Três grandes casos na China decididos politicamente, não pelo estado de direito

09/10/2013 11:46 Atualizado: 09/10/2013 11:46
Zhang Jing (centro), a esposa de Xia Junfeng, a caminho da Casa Funerária Dongling em 26 de setembro, na cidade de Shenyang, China. Xia Junfeng, um vendedor ambulante de 36 anos, foi executado no dia anterior por matar dois policiais da gestão urbana e ferir outro em 2009 (ChinaFotoPress/Getty Images)
Zhang Jing (centro), a esposa de Xia Junfeng, a caminho da Casa Funerária Dongling em 26 de setembro, na cidade de Shenyang, China. Xia Junfeng, um vendedor ambulante de 36 anos, foi executado no dia anterior por matar dois policiais da gestão urbana e ferir outro em 2009 (ChinaFotoPress/Getty Images)

Na última semana de setembro, a execução de um vendedor ambulante, a condenação de um estuprador e assassino e a condenação do filho de um general por participar num estupro coletivo comandaram a atenção do público chinês. Os três casos não estão relacionados, mas juntos eles mostram como o sistema legal chinês é totalmente decidido pela política e não pela lei.

Xia Junfeng era um vendedor de rua na cidade de Shengyang, no nordeste da China. Como inúmeros vendedores ambulantes em cidades chinesas, ele operava sem licença. Em 16 de maio de 2009, quando ele e sua esposa estavam prestes a começar a vender salsichas em sua barraquinha, os chengguan locais, agentes urbanos de aplicação da lei, o confrontaram.

Xia, então, acompanhou ou foi levado por oficiais chengguan para seu escritório. No escritório, dois chengguan foram mortos e outro ferido pela faca de Xia Junfeng, uma ferramenta que ele usava para cortar salsichas. Xia Junfeng foi condenado à morte em 11 de novembro de 2009.

Seu caso se tornou uma causa célebre, debatido na mídia regular e social e o povo chinês apoiou Xia contra os chengguan, notoriamente brutais e corruptos. Após quatro anos de recursos e um segundo julgamento, o Supremo Tribunal finalmente confirmou a sentença de morte, que foi efetivada em 25 de setembro de 2013.

Xia Junfeng disse que foi espancado no escritório e os advogados e o público argumentaram que ele agiu em legítima defesa ou, no máximo, no que é chamado de autodefesa excessiva, o que na lei chinesa receberia uma sentença reduzida e não de morte. Pelo menos seis testemunhas poderiam testemunhar que Xia foi espancado na rua, mas o tribunal se recusou a deixá-las depor.

Oficiais chengguan que estavam presentes fizeram declarações que conflitavam entre si ou com suas próprias declarações anteriores. O advogado Teng Biao argumentou que a acusação de “homicídio doloso” não poderia ser aplicada a Xia Junfeng porque a morte não foi planejada. Na verdade, as circunstâncias deixavam claro que as mortes, a arma e o incidente nunca foram planejados por Xia.

O poder do regime

Os chengguan têm conflitos com vendedores ambulantes em cada cidade chinesa todos os dias. Comparados a outros policiais ou mesmo às forças militares, os chengguan têm mais experiência em combate real. Não é à toa que, quando a China teve disputas com o Japão sobre as ilhas Diaoyu, muitos chineses sugeriram o envio dos chengguan.

Algumas pessoas listaram oito casos nos últimos anos em que os chengguan espancaram indivíduos até a morte – com várias ocorrências em público. Nenhum dos chengguan foi condenado à morte como resultado e, em muitos casos, os policiais envolvidos não foram acusados de nada.

Internautas e alguns juristas compararam o caso de Xia Junfeng com o de Gu Kailai, a esposa de Bo Xilai, um poderoso político chinês agora desgraçado e preso. Gu planejou o assassinato, preparou o veneno com a ajuda de um assistente e matou o empresário britânico Neil Heywood, segundo o tribunal.

No entanto, Gu só recebeu uma sentença de morte suspensa por aquilo que foi um típico assassinato premeditado. Sua sentença, muito provavelmente, será reduzida para prisão perpétua e, então, um dia, ela provavelmente sairá da prisão.

Como um vendedor de rua, Xia Junfeng era um ninguém, especialmente quando comparado a Gu Kailai, que pertence à elite do Partido Comunista Chinês (PCC), mesmo que Bo Xilai tenha sido expulso. Claro, os chengguan mortos por Xia Junfeng também não eram ninguém, mas eles representam o poder político do regime. Executar Xia Junfeng envia a mensagem que o regime não deve ser contestado em qualquer nível.

A internet chinesa se encheu de especulações de que os órgãos de Xia Junfeng foram utilizados para transplantes e isso é muito provável.

O Supremo Tribunal aprovou a sentença de morte em abril, mas a execução só foi realizada no final de setembro. Depois de uma longa espera, a esposa de Xia só foi informada na manhã da execução quando esta ocorreria. Os oficiais comunistas chineses provavelmente estavam esperando por um destinatário que compatibilizasse com Xia e o próprio tribunal não poderia saber quando o dia da execução seria.

