A teoria austríaca do intervencionismo

29/03/2014 09:59 Atualizado: 29/03/2014 09:59

Vivemos sob um sistema econômico intervencionista. Mas, surpreendentemente, é raro encontrar nos escritos dos economistas modernos análises sobre a lógica do intervencionismo visto como um sistema econômico, com exceção dos economistas austríacos. Neste artigo revisaremos os fundamentos da análise desses autores sobre o assunto.

Ao analisar o intervencionismo como um sistema econômico, os austríacos retomam uma tradição típica da economia clássica. A Riqueza das Nações de Smith, por exemplo, se lida na íntegra, se revela uma comparação do desempenho econômico de conjuntos de instituições liberais e intervencionistas – denominadas “sistemas de liberdades naturais” e “mercantilismo”, respectivamente. Da mesma forma, nos escritos de economistas antigos, como Turgot, Say, Bastiat e outros autores, na sua maioria franceses, podemos constatar a centralidade da crítica ao intervencionismo. Com o advento da ortodoxia ricardiana, no entanto, essa tradição tendeu a sair de cena, devido em parte à adoção de uma orientação teórica mais macroeconômica e agregada, até desaparecer por completo com Marx. Na obra deste autor, os conceitos denominados “capitalismo” e “socialismo” aparecem como os sistemas econômicos relevantes, sendo o intervencionismo erroneamente visto como uma forma transitória do primeiro. [1]

O domínio da visão de mundo marxista nas ciências sociais influenciou até mesmo os economistas ortodoxos modernos. Estes continuam a trabalhar com as noções de capitalismo e socialismo, preferindo, porém, de forma pretensamente científica, uma terceira via entre esses dois extremos, que seriam defendidos em termos puramente ideológicos. Entretanto, raramente ouvimos explicações sobre as diferenças entre esse sistema idealizado e o intervencionismo concreto, comumente denominado “capitalismo de Estado”. Mesmo assim, segundo a crença desses economistas, o intervencionismo concreto, do mundo real, não é sujeito a regularidades que justifiquem uma teoria sobre seu funcionamento. A estatolatria prevalente em nossa época faz com que o Estado seja romantizado, visto como uma entidade abstrata pautada pelo interesse coletivo. Isso barra a análise das falhas de governo e a investigação sobre a existência de algum padrão a respeito do funcionamento da intervenção estatal. [2]

Ludwig von Mises, porém, retomou no século 20 a tradição clássica de crítica ao intervencionismo, desenvolvendo ao longo de sua carreira uma extensa análise de vários aspectos desse sistema econômico, desde o exame de sua ideologia [3] e estudos históricos sobre suas consequências [4] até trabalhos teóricos sobre o funcionamento da burocracia estatal [5] e também sobre a crítica ao sistema econômico intervencionista. [6]. A respeito desse último tópico, não contente em estabelecer a tese sobre a inviabilidade do socialismo (tese até hoje sem respostas satisfatórias), Mises mostrou que a alternativa intervencionista tampouco consiste num sistema econômico viável, pois as contradições inerentes ao mesmo o tornam instável, tendendo sempre para os limites de uma economia livre ou controlada centralmente. Vejamos o argumento mais de perto.

Em primeiro lugar, Mises define intervenção como “… uma norma restritiva imposta por um órgão governamental, que força os donos dos meios de produção e empresários a empregarem estes meios de uma forma diferente da que empregariam” [7]. Dada essa definição, o autor divide sua análise em dois grandes grupos, restrições de produção (como normas de qualidade, restrições ao comércio exterior ou restrições de ocupação) e intervenções no sistema de preços (como o estabelecimento de preços máximos e mínimos). Em ambos os casos, os efeitos das intervenções são o oposto daquilo desejado pelo governo. No primeiro caso, o emprego do capital em linhas diferentes daquelas que os agentes livres desejariam tem o efeito de reduzir a produtividade do investimento e portanto diminuir a riqueza produzida, o que gera por sua vez novos problemas de ordem econômica.

