Mulher estuda acionar empresa na justiça porque foi chamada de “chata”.
São largos os passos que damos em direção a uma sociedade completamente imbecilizada e infantilizada, formada não mais por indivíduos autônomos, capazes de avaliar cada situação conforme a realidade que se lhes impõem, mas por uma massa débil e suscetível àquilo que a intelligentsia determina que é ofensivo (como chamar seu amigo chato de “chato”, seu amigo negro de “negão” ou seu amigo branco de “branquelo”).
Na mesma medida em que se ofende e ocupa a Justiça com besteiras inócuas e geralmente vazias de sentido [Quantas vezes você chamou alguém de “filho da puta” com a real intenção de dizer que a mãe desse alguém é de fato uma “mulher lúbrica que se entrega à libertinagem” (Houaiss)?], essa massa em já avançado estado de solidificação condescende e transige ante ofensas reais e malignas.
Que importa se a presidente do país mentiu em seu currículo, participou de ações terroristas que redundaram em morte de civis e não concluiu o processo de aquisição da fala?
Qual é o problema em grupos que dizem militar pela tolerância e o respeito mútuo entre os diferentes pensamentos invadirem as reuniões de outros grupos e agredirem estes de forma factual e simbólica?
Quem se incomoda com os achaques, cerceamentos, extorsões e quejandos impostos por agentes de um Estado cada vez mais inchado e, ao mesmo tempo, ineficaz?
Nada disso importa à nossa sociedade patrimonialista e utilitarista.
Desde que as classes mais altas não tenham seus negócios afetados, as classes médias sigam recebendo bolsas de “estudo” e crédito facilitado para comprar porcarias eletrônicas e as classes baixas sigam gozando de assistencialismos vários, tudo isso aí é besteira, incluindo os 70 mil homicídios anuais em função da guerra civil mais assimétrica e dissimulada de que se tem notícia, entre bandidos armados e protegidos pelo Estado e todo o resto da população – desarmada, acossada e paralisada.
Só não pode chamar gordo de “gordo”, narigudo de “narigudo”, chato de “chato” etc. – aí, então, o gigante acorda! Na selva brasilis, “a” não é necessariamente igual a “a”. O que as pessoas em geral não percebem é que essa suscetibilidade transcende a idiotia boboca de quem move processos judiciais por ser chamado de “boboca”: desafia o mais básico dos princípios – o da identidade – e, por conseguinte, impede o sujeito de avaliar os fatos segundo a experiência real que se tem deles, obnubilando as compreensões mais básicas do ser humano. Ademais, essa atitude dá carta branca à grande imprensa brasileira em seu grandioso empreendimento contra a realidade, no qual chama bandidos de “suspeitos”, vândalos de “manifestantes”, delinquentes de “vítimas do sistema” e quebra-quebras forjados por grupos políticos de “manifestações que começam pacíficas, mas, sabe-se lá por quê (provavelmente, por conservadores infiltrados), acabam violentas”. Depois, não adianta escandalizar-se quando os mensaleiros do PT descaradamente denominam-se presos políticos. (Não estou dizendo que a mulher não foi ofendida, pois foi, estou apenas apelando ao senso das proporções. Todos nós somos constantemente atacados de formas muito mais graves e transigimos com tais ofensas, como as listadas nos questionamentos do terceiro, do quarto e do quinto parágrafos deste texto.)
Em tempo: não sei se a ofendida da notícia que motivou este texto é chata ou não. Se o é, está perdendo uma excelente oportunidade de avaliar-se, fazer uma autocrítica e evoluir. Se não o é, está ignorando que os funcionários do restaurante quiseram atendê-la de forma satisfatória. Tenho certeza de que a moça não se ofenderia se, estando na fila do INSS, ouvisse o chefe da repartição orientando os servidores: “Sejamos céleres e eficientes, pois aquela contribuinte é uma chata!”.
Colombo Mendes é editor e revisor editorial
Esse conteúdo foi originalmente publicado no portal Mídia Sem Máscara