esse foi o caso da China, mas não mais.

De acordo com o livro China Beige Book, que analisou centenas de empresas e bancos na China, a melhor estimativa da taxa média de juros na China está atualmente em 7,33%, ou seja, pouco superior ao crescimento previsto para o PIB.

Quando essa inversão acontece em nível macro, as partes mais fracas são atingidas em primeiro lugar. No caso da China, são os governos locais, os quais estão altamente endividados. Eles acumularam 2,8 trilhões de dólares em dívidas (30% do PIB) como decorrência de investimentos em infraestrutura e imóveis residenciais. Muitos desses investimentos não estão gerando fluxo de caixa suficiente, retorno suficiente.

Por exemplo, o Survey and Research Center for China Household Finance estima que, pelo menos, um de cada cinco imóveis em áreas urbanas da China está vazio. “Os empréstimos por trás das dívidas dos governos locais foram empréstimos feitos para construir imóveis que ainda estão vazios, que não estão gerando fluxo de caixa. Foram empréstimos canalizados para projetos que são improdutivos”, disse Richard Vague, autor de The Next Economic Disaster e sócio-gerente da Gabriel Partners.

“Os governos locais contam com a bolha imobiliária para obter financiamento. A receita vem de investimento em imóveis. Eles têm um imposto sobre transações imobiliárias e não um imposto sobre a propriedade. Eles dependem das transações imobiliárias para conseguir dinheiro”, disse Jim Nolt, pesquisador sênior do Instituto de Política Mundial e ex-reitor do Instituto de Tecnologia de New York, Campus de Nanjing.

Agora que o mercado imobiliário azedou, os governos locais não podem contar com novas transações imobiliárias para gerar receita suficiente para pagar suas dívidas.

A maior parte dessas dívidas constam no balanço financeiros dos bancos comerciais chineses. Ao assumir parte desse risco, o Banco do Povo da China [BPC] pode atingir dois objetivos ao mesmo tempo: fazer que os bancos comerciais voltem a emprestar  para as pequenas e médias empresas e também exercer pressão sobre os governos locais para que controlem suas dívidas. Se tudo correr bem, isso pode estimular o crescimento econômico e aumentar a receita dos governos locais novamente. Se tudo correr bem!

De acordo com relatórios preliminares, os bancos comerciais poderão obter essa liquidez do BPC, comprometendo-se a dar em troca como garantia as dívidas dos governos locais. Isso é diferente de comprar dívidas dos governos locais diretamente, como o FED fez durante seu programa de QE, no entanto, tem o efeito de diminuir a pressão sobre os balanços dos bancos e de retirar riscos do sistema.

Por que não vai funcionar

Isso é semelhante ao que o Banco Central Europeu (BCE) fez com seus infames Long Term Refinancing Operations (LTRO) a partir do final de 2011, mas não se sabe como no longo prazo a operação chinesa vai acabar. No entanto, o resultado na China será semelhante ao na Europa: não fará nada para a economia real, apenas sustentará o mercado de ações.

“Isso dará mais liquidez aos bancos , só isso. Eles poderão emprestar um pouco mais, o que na minha opinião agravará o problema”, disse Vague e explicou:

“Se você é um banqueiro, ter dinheiro em excesso possivelmente não fará nenhum bem a você. Eu não ficarei surpreso se todo esse dinheiro for para fins não produtivos. Francamente, o dinheiro acabará indo para coisas não produtivas de forma a poder colocar esse dinheiro em circulação. O que resta é a especulação”, diz ele.

Vague está se referindo precisamente à investimentos improdutivos que, acima de tudo, têm levados os governos locais a se colocarem nessa situação difícil.

As bolsas europeias subiram depois que o Banco Central Europeu implementou um programa de flexibilização similar. É o Euro Stoxx 50 desde o final de 2011.
As bolsas europeias subiram depois que o Banco Central Europeu implementou um programa de flexibilização similar. É o Euro Stoxx 50 desde o final de 2011.

O governo chinês deseja que os novos empréstimos fluam para empresas privadas, mas há várias razões pelas quais isso também não vai acontecer.

De acordo com o China Beige Book, as empresas dignas de crédito não precisam de empréstimos porque elas não veem investimentos que valham a pena serem feitos. Por outro lado, as empresas em situação financeira difícil precisam pegar dinheiro emprestado principalmente para financiar suas dívidas – e estão pagando caro por isso.

Isso é confirmado por um  recente relatório do FMI que informa que as empresas privadas chinesas diminuíram o coeficiente médio de endividamento  (ou alavancagem) de 125% em 2006 para 55% em 2013. As grandes empresas estatais mantiveram uma alta alavancagem em torno de 110%. O estudo observa que os piores credores no ramo da construção e imobiliário aumentaram seus índices de alavancagem financeira ao longo do tempo.

Assim, o setor privado, que é mais eficiente, não está atrás de crédito, mesmo se amplamente disponibilizado. E os bancos não querem emprestar para empresas com problemas de endividamento.

“Eles estão tentando forçar os bancos a fazerem certos tipos de negócios; não é só uma questão de economia desacelerada. Há um ambiente em que os bancos não querem emprestar para pequenas empresas, até mesmo grandes empresas. Eles não vão emprestar só porque possuem mais dinheiro. Só emprestarão se esse dinheiro gerar lucro ou puder voltar”, disse Howie.

Isso é semelhante ao que aconteceu na Europa, onde os bancos não emprestaram para pequenas e médias empresas, apesar de o Banco Central Europeu (BCE) ter injetado cerca de 1 trilhão de euros no sistema financeiro.

No entanto, o PIB da área do Euro está estagnado na melhor das hipóteses. China pode ter um destino parecido.
No entanto, o PIB da área do Euro está estagnado na melhor das hipóteses. China pode ter um destino parecido (Trading Economics)

Assim como na Europa, o dinheiro pode acabar no mercado de ações. O mercado de ações europeu subiu 60% desde o início das medidas de QE do Banco Central Europeu no final de 2011. Enquanto isso, a economia realmente entrou em recessão, em grande parte de 2012 e 2013.

“O mecanismo de transmissão de crédito na China está quebrado. Se eles estimularem com dinheiro, esse dinheiro irá para o mercado de ações. Nós não estamos vendo nenhuma recuperação do crescimento “, diz Leland Miller do livro China Beige Book.

Na verdade, por causa de outras medidas de estímulo, o mercado acionário chinês já subiu mais de 100% desde o início de  2014. E há mais por vir, pois os líderes políticos em Pequim, recentemente, admitiram secretamente que o governo está empurrando as ações para cima para resolver problemas fiscais.

As ações chinesas se recuperaram mais de 100% no ano passado, e isso antes de a flexibilização quantitativa (QE) ter sequer começado (Google Finance)

“Dinheiro atrai dinheiro e nada atrai mais o dinheiro do que um mercado de ações subindo. Você recebe apenas 7% [de juros] ao ano, no entanto, no mercado de ações, você receberá isso em uma semana. Vai terminar em caos, mas no curto prazo funcionará”, disse Howie.

Leland Miller concorda: “Eles estão desenhando uma queda no mercado de ações; nós só não sabemos quando isso vai acontecer”.