É no segundo tipo de intervenção, contudo, que Mises desenvolve de forma mais completa a dinâmica do processo intervencionista, dinâmica essa gerada pela resposta aos novos problemas que surgem como consequência das intervenções anteriores. Se, por exemplo, o preço do leite for alto o bastante de modo a impossibilitar um nível de consumo tido como desejável, o governo poderia estabelecer um preço máximo para o produto. O preço inferior faz com que os vendedores retirem os produtos não perecíveis do mercado, para evitar prejuízos. Isso provoca uma reação governamental, que decreta a liberação compulsória dos estoques. Mas, como todo aluno de Introdução à Economia sabe, ao preço menor a demanda será maior do que a oferta e a quantidade de leite de fato transacionada diminui em vez de aumentar. O governo poderá então impor um sistema de racionamento para evitar as consequências das intervenções anteriores. Com o esgotamento dos estoques, para evitar a interrupção da oferta das firmas que operariam com prejuízo, o governo deverá então controlar os preços dos insumos, desencadeando assim o mesmo tipo de efeito em outros mercados, com o capital migrando para os setores não controlados e frustrando o plano inicial. Para obter uma alocação de recursos consistente, o controle deve então se entender para todo o sistema de preços, controlando salários e em última análise forçando os trabalhadores e empresários a empregar seus esforços nas direções desejadas pelo governo. Chega-se assim a um sistema totalmente controlado – o socialismo. A alternativa seria o abandono dos controles e teríamos novamente uma economia livre.

Na evolução do processo intervencionista o fator ideológico exerce papel preponderante, segundo Mises. Na presença da ideologia estatista, cada fracasso de uma intervenção gera demandas por novas intervenções: a culpa dos problemas nunca é a intervenção em si, mas a falha em aplicar a lei e o egoísmo dos agentes econômicos. Exigem-se então novas e mais rigorosas leis. Isso, adicionalmente, corrói a moralidade da sociedade, pois o vendedor de leite que burla a lei serve ao interesse público e o funcionário público que procura aplicá-la age contra esse interesse. No que se refere ao passado recente no Brasil, por exemplo, todo gerente de varejo respeitável já foi preso por remarcar preços e os contrabandistas de microcomputadores de décadas atrás merecem monumentos públicos por violar a lei da informática vigente nos anos 90…

Com o exemplo do leite, Mises ilustra a tese da instabilidade do intervencionismo. Naturalmente, outras intervenções poderiam ser tentadas, mas sempre com o mesmo efeito de consequências não intencionais que se alastram para o resto da economia, até se refletir na deterioração do quadro macroeconômico do país. A evolução da teoria austríaca do intervencionismo a partir de então reage ao desafio de estender a análise básica de Mises aos demais tipos de intervenção. Como notou Lavoie [8], Mises define intervenção de forma desnecessariamente estrita, excluindo de sua análise os gastos públicos, tributação, operação de indústrias estatais, fornecimento de bens subsidiados e outras intervenções, embora ele vá ao longo da sua carreira progressivamente incluindo alguns desses pontos em sua crítica. Lavoie considera, por exemplo, que a teoria austríaca dos ciclos se encaixa perfeitamente no padrão proposto: injeções de crédito falham em estimular a economia no longo prazo, gerando ciclos de bolhas e crises que são atribuídas não às autoridades monetárias e ao sistema bancário sob sua proteção que iniciaram o processo, mas ao mercado livre. Isso cria demanda por ainda mais crédito e gastos públicos, propostos como remédios que, além de não funcionar, geram déficits que criam novas dificuldades para a economia no futuro.

Rothbard, discípulo de Mises, procura então em sua obra principal estender o escopo da análise misesiana. Para esse autor, intervenção estatal é vista como toda “… intrusão de força física agressiva na sociedade; significa substituição da ação voluntária pela coerção” [9]. Para ajudar a generalizar a análise, Rothbard cria uma tipologia de intervenções: a) intervenções autistas, referentes ao comportamento privado (como aquelas referentes à liberdade de expressão, proibição de consumo ou direito a deslocamento das pessoas), b) intervenções binárias, relativas às relações com o Estado (como tributação, bens públicos, nacionalização de indústrias) e c) intervenções triangulares, que forçam ou impedem a troca com terceiros (como controles de preços, regulações de comércio e contratos, regulações ambientais e de segurança). De posse dessa tipologia, o autor de fato é capaz de cobrir um espectro maior de intervenções na análise, aumentando o peso do argumento original.

Com a evolução da teoria austríaca do processo de mercado a partir das contribuições de Hayek e mais tarde Kirzner [10], a análise austríaca do intervencionismo passa a ter uma base teórica comum: todas as intervenções podem ser analisadas em termos da diminuição da capacidade de adaptação dos mercados às mudanças que continuamente ocorrem nas economias. Os erros acumulados e consequências não intencionais das intervenções são então explicados pelo bloqueio a atividade empresarial de descoberta que caracteriza a competição em mercados livres.

