Trabalho e saúde: é preciso humanizar as formas de trabalho

18/12/2014 00:00 Atualizado: 18/12/2014 13:27

Trabalho e saúde

Entrevista com o professor João Batista Ferreira, da UFRJ, explica alguns problemas atuais do trabalho e aponta soluções para torná-lo mais saudável

Na sociedade de hoje, o trabalho está, frequentemente, sobrecarregando as pessoas. Desconsiderando problemas na saúde dos trabalhadores, na sociedade e no meio ambiente, o contexto atual de trabalho precisa passar por transformações, de modo a garantir um ambiente mais saudável ao trabalhador, onde ele conte com maior liberdade e espaço para expor e discutir suas relações, ideias e conflitos no ambiente laboral. Isto é que o professor João Batista Ferreira, responsável pela disciplina Psicodinâmica do Trabalho, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), explicou em entrevista ao Epoch Times.

Epoch Times: Como tarefas repetitivas prejudicam a saúde dos trabalhadores brasileiros? Quais são as principais queixas?

Prof. João Batista Ferreira: Quando as tarefas repetitivas realizadas pelos trabalhadores provocam a utilização exagerada dos tendões, nervos, ligamentos (no sistema musculoesquelético), de forma isolada ou associada – e não há tempo para recuperação -, ocorrem as lesões por esforços repetitivos (LER) e os distúrbios osteomusculares relacionados ao trabalho (DORT). Como não há consenso sobre a utilização dessas duas denominações, as duas siglas têm sido utilizadas simultaneamente. As LER/DORT são um conjunto de doenças ou alterações funcionais que atingem os membros superiores, o dorso e o pescoço. As causas são geralmente associadas às condições e organização do trabalho. Há uma inadequação entre as exigências do trabalho e a capacidade física, cognitiva e afetiva das pessoas. Especialmente no contexto de produtivismo e competitividade do mundo do trabalho atual, algumas vezes a qualquer preço, amplificou-se a sobrecarga de trabalho, a extrapolação da jornada de trabalho, a fragmentação das atividades, a instrumentalização das relações de trabalho e a consequente perda de sentido do trabalho. Com essa lógica, reduzem-se as possibilidades de participação dos trabalhadores na configuração dos fatores que causam adoecimentos na organização e  nas relações de trabalho.

As principais queixas estão associadas a vários sintomas, concomitantes ou não, geralmente nos membros superiores, tais como: dor, parestesia, sensação de peso e fadiga. As LER/DORT são caracterizadas, conforme a história de vida do trabalhador e de sua relação com a organização do trabalho, por sintomas físicos dolorosos, difíceis de serem diagnosticados, na maioria das vezes, acompanhados de ansiedade, sofrimento, depressão. Como a identificação da doença depende da confiança nas queixas dos trabalhadores, o sofrimento pós-adoecimento se associa às restrições decorrentes da doença, que pode produzir suspeitas de simulação por parte dos colegas de trabalho e familiares, que chegam a estigmatizar o trabalhador. Algumas patologias das LER/DORT, como a tenossinovite, são crônicas e tendem a reaparecer após terem sido aparentemente curadas. Não respondem bem aos tratamentos e podem se manifestar se o trabalhador realizar movimentos repetitivos e até em atividades fora do trabalho. Com isso, há uma incapacitação para atividades também fora do trabalho.

Epoch Times: Os prejuízos relatados por trabalhos despersonalizantes no Brasil são mais físicos ou psíquicos?

Prof. João Batista Ferreira: Se entendermos por trabalhos despersonalizantes, aqueles nos quais as pessoas têm dificuldade para encontrar sentido, e que tenho identificado como um trabalho morto, em contraposição a um trabalho vivo, precisamos tentar identificar o que produz esse trabalho morto. Há vários motivos. É preciso analisar como se constitui a organização, as relações e as condições de trabalho. A conjugação desses fatores pode resultar em inúmeras adversidades, sofrimentos e adoecimentos dos trabalhadores, que levam a sensação contínua de uma morte em vida. Os adoecimentos que produzem afastamentos do trabalho, como as LER/DORT, por exemplo, embora tenham uma manifestação que costuma ser física na sua origem, inevitavelmente afetam a dimensão psíquica dos trabalhadores, causando sofrimento psíquico, angústia, depressões. Trabalhos sem sentido podem também provocar acidentes de trabalho que, mesmo quando produzem danos físicos, também têm efeitos significativos na dimensão psíquica.

