A Alemanha voltou a ser o espantalho favorito. Poucas coisas são tão populares quanto criticar alemães. O governo americano, a Comissão Europeia e o FMI recentemente se entregaram a este esporte e passaram a condenar a Alemanha pelo fato de sua economia estar apresentando grandes superávits comerciais e um grande saldo na conta-corrente de seu balanço de pagamentos. Paul Krugman contribuiu com a seguinte pérola:
“O problema é que a Alemanha continua mantendo seus custos trabalhistas em níveis altamente competitivos e vem apresentando enormes superávits comerciais desde o estouro da bolha — e, em uma economia mundial deprimida, isso torna a Alemanha uma parte significativa do problema.”
Apenas no surreal estado atual da discussão econômica ser ‘altamente competitivo’ pode ser considerado algo deletério. Esta crítica à Alemanha, aliás, não é nada nova; ele remonta à década de 1950. Porém, não mais estamos vivendo na década de 1950. A Alemanha não possui moeda própria e há muito pouco de genuinamente “alemão” em uma exportação alemã.
Um BMW produzido na Alemanha e vendido na Espanha contém peças oriundas de todos os cantos do mundo. A maior parte da mão-de-obra utilizada na construção do automóvel de fato será alemã, mas as inovações tecnológicas reduziram os custos desta mão-de-obra para aproximadamente 10% do preço final de um carro na Europa. O retorno do capital irá para os acionistas, que podem estar em qualquer lugar do mundo. A BMW pode distribuir dividendos para um acionista espanhol, o qual poderá utilizar estes euros para comprar bens espanhóis. Dizer que um BMW é um produto da Alemanha é algo bastante forçado.
A Alemanha também faz parte de um arranjo de moeda única. Reclamar do superávit comercial de uma região dentro de uma área de moeda única é como reclamar que, dentro de um mesmo país, há um superávit comercial de um estado em relação a outro ou de uma cidade em relação a outra.
Aliás, podemos nos aprofundar ainda mais e reduzir esta discussão ao nível individual para esclarecer melhor o argumento e, com isso, ressaltar sua tolice. Nós temos um superávit em conta-corrente em relação ao nosso empregador e um déficit em conta-corrente em relação ao nosso supermercado. Nosso empregador compra mais de nós do que nós compramos dele, e o oposto é válido para nossa relação com o supermercado. No entanto, não estamos reclamando do supermercado, exigindo que seu gerente compre mais de nossos bens e serviços.
Adicionalmente, o superávit comercial da Alemanha com outros países europeus ou com membros da zona do euro foi reduzido à metade entre 2007 e 2012. Ao mesmo tempo, o superávit da Alemanha com o resto do mundo mais do que triplicou. Essa é exatamente a consequência esperada de uma abertura comercial, de um aumento na divisão do trabalho e da especialização possibilitada pelo enfoque em áreas em que se possui vantagens comparativas. Criticar essa tendência é criticar as próprias razões declaradas para a criação da União Europeia.
Por motivos difíceis de serem compreendidos, a Comissão Europeia determinou que terá de intervir caso um país-membro apresente um superávit da conta-corrente do balanço de pagamentos superior a 6% do PIB durante um período de três anos. No ano passado, o superávit da Alemanha foi de 7%, e provavelmente será bastante similar este ano.
Um dos princípios básicos por trás da criação da União Europeia (UE) é justamente a livre comercialização de bens e serviços, e a livre movimentação de mão-de-obra e capital. Sendo assim, se a livre comercialização de bens, serviços, mão-de-obra e capital levar a um superávit de 10%, 20% ou mais, qual o problema? Por que esta regra sequer existe? Por que a Comissão Europeia quer impor uma restrição que limita a movimentação de bens, serviços e capitais? A UE não foi criada para estimular a eliminação de limitações injustificadas? A UE não deveria se surpreender caso alguns países queiram deixar o arranjo, uma vez que ela própria está impondo regras ilógicas.
Por trás de toda esta crítica à Alemanha está, como sempre, o fantasma do mercantilismo. Dentro da mentalidade mercantilista, uma transação comercial voluntária sempre gera um ganhador e um perdedor, sendo que a realidade é que, se a transação foi voluntária, então ambos os lados se beneficiam. Segundo os mercantilistas, a Alemanha supostamente está produzindo mais do que está consumindo. Obviamente, isso é uma falácia — bastante comum — que alguns adoram explorar visando a benefícios políticos. Cada euro gasto em um carro alemão ou em qualquer outro produto alemão será recebido como renda por alguém que, por sua vez, irá gastar esta renda. Há um elo direto entre produção e gastos. A Lei de Say nos diz que a (correta) oferta cria sua própria demanda. O consumo nunca necessita ser estimulado: tudo o que é produzido é consumido, seja para na produção de outros bens (investimento), seja na satisfação pessoal (consumo).
Como era de se esperar, a “solução” proposta por estes mercantilistas a este problema imaginário é obrigar a Alemanha a aumentar seus gastos governamentais. Isso, segundo eles, estimularia o crescimento dos outros países da União Europeia. Pouco importa que a Alemanha já tenha uma relação dívida/PIB de 82%, bem acima dos 60% que alguns anos atrás era vista como excessiva. Trata-se de uma solução-padrão keynesiana que constantemente vai contra a lógica econômica. Cada euro que o governo gasta é um euro que foi retirado dos cidadãos e que poderia ter sido gasto por ele. Tudo o que governo pode fazer com seus gastos é alterar quem irá receber esse dinheiro. Tudo o que ele pode fazer é alterar quem irá receber um pedaço do bolo. Mas ele não pode aumentar o tamanho do bolo.
Quando a Alemanha tinha sua própria moeda, a crítica era idêntica. E, mesmo naquele arranjo, a crítica continuava sendo infundada. Naquela época, um superávit na conta-corrente do balanço de pagamentos alemão significava um equivalente déficit na conta de capitais. Essa saída de capitais ia financiar os gastos governamentais da Itália ou da França, ou então investimentos em fábricas e equipamentos na Espanha, em Portugal, na China ou em qualquer outro lugar do mundo. Novamente, palavras como superávit ou déficit são remanescentes de nosso passado mercantilista e não têm absolutamente nada a ver com coisas positivas ou negativas.
Se a Alemanha possui custos trabalhistas mais competitivos e é capaz de fabricar produtos melhores, qual o problema? Por que isso deveria ser tolhido em nome do “bem comum”? Desde quando uma produção eficiente é ruim para os consumidores? A União Europeia não foi criada para tornar a Europa mais competitiva ao permitir que os recursos pudessem circular livremente e ir para onde eles fossem mais eficientemente utilizados? As críticas à Alemanha feitas pela Comissão Europeia e pelo FMI são ainda mais descabidas quando se leva em consideração as razões dadas para a existência destas instituições.
O ministro das finanças da Alemanha, Wolfgang Schäuble, membro do partido de centro-direita União Democrática Cristã, o mesmo de Angela Merkel, estava totalmente correto quando disse: “O superávit comercial da Alemanha não é nenhum motivo de preocupação nem para a Alemanha, nem para a zona do euro e nem para a economia mundial.” Na realidade, a Alemanha deveria ser louvada, e não repreendida. Sua eficiência produtiva é um dos poucos fatores que ainda seguem estimulando a economia mundial.
Frank Hollenbeck é PhD em economia e leciona na Universidade Internacional de Genebra
Esta matéria foi originalmente publicada pelo Instituto Ludwig von Mises Brasil