De posse desse aparato teórico, Ikeda [11] reformula a tese misesiana de modo a criar uma teoria austríaca de ciclos intervencionistas. O principal problema da explicação de Mises, nota Ikeda, é a sua previsão (que lembra Marx) sobre o fim eminente do sistema intervencionista sob o peso de suas contradições. Para Mises, esse sistema pode ter uma sobrevida devido ao uso daquilo que denomina “fundo de reservas” de riquezas previamente criado pela sociedade mais livre. Embora seja de fato verdadeiro que sociedades já ricas podem se dar ao luxo de manter políticas destrutivas por mais tempo e que, de fato, vivemos no Brasil a experiência que comprova que estatizar antes de enriquecer impede o desenvolvimento, podemos constatar que o intervencionismo ou mercantilismo é o sistema econômico mais frequente e duradouro nas sociedades que superaram um estágio tribal de desenvolvimento. O que explicaria isso?

A previsão de Mises pode ser entendida em termos de sua visão de mundo racionalista e otimista: no longo prazo um sistema econômico incoerente não sobrevive, pois a razão no longo prazo reconhece essa incoerência. Para Ikeda, por outro lado, o sistema intervencionismo seria um exemplo do conceito hayekiano (e polanyiano) ordem espontânea: se examinarmos a lógica da evolução do tamanho do estado, existem forças que, por um mecanismo de retro-alimentação, conferem estabilidade ao sistema.

Por um lado teríamos uma fase expansionista do ciclo intervencionista: como descreve Mises, intervenções geram uma reação em cadeia que demandam mais intervenções. O acúmulo de problemas gerado por um estado altamente intervencionista, embora comumente atribuído aos mercados livres, diminui a efetividade das novas intervenções e facilita para um número progressivamente maior de pessoas a tarefa de reconhecer as verdadeiras causas do fenômeno. No limite, o crescimento do estado se depara com o problema da impossibilidade do cálculo econômico socialista: sem propriedade privada não teríamos mercados cujos preços auxiliam os agentes na tarefa de avaliar a importância das diferentes linhas de ação econômicas alternativas.

Quando a crise do intervencionismo se manifesta sob a roupagem de uma crise macroeconômica, os governos são pressionados a, contra sua própria ideologia, promover reformas na direção liberalizante. Teríamos então a fase contracionista do ciclo intervencionista. Será possível que essa fase nos leve a um estado mínimo ou ainda a uma sociedade anárquica, com estado zero, no outro extremo? Para o autor, isso não ocorre devido à instabilidade do estado mínimo (ou nulo): os problemas informacionais que assolam a ação estatal (ou organizações voluntárias para provisão de bens públicos) permanecem e, sendo assim, se faz presente o mesmo processo de expansão (criação) do estado propelido por erros de ações anteriores.

A análise de Ikeda tem vários méritos, o maior deles relativo à ideia em si de ciclos intervencionistas. Adicionalmente, o autor engloba em sua análise não apenas o intervencionismo dirigista convencional, mas também o intervencionismo distribucionista, fundamental para a compreensão da lógica do estado de bem-estar moderno. Além disso, por motivos de rigor analítico, a teoria é construída supondo interesse público da parte do governo, mostrando assim que apenas o problema hayekiano de conhecimento limitado basta para explicar o ciclo intervencionista, embora o autor não despreze o estudo da lógica do autointeresse na política. A introdução desse tipo de consideração aumenta imensamente o poder explanatório da teoria a respeito dos padrões observados na desaceleração da fase contracionista, o que aumenta a importância da discussão das questões ideológicas: seria possível a difusão do diagnóstico liberal quebrar a resistência a reformas imposta por aqueles que vivem de privilégios concedidos pelo estado?

