UE/EUA: a silenciosa revolução do Tratado Transatlântico

13/11/2014 08:29 Atualizado: 13/11/2014 08:29

Negociado em segredo, com as multinacionais acolchoando todo o caminho para que tudo corra suavemente, o TTIP – sigla inglesa que designa a futura Parceria Transatlântica para o Comércio e para o Investimento (Transatlantic Trade and Investment Partnership) – ganhou uma aura pesada, e abriu uma oposição grave entre quem considera que se trata de um acordo audacioso para relançar a economia da União Europeia e dos EUA, ao passo que outros acreditam que é o golpe de misericórdia no agonizante Estado social europeu. Os principais receios prendem-se a um conjunto de mecanismos de proteção do investimento, que vão, na prática, permitir que as multinacionais processem os países quando estes impuserem barreiras sempre que as suas orientações políticas provoquem uma diminuição dos seus lucros.

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Em pleno verão do ano passado, a administração Obama e as autoridades europeias deram início aos trabalhos. O projeto passa por harmonizar as legislações dos dois lados do Atlântico e, no fundo, aplanar o terreno para o comércio livre, de forma que as grandes empresas europeias e americanas possam investir e lucrar em pé de igualdade num mercado bem maior. Mas a bela vem com um enorme senão, uma vez que os países infratores estarão sujeitos a sanções comerciais e reparações de vários milhões de euros em benefício dos queixosos, sendo para o efeito criados tribunais arbitrais privados para resolverem os litígios entre as empresas e os países. Sob um regime como este, as empresas teriam condições para contrariar as políticas de saúde, de proteção do ambiente ou de regulação do sistema financeiro implantadas num país qualquer, exigindo-lhe compensações por perdas e danos em tribunais extrajudiciários. Compostos por três advogados de negócios, estes tribunais responderiam às leis do Banco Mundial e da Organização das Nações Unidas (ONU), e estariam habilitados a condenar o contribuinte a pesadas reparações a partir do momento em que a sua legislação restringisse os “futuros lucros esperados” de uma empresa.

Como mencionou recentemente ao “Público” a eurodeputada Marisa Matias, do BE, “relatora permanente” da comissão de Economia para o TTIP, “com base nesta garantia de proteção do investimento, pode passar a ser impossível, por exemplo, aumentar o salário mínimo, porque uma empresa pode alegar que fez o investimento em Portugal porque os salários são baixos”.

Segundo explicou uma fonte ligada ao processo de negociação, o que o TTIP procura é “aproveitar o último momento de posição dominante entre os dois grandes blocos econômicos ocidentais, uma posição que em breve passará à história”. No fundo, adianta, o que está em causa é uma “competição internacional” em que as economias dos países onde vigora o Estado de direito criam uma aliança num esforço para não se deixarem bater pelos desequilíbrios e vantagens competitivas das economias emergentes como a China, a Índia, Bangladesh e tantos outros.

Dizer que as organizações da sociedade civil europeia estão preocupadas com as negociações em curso não traduz a dimensão do problema. Stop TTIP, uma plataforma que reúne 300 dessas organizações, foi criada para combater o tratado, tendo anunciado ontem que interpôs uma ação contra a Comissão Europeia no Tribunal Europeu de Justiça, acusando-a de “sufocar as vozes dos cidadãos depois de rejeitar uma proposta para que fosse realizada uma iniciativa de cidadania europeia contra os acordos comerciais”. Em comunicado, a plataforma explica que a iniciativa, que seria lançada por sindicatos, grupos de defesa dos direitos humanos e de justiça social e associações de consumidores, queria obrigar a Comissão a rever a sua posição sobre os acordos e a realizar uma audição no Parlamento Europeu. Face ao bloqueio da Comissão, grupos de ativistas e sindicatos lançaram uma petição que em cerca de um mês reuniu mais de 850 mil assinaturas exigindo a Bruxelas o fim das negociações do TTIP.

Questionado sobre se o TTIP pode de fato esconder uma revolução política, com os valores liberais sobrepondo-se aos princípios de soberania dos países e da democracia europeia, o diretor do Instituto Português das Relações Internacionais, Carlos Gaspar, diz que “há uma tensão permanente entre as dinâmicas de globalização e de liberalização econômica e a defesa dos valores da soberania política dos países”, mas garante que durante as negociações do tratado “todos os países têm condições mínimas para defender os seus interesses próprios, isoladamente ou em conjunto com outros países que partilhem interesses convergentes”.

Já relativamente a estas decorrerem a portas fechadas, tendo sido dadas instruções no sentido de manter os jornalistas e os cidadãos afastados das discussões, Carlos Gaspar lembra que “todas as negociações diplomáticas entre os países são supostamente confidenciais e essa regra é uma condição mínima para poder alcançar os compromissos indispensáveis, mas por vezes difíceis e complexos, entre as partes”. O especialista adianta que um “grande número de intervenientes nas conversações torna difícil assegurar essa confidencialidade e, além disso, prejudica as condições de sucesso das negociações”. “O mais importante”, sublinha, “é garantir que existe um controle democrático efetivo do processo negocial, indispensável tanto para os governos como para os parlamentos nacionais dos países-membros da UE, além da Comissão Europeia e do Parlamento Europeu, poderem ter a maior capacidade de intervenção possível na defesa dos seus interesses.”

Em Portugal gerou-se algum alvoroço quando, em outubro, em carta assinada pelo secretário de Estado dos Assuntos Europeus, Bruno Maçães, ao lado dos presidentes de outros 14 países-membros – incluindo Inglaterra, Irlanda e Espanha -, Portugal exigia à Comissão, que entretanto deixaria de ter ao leme Durão Barroso e passaria a contar com o luxemburguês Jean-Claude Juncker, que prosseguisse “um mandato claro do Conselho” para que fossem incluídos nas negociações os célebres “mecanismos de proteção do investimento”. A carta foi interpretada como uma defesa, por parte destes países, da inclusão dos tribunais arbitrais privados no texto do acordo. O presidente da Comissão, que nas suas intervenções tem tentado uma abordagem cautelosa do tema, desta vez reagiu com alguma dureza: “Não aceitarei que a jurisdição dos tribunais nos países-membros da UE seja limitada por regimes especiais para resolver disputas de investidores.”

Entretanto, a vitória dos republicanos nas eleições intercalares nos EUA e a consequente conquista de todo o Congresso veio dificultar a conclusão do TTIP. Classificado como prioridade de Obama no discurso que fez imediatamente a seguir à sua reeleição, o acordo foi defendido como um medida que irá criar “crescimento e emprego dos dois lados do Atlântico”, mas os republicanos têm-se mostrado menos otimistas, receando que possa pôr em risco as medidas de proteção social e os direitos dos trabalhadores.

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Editado pelo Epoch Times