Venezuela, a seita caprilista

22/01/2014 17:01 Atualizado: 22/01/2014 17:01

Quand il me prend dans ses bras
Il me parle tout bas,
e vois la vie en rose

(Quando ele me toma em seus braços
e me fala baixinho
vejo a vida em rosa
)

Edith Piaf

Não só molhar o dedinho numa situação embaraçosa

Antes de causar alguma ferocidade prematura, peço desculpas pelo título. Confesso que o usei como fogo artificial para cativar sua atenção, amigo caprilista. Esclareço, amigo caprilista, que não te sinto nem és meu inimigo. Estamos embarcados no mesmo naufrágio histórico e remamos com a mesma força e direção para a mesma margem (de liberdade) para evitar o colapso total que significa o madurismo.

Desejamos o mesmo, lutamos pelo mesmo e nos enfrentamos pelo mesmo: a perversão chavista. Não o esquives: a perversão chavista, seu cinismo, sua autocracia gorducha e nova rica, sua corrupção apoteótica, sua traição e sua destruição apocalíptica.

Não esqueçamos: tu e eu não somos o problema; tu e eu somos, unidos, a solução. Porém é necessário lutar, não só molhar o dedinho numa situação embaraçosa, é necessário lutar.

O exílio

É difícil explicar a tristeza do exilado político. Em sua labiríntica solidão, o exilado entende o amplíssimo, mas lancinante, significado da palavra Venezuela. Ele entende o angustiante peso – às vezes abismal – da distância em cada passo. Entende a palavra asfixia em cada alento. Entende a dor no coração que representa a ausência da pátria em cada batimento cardíaco.

Não sabe o que diz, por sua brutalidade e desatino, quem acusa um exilado político de não estar “lutando na Venezuela”. Não sabe, não tem ideia.

Primeiro, porque o exilado político chegou a sê-lo basicamente porque ganhou essa condição a pulso por sua luta, fez algo que irritou e feriu o regime e se converteu num sujeito irrespirável para os déspotas. Segundo, porque esse que acusa o exilado de “não fazer nada” se esquece, ademais, do destino do preso político e de sua família. Esquece-se dos esquecidos.

O exilado e o preso político são vítimas de um mesmo desprezo: seu sonho de liberdade e sua luta. Não são abnegados, são lutadores. Sua rebeldia os honra. Merecem nosso respeito. Estender a mão ao verdugo da Venezuela sem nenhuma condição, sem sequer repreendê-lo por tudo o que fez ao país, desamparou os presos e os exilados políticos, desamparou a luta por um país distinto. Foi e é uma humilhação.

O no país não está acontecendo o que sabemos que está acontecendo?

La vie en rose

Não posso observar Henrique Capriles com a mesma contemplação mística, quase religiosa, como o fazem muitos de seus seguidores. Parece-me prejudicial para eles e para o país. Embora reconheçamos, já o dissemos, muitos dos valores como pessoa, como líder inspirador e como político que Henrique tem, também temos o critério para entender que é um ser humano com muitas qualidades, mas um ser humano no fim das contas, que comete erros, uns não tão graves e outros muito graves, como sua rendição a Miraflores.

É importante destacar que ele não se rendeu a título pessoal – seguramente, o conhecemos, continuará lutando a seu modo – o que ele rendeu foi a vitória do povo da Venezuela no passado 14 de abril. Rendeu a esperança de mudança.

Até quando? Bem, como ele mesmo escreveu num desconcertante artigo de opinião: “o tempo dirá”.

A realidade venezuelana destroça todo prognóstico de otimismo. Surpreende-me, realmente me surpreende, que com tudo o que está acontecendo, com tudo o que estamos vivendo, alguns amigos caprilistas vejam como um triunfo que seu líder tenha entregado, como entregou, a vitória eleitoral do ano passado. É claro, quando seu líder os abraça e lhes fala baixinho eles veem “a vida em rosa” e nada mais.

O suicídio coletivo

Li as coisas mais horripilantemente absurdas escritas por devotos caprilistas sobre sua encurralada e calada visita a Miraflores. Não resta dúvida, são fiéis, pessoas de fé, perderam o juízo político. Consola-nos, ao menos, que sejam isso: fiéis inermes, praticantes piedosos, mártires que adoram seu líder e não criminosos, cínicos, verdugos como os chavistas. Mas em termos políticos – não religiosos – devemos apontar, sem menosprezar a fidelidade de ninguém, que nem o martírio nem o crime darão vida à nação.

O criminoso “dialoga” com o mártir, bem sabemos, entende-se com ele, inclusive lhe dá a mão, mas isso serve para algo? A história da crueldade humana não se equivoca, o verdugo só se “reconcilia” com sua vítima quando vê sua cabeça rodar. Nunca antes. E a vítima dos verdugos cubanos e seus traidores maduristas não é a de Capriles, é a da Venezuela: a tua, a minha, a de nossos filhos, a de todos.

Há anos Mario Vargas Llosa escreveu um artigo visionário chamado “O suicídio de uma nação”, onde antecipava o que sucederia na Venezuela pela eleição do outrora traidor, agora sátrapa embalsamado, Hugo Chávez.

Não posso deixar de pensar nesse artigo e relacioná-lo ademais com comentados casos de suicídios coletivos, nos quais uma massa fervorosa de crentes é guiada para a morte por seu sacrificado líder (Jim Jones e seu “Templo do povo” na Guiana, Joseph Di Mambro e seu “Templo Solar”, Marshall Applewhite e seu “Heaven’s Gate”). Todos acreditavam cegamente em seu líder, ele os salvaria, ofereceram sua vida por ele. Me entendem?

A fé da convicção

Para que o país recupere a vida, a liberdade e a paz, é necessário deixar de ser mártires e erradicar os verdugos. Nada mudará enquanto Maduro permanecer no poder. Tudo piorará. Subordinar-se a ele significa aceitar o suicídio coletivo.

Acredito, como venezuelano, que a única liderança que merece devoção e fidelidade é nossa amada Venezuela. Acredito, além disso, que cada dia somos mais os fiéis de nossa pátria e menos os fiéis de pessoas.

Na política, à diferença da religião, deve-se ser crítico, não devoto. Não somos uma seita que se suicida, somos uma sociedade que aspira a “viver” em liberdade. Não será misticamente “o tempo quem diga” o que acontecerá na Venezuela nem a perfeição de Deus a que se imponha. Será o tempo imperfeito, humano, demasiado humano, dos venezuelanos quem definirá nosso destino: a cultura chavista da morte ou o amor venezuelano pela vida?

Sobra liderança e organização, sobre força e sobra a outra fé que dá a convicção. Não ponhamos o pescoço, mostremos os dentes de venezuelanidade. Um dirigente ou muita gente que se dirige a si mesma?

Insisto: tu decides…

Tradução de Graça Salgueiro