O problema dos rolezinhos poderia ter sido solucionado logo no primeiro dia, com a mistura de três ingredientes simples: direitos de propriedade, estado de direito e um pouco de bom senso.
Os shoppings são estabelecimentos privados de acesso público. Não são locais públicos. Teoricamente, não há o que impeça estabelecimentos comerciais privados de regularem de alguma forma a entrada de clientes. Casas noturnas revistam seus clientes, estabelecem um mínimo a ser consumido em suas dependências, e chegam até a verificar se o que vestem está de acordo com regras pré-estabelecidas. Essas normas nos soam comuns, por já termos nos acostumado a elas. Não há nada que impeça os shoppings de adotarem medidas semelhantes e “selecionarem” os seus clientes.
Mas não haver nada de errado com uma prática, não faz com que ela seja algo desejável. Afinal, você gostaria de fazer compras num shopping que controlasse a sua entrada, verificasse a sua identidade e as roupas que veste, perguntasse quem são as suas companhias e estabelecesse um valor de consumação mínima para a sua permanência? Os shoppings são estabelecimentos privados e, como casas noturnas, poderiam adotar medidas de controle às suas dependências, mas o prejuízo que elas poderiam trazer inviabiliza qualquer ideia nesse sentido. Os shoppings acabarão por investir em segurança pontual para evitar tumultos e saques. E só.
Um pouco de estado de direito também não faria mal à reação aos rolezinhos. Se os lojistas e frequentadores do shopping devem ter suas propriedades e integridade física protegidas, as garantias do estado de direito devem ser estendidas a todos, inclusive aos participantes da “atividade”. Elas não podem ser relegadas como fatores secundários, principalmente durante a atividade policial. Num estado democrático de direito, os papéis de mocinho (polícia) e bandido (os bandidos de verdade) são claramente demarcados, mesmo quando a violência se apresenta como uma praga nacional.
Os policiais não devem aguardar a agressão passivamente, mas devem agir conforme a lei. E é por um bom motivo que a lei limita os poderes da polícia e regulamenta o uso da violência. A polícia não pode bater, não pode ameaçar dar tapa na cara, não pode coagir menor. Nenhum cidadão jamais estará livre de agressões policiais enquanto não compreendermos que a polícia não está autorizada a agredir suspeitos, e que a coação não faz parte dos poderes que o Estado delega. Na semana passada, foram os funkeiros do bonezão. Amanhã, ninguém sabe.
Sou otimista em relação ao debate público no Brasil, mas quando a realidade se recusa a se encaixar nas ideias dos analistas, essa confiança sofre. Colunistas falam dos shoppings como locais frequentados pelos filhos da elite, como se nunca tivessem conhecido um pobre ou ido a qualquer shopping center. Outros, falam dos adolescentes da periferia, dos pobres e dos funkeiros, como se eles fossem os enviados de uma ideologia maligna para corroer os alicerces da nossa civilização, logo no centro (e símbolo) da nossa alta cultura – o shopping center.
Quando eu tinha a idade dos garotos e garotas que protagonizaram os rolezinhos nas últimas semanas, o maior programa da minha semana também era ir caminhar num shopping. Colocávamos nossas melhores roupas e olhávamos as vitrines, olhávamos as pessoas e encontrávamos os nossos amigos. Quando tínhamos algum dinheiro, comprávamos; quando não tínhamos, andávamos. Não éramos todos pretos, não éramos todos brancos, não éramos todos ricos e, apesar de sermos todos pobres, nós nem éramos pobres do mesmo jeito. Eu fui um adolescente pobre que gostava de funk e encontrava meus amigos num shopping center e talvez por isso as generalizações derivadas dos rolezinhos me irritem tanto.
Nos fins de semana, os shopping centers brasileiros são frequentados pelos trabalhadores e pelos seus filhos. Quem tem grana prefere suas casas de praia, suas fazendas ou os shoppings de Paris. Os pobres e a classe média (que ganha como pobre, mas gasta como rica) vão ver vitrines, alugar um filme, comer na praça de alimentação. A retórica da luta de classes dos colunistas não resiste a uma visita a um shopping de grande cidade. E para esse diagnóstico, nós nem precisávamos do Datafolha: basta olhar. Basta ser ou conhecer um brasileiro comum.
Um pouco de calma na emissão de vereditos definitivos também não faria mal: a era das notícias rápidas transformou a reação dos observadores. A emoção fala antes da análise e da avaliação racional. Depois, nos esforçamos para fazer a realidade se encaixar naquela primeira reação. É o elefante da emoção comandando o seu pequeno passageiro, a razão, na famosa analogia de Jonathan Haidt.
A sociedade é um organismo complexo, indivíduos são agentes do próprio destino e membros concomitantes de grupos distintos, mas tudo parece ser muito mais simples online. A briga entre os times vermelho e azul apaga todas as nuances. Quando uma polêmica chega à internet – e dela transborda para a mídia tradicional – o time azul grita de um lado, o time vermelho grita do outro. Tudo se transforma em nós contra eles. A cegueira partidária, de petralhas e reaças, transforma pessoas inteligentes em tias que compartilham no Facebook imagens com frases fora de contexto.
Num debate político, a generalização e o exagero estão longe de ser instrumentos novos. No entanto, o padrão que se forma nessas discussões – e que vem apagando a separação entre status updates e a mídia formal -, soa esquisito e assusta até mesmo observador otimista a respeito das próximas décadas no Brasil. A maioria da população vive ao largo desses debates e se quisermos engajá-la em algumas dessas discussões, devemos nos esforçar para que elas pareçam um pouco mais com o mundo onde as pessoas vivem e um pouco menos com os modelos maniqueístas da discussão política atual.
Esse conteúdo foi originalmente publicado no site do Instituto Ordem Livre