A colheita de órgãos também explica por que, após a execução, a esposa de Xia Junfeng recebeu apenas suas cinzas e não o corpo.

Rim de um oficial

Se a sentença de morte de Xia Junfeng era para alertar as pessoas a não desafiarem o regime, o julgamento e a sentença de Wang Shujin foram por razões diferentes, mas as razões não têm nada a ver com o estado de direito. Dois dias após a execução do Xia Junfeng, Wang Shujin foi condenado à morte pelo Supremo Tribunal da província de Hebei por estupro e assassinato.

Wang Shujin foi preso em 18 de janeiro de 2005. Ele admitiu ter estuprado várias mulheres e assassinado quatro delas na província de Hebei. A polícia desenterrou os restos humanos, exatamente no local indicado por Wang.

No entanto, o caso tornou-se complicado quando a polícia descobriu que 10 anos antes, alguém havia sido condenado pelo assassinato de uma das vítimas de Wang: o jovem chamado Nie Shubin já fora executado pelo crime.

Num segundo julgamento no Tribunal Intermediário da cidade de Handan em 25 de junho de 2013, Wang Shujin descreveu em detalhes como ele estuprou e matou a vítima particular. Seu advogado também disse que a descrição de Wang se encaixava na cena do crime.

O promotor, no entanto, insistiu no julgamento que Wang não cometeu o crime pelo qual Nie Shubin já havia sido condenado. O promotor e o advogado de defesa pareciam ter trocado os papéis, algo que não se vê todos os dias.

Desta vez, o Tribunal adotou o argumento do promotor, explicando que a confissão de Wang incluiu alguns detalhes importantes que não se encaixavam na evidência original, embora muitos detalhes se encaixassem perfeitamente. Um exemplo: A vítima foi estrangulada até a morte com uma camisa, o que não fazia parte da confissão de Wang.

Wang não pode ler e assim não teria como conhecer os detalhes do assassinato lendo-os num jornal. Todos os detalhes que não se encaixavam no testemunho de Wang devem ter sido evidências-chave que condenaram Nie Shubin. Além disso, essas “evidências” foram muito provavelmente plantadas pela polícia, que estava sob pressão para resolver o caso rapidamente.

O caso de Nie Shubin passou pelas mãos de muitas pessoas que trabalharam no sistema legal: a polícia que resolveu o caso, a Procuradoria, os tribunais e juízes, e até mesmo por oficiais do PCC. Muitos deles ainda trabalham nas posições mais altas no sistema jurídico ou no PCC. Suas reputações, empregos e interesses ainda estão ligados ao caso de Nie.

Se o caso de Nie Shubin fosse reaberto e novamente investigado, muitas pessoas também teriam dificuldade para dormir. Na China, qualquer engano oficial ou política errada cria um grupo de interesse e essas pessoas farão de tudo para evitar que o erro seja corrigido.

Revelações recentes tornam a situação ainda mais horrível. Um internauta chamado Lrxshq da Mongólia Interior afirmou que durante o julgamento de Nie Shubin, o Tribunal Intermediário de Shijiazhuang considerou que havia algo errado sobre o caso e sugeriu uma sentença de morte suspensa.

No entanto, na época, os tecidos de Nie Shubin eram compatíveis com os de um oficial de alto escalão do Ministério das Relações Exteriores, que precisa urgentemente de um transplante de rim. Internautas observaram o momento exato do transplante dos dois rins do oficial, um em 1995, quando Nie foi executado, e outro em 2002, quando disparou a colheita forçada de órgãos na China. Nesse período, acredita-se que dezenas de milhares de praticantes do Falun Gong tenham sido mortos por seus órgãos.

Se o rim de Nie Shubin foi usado para esse oficial, então, altos oficiais até a liderança central em Pequim estariam envolvidos na nulidade do julgamento e execução de Nie.

Um sacrifício

Em 26 de setembro, Li Tianyi, o filho do cantor e general do exército Li Shuangjiang, foi condenado a 10 anos de prisão por estupro. Em comparação com os casos de Wang Shujin e Xie Junfeng, este parece razoável, embora muitos pensem que a sentença foi muito leve.

O julgamento sugeriu que os juízes chineses conhecem a lei e sabem como julgar um caso. Mas seria um grande erro alguém pensar que os juízes julgaram o caso de forma independente, sem instruções e pressão de cima.

Li Shangjiang é famoso, ou conhecido, por seu papel na propaganda do PCC. Ele cantou músicas do Partido Comunista por 40 anos. No entanto, apesar de ser um general do exército, ele não está no círculo das famílias com poder real.

Simbolicamente, Li Shangjiang não é tão importante quanto os chengguan, que representam o poder do regime. Para fazer uma demonstração do estado de direito, para acalmar a ira das pessoas sobre o caso de Xia Junfeng e muitas outras coisas, para proteger os interesses fundamentais do regime, por vezes, o regime tem de sacrificar seus próprios. Esse é o verdadeiro significado da sentença de prisão de Li Tianyi.

Todos os três casos foram decisões políticas. A China de hoje é uma completa estranha ao estado de direito.