Um tributo ao povo da Polônia

04/03/2014 14:22 Atualizado: 04/03/2014 14:22

A primeira parte está aqui.

Após a imposição da lei marcial em dezembro de 1981 e a maciça utilização do exército e das tropas paramilitares ZOMO para esmagar o Solidariedade, o número de afiliados ao movimento caiu de 9,5 milhões para apenas alguns poucos milhares. Os agitos no país diminuíram sobremaneira, mas continuaram. O Solidariedade continuou na ativa, só que agora clandestinamente.

Após ter conseguido impor ao menos uma aparência de estabilidade, o regime polonês começou a relaxar a lei marcial. Ao longo do tempo, a lei foi sendo revogada em várias etapas. Em dezembro de 1982, a lei marcial foi suspensa e um pequeno número de prisioneiros políticos, dentre eles Walesa, foi libertado. Embora a lei marcial só tenha sido formalmente abolida em julho de 1983, e uma anistia parcial tenha sido promulgada, várias centenas de prisioneiros políticos continuaram encarcerados. Tornou-se mundialmente famoso o caso de Jerzy Popieluszko, um popular padre defensor do Solidariedade, que foi sequestrado e assassinado pelo serviço de segurança do governo — o Sluzba Bezpieczenstwa — em outubro de 1984.

A partir daí, os fenômenos de resistência na Polônia começaram a ser influenciados pela postura reformista de Mikhail Gorbachev na União Soviética. Em setembro de 1986, uma anistia geral foi declarada e o governo libertou quase todos os prisioneiros políticos. No entanto, as autoridades continuaram perseguindo os dissidentes e todos os ativistas do Solidariedade.

Já estava mais do que óbvio que os esforços do regime para organizar a sociedade de cima para baixo haviam fracassado completamente. Com a crise econômica agravada e todas as instituições sem funcionar, a clandestina resistência anticomunista foi ganhando um número crescente de adeptos.

Os inspiradores

Testemunhei ao vivo estes acontecimentos. Em novembro de 1986, passei 10 dias vivendo entre os clandestinos do Solidariedade e do Liberdade e Paz, um grupo formado por jovens.

Durante esta minha visita, aprendi que, cinco anos após o início dos violentos ataques desfechados pelo governo contra os movimentos de resistência, os poloneses haviam aprendido fabulosos truques para ludibriar e se esquivar do regime de Jaruzelski, tudo de uma maneira que chega a desafiar a imaginação. A escassez total dos mais básicos produtos alimentares, a inflação de preços em dois dígitos, e uma poderosa polícia secreta não os impediram de criar formidáveis mercados negros e vigorosas instituições privadas, desde rádios e editoras de livros inclusive teatros e escolas. Tudo clandestinamente.

Wiktor Kulerski, um dos lideres do Solidariedade, já havia esboçado, alguns anos antes, um esquema sobre como seria a resistência polonesa. Ele escreveu: “Este movimento criará uma situação em que as autoridades controlarão as lojas estatais, mas não o mercado; o emprego de trabalhadores, mas não seu meio de vida; a imprensa oficial, mas não a circulação de informações; as editoras, mas não as publicações; os correios e os telefones, mas não as comunicações; e o sistema escolar, mas não a educação.”

Trinta e oito milhões de poloneses estavam menosprezando e ridicularizando o Estado. Eles já haviam aprendido por experiência própria e dolorosa que, como bem havia dito o escritor e compositor dissidente Stefan Kisielewski (que havia sido preso e espancado por causa disso), “Socialismo é estupidez.” Eles já estavam fartos daquilo tudo.

O Lloyd’s de Varsóvia

Num jantar organizado secretamente, em minha homenagem, por uma organização clandestina de editores em Cracóvia, fiquei mesmerizado com a amplitude daquilo que meus anfitriões chamavam de “empreendimentos editoriais independentes”. Eles haviam traduzido, imprimido e editado várias obras “subversivas” de Alexander Solzhenitsyn, George Orwell e até mesmo de Murray Rothbard e Ayn Rand.

“Onde vocês conseguem os papéis para imprimir tudo isso?”, perguntei. Um jovem polonês chamado Pawel respondeu: “De dois lugares: contrabandeamos do Ocidente e roubamos dos comunistas.” Pawel explicou que havia vários empregados das casas editoriais do governo que eram simpáticos ao movimento de resistência. Eles frequentemente forneciam papeis para os movimentos clandestinos. E quando a barra estava realmente limpa — ou seja, sem nenhum agente estatal nas redondezas —, eles chegavam até mesmo a imprimir o material ilegal nas próprias impressoras do governo.

Todo este material era distribuído e circulava amplamente nos subterrâneos de Varsóvia. Quando o governo soube, decidiu contra-atacar criando uma operação para confiscar os carros dos distribuidores deste material proibido. Para se proteger, os editores clandestinos criaram sua própria companhia de seguros (a qual eles chamaram de “Lloyd’s de Varsóvia”) para cobrir os custos do confisco de seus carros, papeis e materiais.

