§ 1. [Funções necessárias e opcionais de um governo notável] Uma das questões mais discutidas, tanto na ciência política quanto na prática de um estadista neste período em particular, se relaciona com os limites adequados das funções e ações dos governos. Em outros tempos, a discussão sobre como os governos devem constituir-se, e sobre os princípios e regras segundo os quais devem exercer sua autoridade, foi objeto de controvérsia; mas, agora, é quase igualmente um problema a questão de quais os departamentos das relações humanas a que essa autoridade se deve estender. E quando a maré se define tão fortemente na direção de mudanças no governo e na legislação, como um meio de melhorar a condição da humanidade, é mais provável que o interesse nessa discussão mais cresça do que diminua. Por um lado, reformadores impacientes, pensando ser mais fácil e mais rápido tomar posse do governo do que do intelecto e do caráter do público, têm a constante tentação de alargar o alcance do governo para além de seus limites; enquanto, por outro lado, a humanidade tem estado tão acostumada pelos seus governantes a interferir em propósitos outros que não o bem comum, ou sob uma concepção errônea do que esse bem exige, e tantas propostas precipitadas são feitas por pessoas que desejam, sinceramente, o progresso, para tentar, através de regulamentações compulsórias, a realização de fins que só podem ser compreendidos de forma eficaz ou proveitosa por intermédio da opinião e da discussão, que tem crescido um espírito de resistência in limine contra a interferência do governo, meramente como tal, e uma disposição de restringir sua esfera de ação aos mais estreitos limites. A partir de diferenças no desenvolvimento histórico das diferentes nações, não necessariamente para estarem aqui acumuladas, o excesso anterior, aquele de exagerar o alcance do governo, é o que prevalece, tanto na teoria quanto na prática, entre as nações continentais, enquanto na Inglaterra o espírito contrário tem sido, até agora, o predominante.
Quanto aos princípios gerais dessa questão, na medida em que isso é uma questão de princípio, eu os tentarei determinar num capítulo mais adiante desse livro: após, primeiramente, considerar os efeitos produzidos pela condução do governo no exercício das funções universalmente reconhecidas como suas. Para este propósito, deve haver uma especificação das funções que são, também, inseparáveis da ideia de um governo, ou são exercidas habitualmente e sem objeção por todos os governos; tão distinta daquelas a respeito da qual se tem considerado duvidoso se os governos devem ou não exercê-las. A primeira pode ser denominada a função necessária do governo, a última, a opcional. Quanto ao termo “opcional” não se quer dizer que isso possa sempre ser um assunto indiferente, ou de escolha arbitrária, se o governo deve ou não assumir as funções em questão, mas apenas que a conveniência de exercê-las não corresponde à necessidade, e é uma matéria em que a diversidade de opinião deve ou deveria existir.
§ 2. [Caráter multifário das funções necessárias do governo] Numa tentativa de enumerar as funções necessárias do governo, nós as achamos consideravelmente mais multifárias do que acham, num primeiro momento, a maioria das pessoas, e impossíveis de ser circunscritas por aquelas linhas bem definidas de demarcação que, na desconsideração da discussão popular, frequentemente tentam rodeá-las. Nós, por exemplo, às vezes ouvimos dizer que os governos deveriam limitar-se a proporcionar proteção contra a violência e a fraude: que, fora essas duas coisas, as pessoas devem ser livres, aptas a cuidar de si próprias, e que, enquanto uma pessoa não age de forma violenta ou se utiliza de meios fraudulentos para prejudicar a própria pessoa ou os bens de terceiros, os legisladores e os governos não serão, de forma alguma, convocados a ocupar-se delas. Mas, por que deveriam ser as pessoas protegidas pelo seu governo, isto é, pela sua própria força coletiva, contra a violência e a fraude, e não contra outros males, exceto aqueles cuja urgência é mais óbvia? Se por nada, mas o que as pessoas não poderiam fazer por si mesmas é apto a ser feito por elas por parte do governo, as pessoas poderiam ser obrigadas a se proteger pelas suas próprias capacidades e coragem mesmo contra a força, ou implorar ou comprar proteção contra ela, como realmente fazem naquelas áreas em que o governo não é capaz de protegê-las. E contra as fraudes, todo mundo tem a proteção de sua própria inteligência. Mas, sem nada mais, antecipando a discussão dos princípios, é suficiente, na presente ocasião, que se considere os fatos.
