Seus avós tomavam leite integral, mas o chamavam apenas de leite. Seus pais faziam ligações de telefone fixo, mas o chamavam apenas de telefone. Você talvez assistisse TV aberta quando chamávamos os canais apenas de TV. Depois que começamos a beber leite desnatado, ligar de telefone celular e assistir TV a cabo, nossa comunicação ganhou uma dose de ambiguidade. Passamos a criar os chamados retrônimos, neologismos que adjetivam um termo original para que ele possa manter, em nova versão composta, o mesmo significado que possuía anteriormente.
Sabão em barra, câmera de filme, relógio analógico, caneta tinteiro, estrada de chão, forno convencional… são todos exemplos de retrônimos – todos neologismos criados para identificar o que a tecnologia tornou ambíguo. Maus candidatos a retrônimos futuros são “automóvel a combustão” e “impressora 2D”.
Mas nem só de tecnologia se compõem os retrônimos. “Monarquia absolutista”, por exemplo, é uma retronímia política decorrente do advento do estado de direito e da propagação do constitucionalismo. “Propriedade privada” também é um retrônimo que os autores do século XVIII parecem usar para identificar o que no século anterior John Locke e Jean-Jacques Rousseau chamavam apenas de “propriedade”.
Karl Marx era craque em usar o poder retórico dos retrônimos a seu favor. Cunhou o termo “economistas clássicos” para, com algum decoro, empurrar a estante de Turgot, Smith, Say e Ricardo da biblioteca para o museu, manobra que, por consequência, faria do próprio Marx o divisor de águas da história econômica.
Tratamento ainda menos generoso receberam os socialistas do século XVIII e XIX. Textos como Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico de Friedrich Engels agruparam Saint-Simon, Robert Owen, Charles Fourier e outros sob o véu desabonador do “socialismo utópico”, mantendo-os assim separados, pela distância que há entre o sonhador e o vigilante, da versão histórico-materialista autodenominada “socialismo científico”.
Quem tem retronomia não precisa de refutação. Quem é que, quando confrontado com a escolha entre utopia e ciência, não prefere ficar do lado da ciência? É preciso ignorar essa taxonomia sugestiva para percebermos que, ao contrário do que sugerem os marxistas, alguns de seus antecessores utópicos estavam mais próximos da ciência experimental que Marx. Joshua Muravchik faz esse ponto em ensaio citado por Bryan Caplan:
“Owen e os outros comunitários na verdade criaram experimentos para testar suas ideias. A experimentação é a essência mesma da ciência. Eles foram os verdadeiros socialistas científicos.”
Havia em pessoas como Robert Owen a ambição empírica que anima o espírito científico – apesar de que seus experimentos não tenham sido lá tão bem sucedidos. Muravchik fala que em 1824 Robert Owen viajou da Grã-Bretanha para os Estados Unidos decidido a fundar suas próprias comunidades socialistas. De um grupo religioso, comprou terras às margens do Rio Wabash para então povoá-lo. O terreno incluía casas, fazendas e 20 oficinas produtivas que vendiam para o resto dos Estados Unidos. Apesar do lugar escolhido já vir com certo grau de desenvolvimento, Muravchik diz que “em um ano depois de adquirir o lugar, Owen e seus milhares de seguidores haviam transformado essa pequena Suíça em uma Albânia”.
Pode ter sido um fracasso, mas é melhor testar e fracassar que teorizar eternamente sem jamais reconhecer fracasso. Em vez de testar hipóteses, marxistas fazem profecias fundamentadas nas leis inexoráveis da história que deveriam varrer o capitalismo burguês da face da terra através da culminação dialética de uma luta de classes de determinação cósmica. Sabe como é: “ciência”.
Ao reconhecer critérios de testabilidade para suas teorias, o socialista dito utópico poderia ao menos tentar dialogar com seu oponente sobre qual a melhor maneira de reduzir a pobreza. Se retornassem a essa tradição, os socialistas poderiam unir forças com os liberais experimentais para que governos permitissem a criação de novos laboratórios sociais voluntários, como Cidades Modelo e Seasteading.
Seria menos nocivo testar em escala limitada, reconhecer fracassos e propor reformas do que proclamar sobre uma montanha de cem milhões de mortos que o verdadeiro socialismo nunca foi verdadeiramente tentado, mas que seu triunfo é inevitável.
O retrônimo correto não deveria ser “socialismo utópico”, mas “socialismo experimental”, como sugere Caplan. A abertura à experimentação é uma virtude de alguns socialistas pré-marxistas que poderia ser restaurada. Aí seriam os velhos marxistas que precisariam de um novo retrônimo. Meu voto vai para “socialismo profético”.
Diogo Costa é presidente do Instituto Ordem Livre e professor do curso de Relações Internacionais do Ibmec-MG. Trabalhou com pesquisa em políticas públicas para o Cato Institute e para a Atlas Economic Research Foundation em Washington DC
Esta matéria foi originalmente publicada pelo Capitalismo Para Os Pobres