Perguntei àqueles editores como eu poderia ajudar. Curiosamente, eles já haviam planejado um pedido específico para mim. Eles me perguntaram se eu conseguiria arrecadar US$ 5 mil e enviar esse dinheiro para seus aliados exilados em Paris, os quais utilizariam esse dinheiro para financiar a tradução para o polonês e a impressão de várias cópias do clássico Liberdade para Escolher, de Milton Friedman. Dentre as minhas mais estimadas possessões está uma edição deste livro com uma dedicatória do ativista Wojciech Modelski com estas palavras: “Obrigado, Larry! Sem sua ajuda, não seria possível publicarmos este livro.”

Mas a minha história favorita desta minha visita à Polônia envolve um casal muito corajoso e intrépido, Zbigniew e Sofia Romaszewski. Eles haviam sido soltos da prisão fazia muito pouco tempo. O crime? Comandar uma popular estação de rádio clandestina. Não aguentei e tive de perguntar: “Quando vocês estavam transmitindo, como sabiam se as pessoas estavam ouvindo?”

Sofia respondeu: “Tínhamos de estar constantemente mudando de lugar para que a polícia não nos capturasse. Por isso, só conseguíamos transmitir de oito a dez minutos de cada vez. Certa noite, fiz o seguinte pedido: se há alguém nos ouvindo, pisquem suas luzes para mostrar que acreditam na liberdade. E então fomos para a janela. Durante horas, toda Varsóvia ficou piscando.”

Poucos dias depois, fui preso, revistado nu e deportado.

O fim da tirania

Em 1989, alguns dias após a queda do Muro de Berlim, voltei a Varsóvia e Cracóvia para rever meus amigos e celebrar com eles. A Revolução de Veludo estava em andamento na vizinha Tchecoslováquia. A Hungria havia aberto suas fronteiras para o Ocidente algumas semanas antes. O megalomaníaco Nicolai Ceausescu, da Romênia, seria fuzilado no Natal. Mas foi a Polônia quem abriu o caminho.

Em fevereiro de 1988, já desesperado com a situação de suas finanças, o governo implementou um aumento generalizado de 110% nos preços de todos os bens da economia. Os protestos estudantis retornaram. O colapso econômico gerou uma série de greves ao redor do país em abril, maio e agosto. O governo se sentiu obrigado a negociar. Com a indispensável mediação da Igreja Católica, contatos preliminares foram feitos entre o governo e membros do Solidariedade. Em setembro, o governo recorre a Lech Walesa para tentar negociar o fim das greves. No dia 18 de dezembro de 1988, o Solidariedade sai da ilegalidade.

No início de 1989, o general Wojciech Jaruzelski chegou a um acordo com Lech Walesa: os grupos políticos suprimidos seriam legalizados e eleições gerais seriam marcadas para o dia 4 de junho. O general não tinha alternativas. A Polônia, declarou ele, havia se tornado “ingovernável”.

E foi exatamente no dia 4 de junho de 1989 que a Polônia eletrizou o mundo ao fazer as primeiras eleições livres na Europa comunista. Ativistas anticomunistas (e, em vários casos, também antissocialistas) surpreenderam seus conterrâneos: eles conquistaram 99 das 100 cadeiras no Senado e absolutamente todas as 161 cadeiras do Parlamento que o regime permitiu serem disputadas na eleição. Esses resultados asseguraram que a guinada para a liberdade em todo o império soviético fosse definitiva e se intensificasse até derrubar todos os ditadores e partidos comunistas, desde Berlim Oriental até Ulan Bator.

A história da Polônia desde a imposição da lei marcial e do esmagamento do Solidariedade em dezembro de 1981 até as gloriosas eleições de 1989 não é a saga de um povo pessimista, derrotista ou submisso. Ao contrário: trata-se de uma notável evidência do desejo humano de ser livre. Embora os três poderosos líderes do Reino Unido, dos EUA e do Vaticano (Thatcher, Reagan e João Paulo II) tenham ajudado imensamente no processo da desintegração comunista, estes mesmos líderes correta e repetidamente aplaudiram e elogiaram o espírito desafiador dos poloneses. “O povo da Polônia”, declarou Reagan, “está nos dando um imperecível exemplo de coragem e devoção aos valores da liberdade contra uma violenta e implacável oposição… A tocha da liberdade é quente. Ela aquece aqueles que a mantêm lá no alto e queima aqueles que tentam apagá-la.”

Um dos gigantes intelectuais da liberdade polonesa, o filósofo e historiador Leszek Kolakowski, que morreu em julho de 2009 aos 81 anos, rotulou o marxismo de “a maior fantasia do nosso século”. Segundo ele, a brutalidade totalitária é uma inevitável consequência de uma concentração de poder. Numa entrevista concedida ao New York Times em 2004, ele disse: “Supostamente, essa ideologia deveria moldar o pensamento das pessoas; no entanto, a partir de certo momento, ela se tornou tão fraca e ridícula que ninguém mais acreditava nela. Nem os governados, nem os governantes.”

A todos aqueles milhões de poloneses que bravamente lutaram pela liberdade e que atiraram o comunismo na lata de lixo da história há quase 25 anos, muito obrigado por sua coragem, sua perseverança, sua visão e seu exemplo.

Lawrence W. Reed é presidente da Foundation for Economic Education

Esta matéria foi originalmente publicada pelo Instituto Ludwig von Mises Brasil