Não existe outra alternativa para o governo chavista da Venezuela, senão recuar. Voltar sobre os próprios passos nas atitudes radicais que pretenderam criminalizar a atuação dos principais líderes oposicionistas, e revogar as medidas intervencionistas e confiscatórias que afugentaram o capital estrangeiro e, ainda hoje, continuam a esgarçar os laços que unem o país ao resto do mundo.
Os venezuelanos não devem se iludir: do jeito como os seus assuntos internos evoluem, a nação “refundada” sob o signo de um misterioso e autoritário “Socialismo do Século XXI” tornar-se-á, em breve, um estado pária do ecúmeno. Sem pão e sem paz.
A situação melhoraria caso o presidente Nicolás Maduro Moros, um ex-sindicalista de linha cubana, saísse de cena? Depende. Se for para promover ao comando do país o antigo subtenente do Exército Diosdado Cabello, atual presidente da Assembleia Nacional da Venezuela, o quadro pode até piorar.
De formação intelectual precária (muito inferior à do coronel Chávez), Cabello, de 51 anos, detesta a imprensa livre e adora a obediência sem questionamentos. Seu maior sonho é poder reproduzir em sua agremiação política – o PSUV (Partido Socialista Unido de Venezuela) – o modelo funcional do Partido Comunista chinês – formato que inspecionou e estudou pessoalmente em mais de uma visita à República Popular da China.
O chavismo e o comunismo chinês exibem algumas afinidades. Ambos são ditatoriais, e ambos se afiguram vocacionados ao isolacionismo. Com a diferença de que, na China, desde o final dos anos de 1980, iniciativas reformistas de diferentes portes vêm tentando oxigenar o Partido Comunista, acostumando-o a trabalhar sobre as queixas de seus filiados e certas reivindicações populares – especialmente nas questões dos direitos individuais (os das mulheres inclusive) e da remuneração sobre a produção agrícola.
Na Venezuela, o aperto no ferrolho chavista acabou, internamente, “espanando algumas peças”, ou, em outras palavras, produzindo dissidentes que antes ocupavam cargos importantes no PSUV e na máquina administrativa do regime. Externamente, o chavismo sem cabeça – e, principalmente, sem divisas ou petróleo para injetar na economia dos seus aliados – vem provando ser bem pouco atraente. Dele vêm se afastando, até mesmo, governos que, no passado recente, cerravam fileiras com Hugo Chávez, como os do Equador e da Bolívia.
No momento em que Caracas se prepara para deflagrar uma onda de denúncias nas Nações Unidas e na Organização dos Estados Americanos contra a “ingerência” dos Estados Unidos em seus assuntos internos, e as ameaças de sanções da Administração Obama, Quito se prepara para receber ninguém menos que o Secretário de Estado americano John Kerry.
La Paz também está em outra. Nos últimos meses, apesar de vociferar contra as investidas americanas e de outras nações desenvolvidas que supostamente trazem instabilidade à integração sul-americana, a equipe de Evo Morales mantém uma curiosa (mas estável) ligação com a administração de Mariano Rajoy, o chefe de governo espanhol representante do Partido Popular, que se define como centro reformista – na Espanha dos nossos dias, um eufemismo para centro-direita.
Os governos do equatoriano Rafael Correa e do boliviano Evo Morales trabalham dentro de um sistema de consultas mútuas, e isso tem servido para que ambos tratem de forma atenciosa, e com discreto pragmatismo, as recomendações tanto do Banco Mundial quanto do Fundo Monetário Internacional.
O Equador está representado no comitê de chanceleres que procura mediar o conflito político interno da Venezuela, mas nem Correa, nem Morales, figuram mais como simples repetidores das palavras de ordem emanadas por Caracas. Ambos sabem que as parcerias Bolivarianas anunciadas no passado pela PDVSA – a estatal petrolífera venezuelana – para projetos petroquímicos já não serão retomadas.
Particularmente no Equador, dissolveu-se no ar o sonho de uma refinaria a ser erguida com os petrodólares chavistas, capacitada a refinar 300 mil barris diários de óleo e amparada na tecnologia iraniana de beneficiamento de petróleo. Aliás, desde que Mahmmud Ahmadinejad deixou o governo de Teerã, a National Iranian Oil Company já fechou, por medida de economia, os seus dois escritórios sul-americanos, um em Caracas e outro no Equador.
“A Aliança Castro-Chavista latino-americana sofre de imobilidade e falta de liderança”, escreveu, recentemente, o ex-diplomata venezuelano Edgar C. Otálvora, um dos mais importantes cronistas políticos do país. Segundo o comentarista, o próprio presidente Rafael Correa reconheceu essa dificuldade, durante sua recente visita oficial ao Chile na segunda semana de maio.
