Marcel Duchamp nasceu na França 1887. Foi um um dos precursores da arte conceitual. Em 1917, com o pseudônimo de R. Mutt, ele enviou para o Salão da Associação de Artistas Independentes um urinol de louça, do tipo utilizado em sanitários masculinos, com o título sugestivo de “Fonte”.
Duchamp criou assim o conceito de readymade (objeto pronto), que é o transporte de um elemento da vida cotidiana, a princípio não reconhecido como artístico, para o campo das artes. A princípio, como uma brincadeira entre amigos, entre os quais Francis Picabia e Henri-Pierre Roché, Duchamp passou a incorporar material de uso comum nas suas esculturas. Em vez de trabalhá-los artisticamente, ele simplesmente os considerava prontos e os exibia como obras de arte.
O urinol de Duchamp não foi seu primeiro readymade; em 1913, Duchamp expôs um assento de cozinha com uma roda de bicicleta fixada a ele.
Segue cronica de Affonso Romano de Sant’Anna publicada no Estado de Minas/Correio Braziliense, 7/10/2007, com o título ‘Um urinol faz 90 anos’. Sant’Anna é um artista e intelectual, com uma produção diversificada e consistente, que pensa o Brasil e a cultura de seu tempo, e se destaca como teórico, como poeta, como cronista, como professor, como administrador cultural e como jornalista. Com mais de 40 livros publicados, é professor em diversas universidades brasileiras – UFMG, PUC/RJ, URFJ, UFF, no exterior lecionou nas universidades da California (UCLA), Koln (Alemanha), Aix-en-Provence (França).
Segue a cronica de Sant’Anna escrita em 2007, que continua atual:
“Você sabia que o urinol que Marcel Duchamp mandou para o Salão dos Artistas Independentes, em Nova York (1917), está completando 90 anos e já foi eleito como a obra mais importante do que tudo o que se produziu em artes plásticas no século XX?
Você sabia que, na verdade, o urinol de parede, que Duchamp intitulou de “Fonte” e assinou como sendo de R. Mutt, fabricado pela J. L. Motta Iron Works Company, nem chegou a ser exibido, porque foi censurado e a peça original, relegada, desapareceu.
Você sabia que essa obra considerada fundadora da contemporaneidade, portanto, não existiu, foi uma simples ideia e que permaneceu “in absentia” até os anos 1940, quando Duchamp começou a fazer réplicas dela para vários museus, e que, em 1990, a Tate Galery pagou um milhão de libras por uma dessas cópias?
Você sabia que a polêmica fomentada na ocasião pelos jornais de Nova York foi organizada pelo próprio Duchamp, sua amante Beatrice Wood e pelo seu marchand Arensberger?
Você sabia que embora Duchamp dissesse que o urinol era apenas um urinol, um objeto deslocado de suas funções, alguns críticos, como George Dickie, começaram a ver nessa porcelana as mesmas virtudes plásticas das obras de Brancusi?
Você sabia que outros críticos -já que o urinol original havia desaparecido – começaram a ver na fotografia do mesmo feita por Stieglitz uma referência à deusa Vênus, que surgiu das águas?
Você sabia que outros críticos, depois de refletirem profundamente sobre a fotografia do urinol, concluíram que ali estava projetada a efígie de Nossa Senhora?
Você sabia que a mulher do músico de vanguarda Eduardo Varese sustentava que o urinol era a reprodução da imagem de Buda?
Você sabia que Duchamp, embora dissesse que o artista não deve se repetir, mandou fazer várias réplicas desse urinol para vender a museus, e confeccionou uma caixa portátil com miniaturas de suas obras para vender também para museus e colecionadores?
Você sabia que o homem que dizia que a pintura estava morta era marchand e vendia quadros e esculturas de seus colegas?
Você sabia que em 1993, numa exposição em Nîmes, o artista francês Pierre Pinnocelli se aproximou de um dos urinóis de Duchamp e decidiu se “apropriar” da obra; primeiro urinou nela e depois disse que o fato de ter urinado na obra de Duchamp dava-lhe o direito de tê-la?
Você sabia que depois de ter urinado no urinol, Pinnocelli, pegou um martelo e quebrou a obra de Duchamp com o argumento de que agora a obra era dele, ele havia se “apropriado” conceitualmente dela.
Você sabia que Pinnocelli foi processado pelo estado francês que lhe exigiu uma hipoteca de 300.000 francos e que a questão deixou de ser estética para ser policial e até o Ministro da Justiça e da Cultura na França tiveram que opinar?
Você sabia que o mesmo Pinnocelli em 2005, obcecado pelo urinol, insistindo que o urinol é de quem “intervem” nele, atacou a marteladas a cópia dessa obra no Beaubourg, em Paris, o que provocou novos problemas com a polícia?
Você sabia que esse urinol comprado originalmente em loja de ferragens, com a assinatura de Duchamp vale hoje US$3.6 milhões?
Você sabia que Sherry Levine mandou fazer uma réplica de bronze dourado do urinol entronizando de vez a obra como uma espécie de Mona Lisa de nossa época?
Você sabia que Duchamp dizia que o nome “Mutt” que botou no urinol, como sendo o do pretenso autor (que era ele mesmo) era uma homenagem aos personagens em quadradinho – Mutt e Jeff?
Você sabia que mesmo assim Jean Clai – considerado o maior critico francês da atualidade -, prefere entender que “Mutt” remete para uma gíria em inglês significando “imbecil” e que o pseudônimo “R. Mutt” lembra “armut, que em alemão significa “indigência”, “penúria”?
Você sabia que Calvin Tomkins – o biógrafo de Duchamp – acha que aquele urinol é a imagem que Duchamp tinha da mulher como receptáculo do líquido masculino, em consonância com os futuristas italianos que diziam que a mulher era um “urinol de carne”?