As relações de trabalho estão entre os fatores mais significativos para a falta de sentido no trabalho. Entre as situações mais críticas, a violência psicológica e o assédio moral ganharam grande relevância de uns anos para cá. Não porque não existissem antes, mas porque o modelo produtivo amplificou as situações de adoecimento, e as pesquisas ajudaram a evidenciar essas situações. Essas formas de violência, que podem levar ao suicídio no ambiente de trabalho, são uma manifestação dramática de um trabalho já experimentado como morto. Essas formas de violência são também identificadas como “práticas de gestão” a serviço da produtividade e da competitividade. Podem funcionar como mecanismo de controle e exclusão daqueles que “não jogam as regras do jogo”. Há situações nas quais o assédio moral pode ser configurado como assédio moral organizacional e com isso vemos a complexidade que o trabalho morto pode assumir.

Epoch Times: É possível pensar num mercado de trabalho composto somente por trabalhadores satisfeitos com suas ocupações ou que trabalham com o que gostam?

Prof. João Batista Ferreira: O mercado de trabalho precisa ser compreendido sempre com base no contexto sócio-histórico-econômico no qual está inserido. Como vimos, as principais características desse contexto são a competitividade e a produtividade que, na lógica do vale tudo, muitas vezes desconsideram os efeitos dos processos de trabalho na saúde das pessoas, na sociedade e no meio ambiente. Assim, estamos diante de permanentes desafios para a busca de espaços de compartilhamento, deliberação e transformação das situações de trabalho, de modo que sejam favoráveis aos trabalhadores e às demais partes envolvidas. Uma equação complexa, que inclui dimensões nem sempre visíveis das relações de poder.

A satisfação com o trabalho tende a ser maior quando há espaço para participação e liberdade para deliberar sobre a forma de organizar as atividades e discutir as relações e inevitáveis conflitos no trabalho. Assim, é possível construir espaços de compartilhamento que favoreçam a identificação das situações adversas que produzem sofrimento no trabalho, em dimensões como condições, processos e relações de trabalho, e a proposição de ações de transformação. Em situações assim, há maiores possibilidades de que os trabalhadores se sintam implicados em suas atividades. A maior parte das grandes empresas, por exemplo, tem um discurso de gestão participativa e respeito pelos funcionários, pela sociedade e pelo ambiente. Mas, na prática, isso muitas vezes fica no plano do discurso. Declarações éticas que estão apenas no papel, nas publicações bem produzidas e nas imagens dos sites das empresas. Precisamos pensar em uma ética viva como busca permanente de colocar em questão aquilo que produz sofrimento e adoecimentos nas pessoas. Não se trata de uma idealização do modelo participativo, pois, mesmo assim, os trabalhadores não ficariam sempre satisfeitos. A contínua transformação da realidade impõe a busca incessante de novas configurações do trabalho e das relações entre as pessoas, mas haveria a experiência por parte dos trabalhadores de que este processo é um processo vivo, necessariamente aberto à exposição e elaboração de conflitos, de que existe a experiência sempre inacabada, mas fundamental, de construção do trabalho vivo.

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Epoch Times: Uma ressignificação do trabalho é sempre possível ou existem ocupações menos maleáveis para isso, como por exemplo, o trabalho de faxineiros ou cobradores de ônibus?

