Spray de pimenta, melhor amigo dos médicos chineses

20/07/2014 11:23 Atualizado: 20/07/2014 11:23

Quando um paciente com câncer de pulmão avançado morreu no 1º Hospital Afiliado da Universidade Médica de Hunan, familiares indignados imediatamente culparam a médica e a enfermeira por lentidão e incompetência. Em seguida, eles quebraram os móveis na sala da médica, espancaram-na, arrastaram-na até a cama do paciente falecido, estapearam seu rosto e forçaram-na a se ajoelhar e pedir desculpas.

“Eu senti que fui tratada pior do que um animal”, disse a Dra. Wang à televisão estatal de Hunan, sentada numa cama de hospital com gaze envolta na cabeça e derramando lágrimas ao recordar o incidente. A enfermeira, a sra. Tan, grávida de cinco meses, também não foi poupada da fúria da família do falecido. Depois da surra que ela recebeu, os médicos pensaram que ela poderia ter um aborto espontâneo; ela está agora hospitalizada.

O acesso de fúria na província de Hunan, no início de junho, foi o mais recente caso na China a chamar a atenção do público para questões diversas e persistentes que têm atormentado o sistema médico há anos: a corrupção desenfreada entre funcionários médicos; os mecanismos primitivos ou inexistentes de resolução de conflitos para denúncias de negligência médica; a ausência de um sistema responsável de seguro de saúde; e, acima de tudo, a desconfiança fervente entre os pacientes em relação a médicos e enfermeiros, de fato um reflexo da dinâmica mais ampla que atormenta a sociedade chinesa como um todo.

Mas uma coisa é certa a respeito do pânico sobre a violência de pacientes: os médicos e enfermeiros têm se preparado. “Todos nós levamos spray de pimenta e cassetetes de autodefesa para trabalhar agora, apenas por precaução”, disse uma enfermeira, na emergência de um hospital em Hunan recentemente, à mídia estatal Xinhua. Um médico no 1º Hospital Afiliado, onde o incidente de junho ocorreu, disse: “Eu trabalho na emergência onde as disputas médicas acorrem mais frequentemente… Tenho medo de que pacientes me espanquem um dia.”

A explosão na província de Hunan não é exceção. Caos semelhante ocorreu no hospital particular Shanxia, na rica cidade de Shenzhen, província de Guangdong, em maio deste ano. O problema começou com a morte de um paciente após nove meses de tratamento. A família alegou que o hospital era responsável e exigiu compensação. O hospital se recusou. Assim, os familiares do falecido se estabeleceram em luto diante do estabelecimento e começaram a acender fogos de artifício. Eles assediariam os médicos que entravam e saiam e inclusive começaram a jogar esterco neles. O hospital tinha uma equipe de 500, mas até o final da semana havia apenas 200, segundo reportagens chinesas.

De acordo com o Comitê Nacional de Saúde e Planejamento Familiar da China, houve 17 mil casos de pacientes assediando médicos em 2010, uma tendência que tem aumentado rapidamente. A China não tem um sistema desenvolvido para resolver disputas médicas, embora as autoridades estejam trabalhando nisso. O sistema legal de responsabilização médica, amplamente adotado em países ocidentais, ainda está em fase piloto em áreas limitadas na China. Um resultado disso é que quando surgem acusações de negligência médica os pacientes e familiares focam-se diretamente em pressionar o hospital e funcionários médicos para obter compensação. E sua ousadia e violência só têm aumentado.

“Sem luta, sem compensação. Pequenas lutas, pequenas compensações. Grandes lutas, grandes compensações”, tornou-se uma espécie de lema que orienta os pacientes insatisfeitos com o tratamento recebido, disseram vários médicos à mídia estatal. O processo atual de resolução de disputas – que conta com a consulta de médico-paciente, mediação administrativa e processo civil – é caro e leva meses ou anos, o que frustra os pacientes que têm pouca paciência para esperar. Pacientes com raiva teriam inclusive contratado capangas e membros da máfia para espancar e humilhar médicos e enfermeiros.

Hospitais caros, superlotados e ineficazes são acusados de alguns dos problemas. “Muito burocrático e muito caro”, tornou-se um refrão comum sobre o tratamento hospitalar na China. Guo Yanhong, vice-diretora da Autoridade Hospitalar do Comitê Nacional de Saúde e Planejamento Familiar, disse à imprensa chinesa que a falta de recursos e serviços médicos e um sistema de seguro estaria por trás dos conflitos. “Os grandes hospitais estão superlotados com pacientes”, disse ela. “Então, eles recorrem aos hospitais de baixo nível. Na verdade, isso revela questões sobre nossa alocação de recursos, falta de médicos de qualidade e problemas sistêmicos.”

O nível enorme de corrupção no setor médico agrava a questão. Distribuir “envelopes vermelhos” recheados com dinheiro é uma prática comum para obter cuidados médicos na China. Os enfermeiros frequentemente aconselham os familiares de pacientes de forma ad hoc quanto dinheiro é necessário – o dinheiro é pago na tentativa de garantir que o paciente receba tratamento adequado do médico, mas também contribui para o clima de desconfiança na relação paciente-hospital.

Autoridades de saúde chinesas têm tentado reprimir a prática, como a implementação da política de “sem envelope vermelho”, que requer que médicos e pacientes assinem antes do tratamento, desde 1º de maio deste ano, segundo a mídia estatal China News. No entanto, a natureza desta forma de corrupção torna difícil saber se essas políticas têm algum impacto.