Neste ponto a análise de Ikeda poderia ser modificada. Para esse autor, as preferências ideológicas são em larga medida exógenas, variando um pouco, porém, em termos de modificações na taxa marginal de substituição entre ação voluntária e ação estatal conforme estejamos em diferentes fases do ciclo: no extremo liberal, demandam-se mais intervenções, no extremo estatista preferem-se liberalizações. A correção do excesso de otimismo de Mises no poder da razão e uma compreensão mais profunda da relação entre ideologia e evolução institucional seriam dadas pela incorporação na análise das ideias desenvolvidas nos últimos trabalhos de Hayek [12]. Nestes trabalhos, Hayek investiga, por um lado, a evolução da ideologia que fundamenta o intervencionismo e o socialismo, derivada de uma moral tribal, disfuncional em termos das necessidades impostas por uma sociedade livre mais complexa. Por outro lado, o autor explica em termos evolucionários o processo de mudanças institucionais, como algo entre a razão e o instinto e não como algo que possa ser planejado de cima para baixo. Essas duas linhas de investigação, trazidas para a teoria dos ciclos intervencionistas, são capazes de explicar uma assimetria entre as fases expansionista e contracionista do ciclo: ou seja, porque tão logo que as primeiras reformas liberalizantes aliviam as crises do intervencionismo, o processo de reformas é abortado e as práticas intervencionistas retomadas.

Levar mais a sério a tenacidade da ideologia intervencionista nos leva então a um problema fundamental: como quebrar a lógica de expansão do estado? Embora nossas preferências políticas liberais nos direcionem para a investigação desse desafio intelectual, uma solução convincente ainda não existe e, infelizmente, uma teoria de ciclos intervencionistas realista ainda se assemelha a um modelo biológico de hospedeiro-parasita, no qual o problema do estado é extrair o máximo de recursos do hospedeiro sem matá-lo. Paradoxalmente, o fantástico grau de adaptabilidade da ação livre, capaz de sobreviver a ataques extremamente agressivos do parasita, é a causa última da ubiquidade e permanência do intervencionismo.
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Notas:

[1] Para uma análise do contraste entre as noções marxista de modos de produção e o mercantilismo, ver Osterfeld, D. Marxism, Method and Mercantilism in Maltzev, I. N. (ed.) A Requiem for Marx, Auburn: Ludwig von Mises Institute, 1993.
[2] A crítica a políticas intervencionistas como controles de preços subsiste na análise ortodoxa em ambientes nos quais prevaleceria a estrutura de mercado denominada “competição perfeita”. Fora desta, os economistas acreditam que os fundamentos da economia, como a estrutura de custos e as curvas de demanda, são conhecidas pelo governo e pelas firmas de modo independente do processo competitivo no mercado, de forma que se recomenda a intervenção no sistema de preços sem as consequências negativas reconhecidas no primeiro caso. Para uma análise da justificativa econômica padrão das intervenções, ver o artigo anterior: “Eficiência econômica e a abordagem do nirvana.”
[3] Mises, L. (2010) A Mentalidade Anticapitalista. São Paulo: Instituto Mises Brasil.
[4] Mises, L. (1985) Omnipotent Government: The Rise of the Total State and Total War. Spring Mills: Libertarian Press.
[5] Mises, L (1983) Bureaucracy. Grove City: Libertarian Press.
[6] Ver Mises, L. 1929 Uma Critica ao Intervencionismo. Rio de Janeiro: Instituto Liberal-Nordica; Mises, L. 1929 Intervencionismo: uma análise econômica. São Paulo: Instituto Mises Brasil e também Mises, L. 1949 Ação Humana, São Paulo: Instituto Mises Brasil.
[7] Mises, L. Uma Crítica ao Intervencionismo, p. 18.
[8] Lavoie, D. (1982) The Development of the Misesian Theory of Interventionism in Kirzner, I. Method, Process, and Austrian Economics. Lexington: Lexington Books.
[9] Rothbard, M. (1993) [1962] Man, Economy and State. Auburn: Ludwig von Mises Institute, p. 766.
[10] Hayek, F.A. (1980) Individualism and Economic Order. Chicago: The University of Chicago Press; Kirzner, I. (1986) Competição e Atividade Empresarial, Rio de Janeiro: Instituto Liberal.
[11] Ikeda, S. (1997) Dynamics of the Mixed Economy: toward a theory of interventionism. Londres: Routledge.
[12] Hayek, F. A. (1985) Direito, Legislação e Liberdade, vols. I, II e III, São Paulo: Editora Visão Ltda. e Hayek, F. A. (1991) The Fatal Conceit: The Errors of Socialism. Chicago: The University of Chicago Press.
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Fabio Barbieri é mestre e doutor pela Universidade de São Paulo, é atualmente professor da USP na FEA de Ribeirão Preto

Esta matéria foi originalmente publicada pelo Instituto Ordem Livre