Prof. João Batista Ferreira: Se entendermos essa ressignificação como a possibilidade que produzir sentidos para as inevitáveis adversidades e o sofrimento vivenciados no trabalho, essa ressignificação é possível quando há espaço de compartilhamento dessas adversidades entre os trabalhadores e possibilidade de influenciar a configuração da organização do trabalho. Sem isso, o sentido do trabalho se reduz ao atendimento das necessidades de sobrevivência. É necessário desenvolver e manter espaços para a explicitação dos afetos e saberes das pessoas que possibilitem frequentes reordenações das regras de trabalho e de convivência, a construção de relações de confiança, cooperação e reconhecimento. Isso só é possível quando há deliberação das situações da organização do trabalho que causam o sofrimento. Quando há reconhecimento pelas contribuições dos trabalhadores, é possível ressignificar o trabalho e implicar-se mais com ele. Mas é importante fazer a distinção entre duas formas de reconhecimento. Há uma forma que entendo como reconhecimento instrumental, que resulta do mero cumprimento de metas estabelecidas, muitas vezes difíceis de ser alcançadas, e que podem levar ao adoecimento das pessoas. Outra forma é o reconhecimento por contribuições à transformação do trabalho, ainda que essas contribuições possam causar desconforto ao “segmento pensante e empoderado” das organizações. O reconhecimento instrumental é o mais comum, está a serviço da pura conformidade, aderência e adaptação à organização.

Em algumas atividades de trabalho, como faxineiros, cobradores de ônibus ou garis, por exemplo, encontramos uma outra dimensão da adversidade. As pessoas que trabalham nestas atividades frequentemente relatam casos de discriminação, humilhação e invisibilidade. Há um excelente estudo sobre garis, realizado por Fernando Braga da Costa, no curso de psicologia da USP, que resultou no livro Homens Invisíveis – relatos de uma humilhação social. Ao colocar o uniforme de gari, Fernando se transformou em uma pessoa invisível, mesmo nos locais onde as pessoas o conheciam, ou então como coisa, instrumento de limpeza de uma engrenagem social que desconsidera as pessoas. Na convivência com os garis, no entanto, Fernando encontrou espaço no qual eles refletem sobre sua condição. É um lugar de construção de mobilização e estratégias contra as adversidades. As diversas formas de preconceitos são muito mais fortes do que aquilo que prega o mito da inclusão social e da democracia no Brasil. E isso está muito presente no mundo do trabalho.

Epoch Times: Na sua opinião, existe alguma forma de adaptação que o mercado de trabalho no Brasil possa sofrer para amenizar o seu aspecto robotizante?

Prof. João Batista Ferreira: Como vimos, o mercado de trabalho não se dissocia do contexto sócio-histórico- econômico em que vivemos. As lógicas e práticas preponderantes de gestão são estruturadas por relações de poder econômico que influenciam também as políticas governamentais e, no mundo cotidiano do trabalho, as formas de sentir, pensar e agir dos trabalhadores. Quando se analisa a influência da lógica produtivista na saúde e no sentido do trabalho, verificarmos sua força na regulação e configuração das organizações. A tendência ao trabalho robotizante ou alienante aumenta e se extende para a vida das pessoas fora do trabalho, torna-se uma forma de produção de subjetividade alienada. Para que essas lógicas e práticas sejam percebidas nas suas diversas manifestações e efeitos, é importante a contínua mobilização de organizações que possam participar, representar, intervir: sindicatos, Ministério Público do Trabalho, organizações sociais, instituições de ensino. Há necessidade de ações que busquem articulações permanentes, voltadas para a identificação e proposição de ações que denunciem estas práticas e que contribuam para ações de transformação das organizações do trabalho. No entanto, precisamos reinventar essas formas de articulação, representação e controle social, como bem mostram as mobilizações atuais no Brasil e em outros países. Precisamos buscar vias que influenciem a elaboração e acompanhamento do cumprimento de políticas públicas. Identificar e denunciar situações que produzem atentados à dignidade, saúde e vida dos trabalhadores. É um longo e permanente caminho que precisa de ações necessariamente vinculadas à complexa e indissociável articulação das dimensões pessoais, grupais, organizacionais, institucionais e históricas.

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Andrea Yaghdjian