Faz dois anos que o chefe de Estado equatoriano tenta obter apoio internacional para cobrar uma multa de US$ 19 bilhões à empresa petrolífera Chevron, acusada de provocar “danos ambientais na Amazônia”. A 28 de fevereiro do ano passado, o então ministro das Relações Exteriores do Equador, Ricardo Patiño, expôs o problema na assembléia do X Conselho Político da ALBA (Aliança Bolivariana para as Américas). O voluntarioso Nicolás Maduro já exercia presidência da Venezuela, e ofereceu-se, diante das câmeras de TV, para convocar um grande evento continental em apoio ao processo contra a empresa de petróleo estadunidense. O evento, claro, nunca aconteceu, e pior: vários governos supostamente parceiros políticos do Bolivarianismo (o argentino à frente) ampliaram seus negócios com a Chevron.
Além do esfarelamento de sua influência política, o Palácio Miraflores (sede do Executivo venezuelano) também assiste ao encolhimento do seu prestígio econômico, refletido na distância que vai aumentando entre o seu Produto Interno Bruto (PIB) e o dos vizinhos. Em 2013, o PIB colombiano foi apenas 4,15% (US$ 16,8 bilhões) menor que o da Argentina – uma diferença que tende a se inverter em 2015, com a Colômbia assumindo o posto de terceiro maior PIB latino-americano, depois de Brasil e México. Aos venezuelanos caberá apenas a quinta posição – muito pouco para um país que possui uma das maiores reservas conhecidas de petróleo do planeta.
A sensação de que a Venezuela do chavismo é um parceiro a ser deixado de lado vem se propagando rapidamente no hemisfério norte. Prova disso é a desistência de algumas das principais companhias aéreas do Ocidente de continuar operando em território venezuelano. A Air Canada tomou essa decisão a 15 de março último, e a Alitalia imitou-a dois meses depois. A 16 de maio foi a vez de a alemã Lufthansa anunciar que não emitirá novos bilhetes para Caracas, ou a partir de Caracas – de acordo com especialistas em transporte aéreo, sinal evidente de que a companhia está prestes a encerrar seus vôos para a Venezuela, possivelmente a partir do mês de outubro.
O motivo dessas retiradas é a decisão do governo venezuelano de não permitir que as companhias aéreas estrangeiras remetam às suas sedes a receita que vêm obtendo no transporte de passageiros e de carga para a Venezuela – até agora, cerca de US$ 4,5 bilhões. A equipe econômica de Nicolás Maduro argumenta que as cifras contabilizadas pelas empresas não coincidem com os seus próprios cálculos sobre esse faturamento, e que, além disso, o país enfrenta uma grave escassez de divisas, o que o impede de liberar as transferências de dinheiro. O argumento colide, entretanto, com a notícia recente, divulgada por um instituto de pesquisa londrino, de que nos últimos 12 anos o chavismo já incinerou 21 bilhões dos seus preciosos petrodólares na aquisição de equipamentos para as Forças Armadas.
No cenário específico do transporte aéreo, a situação pode se agravar ainda mais. O mercado da aviação civil aguarda para as próximas semanas que também a Iberia e o consórcio Air France/KLM desistam de voar para a Venezuela. A pequena companhia aérea Conviasa (que foi a menina dos olhos do coronel Chávez) só opera duas frequências semanais para Madri. Aos canadenses e europeus que precisarem viajar à Venezuela será exigido, portanto, comprar bilhetes aéreos para Havana, Cidade do Panamá e Bogotá, as três capitais do entorno de Caracas com múltiplos vôos diários para a capital de Maduro.
Nesse panorama de restrições financeiras e abandono, é difícil entender que a pobre Conviasa ainda seja obrigada a manter ligações aéreas semanais para as cidades de Damasco e de Teerã – uma herança dos tempos em que o coronel Chávez pensava poder incluir o seu país no eixo da resistência política ao imperialismo americano.
O governo Maduro quer perpetuar os sonhos de glória de seu inesquecível líder. Mês passado, os ministérios da Defesa da Venezuela e da Argentina acertaram, sem alarde, criar uma cátedra Kirchner/Chávez, que funcionará na Escuela de Defensa Nacional de Buenos Aires (centro de estudos equivalente à Escola Superior de Guerra, no Brasil), para que os militares dos dois países estudem os pensamentos de Néstor Kirchner (o falecido marido da presidenta Cristina Fernández de Kirchner) e de Hugo Chávez.
Os ventos da tempestade exigem, contudo, que os venezuelanos voltem a se concentrar na realidade. E a realidade não admite perda de tempo com fantasias, é uma só: não existe alternativa ao governo chavista senão a de recuar sobre os seus erros. Manter a atual política de confrontação – interna e externa – servirá apenas para prolongar o afogamento do chavismo no pântano do desespero nacional – arrastando com ele a já sacrificada estrutura da PDVSA, e um conflito de classes de intensidade sem precedentes na moderna história venezuelana.
O lento e doloroso naufrágio do chavismo ameaça levar ao colapso até as poucas vertentes da vida nacional ainda geradoras de divisas, como o turismo por exemplo. Até porque, se nada mudar, dentro de mais alguns meses Caracas será apenas um destino esquecido.
Roberto Lopes é jornalista especializado em assuntos militares
Esse conteúdo foi originalmente publicado no portal DefesaNet