Sob quais desses raciocínios, a repressão da força ou da fraude, estamos a colocar a operação, por exemplo, das leis sobre a herança? Algumas dessas leis devem existir em todas as sociedades. Talvez, pode ser dito que nessa matéria o governo deve meramente dar efeito à disposição feita por um indivíduo de seus próprios bens através de testamento. Isto, entretanto, é no mínimo muito questionável; provavelmente, não há nenhum país cujas leis referentes ao poder das disposições testamentárias são perfeitamente absolutas. E suponha-se o caso, muito comum, de não haver testamento. A lei, isto é, o governo, não decide com base em princípios de conveniência geral quem deverá ser o sucessor? E, no caso em que o sucessor é de alguma forma incapaz, ela não aponta pessoas, frequentemente seus próprios representantes, para arrecadar os bens e aplicá-los a seu favor? Há muitos outros casos em que o governo aceita a administração dos bens, porque o interesse público, ou, talvez, somente aquele dos particulares interessados, é tido como legítimo para requerê-lo. Isto é frequentemente feito nos casos de bens em litígio e nos casos de ser judicialmente declarada a insolvência. Nunca foi alegado que, ao fazer essas coisas, o governo excede seus limites.
Nem é função da lei definir a propriedade, uma coisa tão simples como pode ser suposto. Pode-se imaginar, talvez, que a lei tem apenas que declarar e proteger o direito de cada um na medida em que este o produziu ou adquiriu por consenso voluntário, honestamente obtido daqueles que o produziram. Mas, então, não há nada reconhecido como propriedade, exceto aquilo que foi produzido? Não há nada além da própria Terra, suas florestas e águas, e todas as outras riquezas naturais, acima e abaixo da superfície? Estas são as heranças da raça humana, e deve haver regulamentações para o uso comum de tudo. Quais direitos, e sob quais condições, uma pessoa será autorizada a exercer sobre qualquer porção dessa herança comum não pode ser deixado de lado, sem decisão. Nenhuma função do governo é menos opcional do que as regulamentações dessas coisas ou mais completamente envolvida na ideia de sociedade civilizada.
Mais uma vez, a legitimidade é concedida para reprimir a violência ou a traição; mas sob quais desses raciocínios devemos colocar as obrigações impostas às pessoas para cumprir seus contratos? Não-cumprimento não necessariamente implica fraude; a pessoa que entrou como parte num contrato pode, sinceramente, ter a intenção de cumpri-lo: e o termo fraude, que mal pode ser estendido, mesmo nos casos de violação voluntária do contrato, quando nenhum engano foi praticado, é certamente não aplicável quando a omissão para realizá-lo é um caso de negligência. Isso não é parte do dever dos governos de impor a execução dos contratos? Aqui, a doutrina da não-interferência seria, sem dúvidas, estendida um pouco, e seria dito que impor os contratos não significa regulamentar os negócios individuais à vontade dos governos, mas dar efeito aos seus próprios desejos expressos. Vamos concordar com essa ampliação da teoria restritiva e levá-la para aquilo que vale a pena. Mas os governos não limitam sua preocupação com os contratos à simples coação. Eles assumem a responsabilidade de determinar quais contratos são legitimamente executáveis. Não é suficiente que uma pessoa, não sendo enganada ou obrigada, faça uma promessa à outra. Há promessas pelas quais não é pelo bem público que as pessoas deveriam ter o poder de se vincular umas às outras. Para não dizer nada das obrigações de fazer algo contrário à lei, há obrigações que a lei se recusa a dar coercibilidade, por razões ligadas ao interesse daquele que se obriga ou à política geral do Estado. Um contrato por meio do qual uma pessoa se vende como escravo à outra seria declarado nulo pelos tribunais deste e da maioria dos países europeus. Há poucas nações cujas leis exigem o cumprimento de um contrato encarado como prostituição ou algum compromisso matrimonial cujas condições variam daquelas que são previstas em lei. Mas, uma vez que é admitido que há qualquer obrigação que, por razões de conveniência, a lei não deve obrigar seu cumprimento, a mesma questão é necessariamente aberta a respeito de todos os compromissos. Se, por exemplo, a lei devesse obrigar a execução de um contrato de trabalho, quando os salários estão muito baixos ou quando a carga horária é muito alta: se devesse obrigar a execução de um contrato pelo qual uma pessoa se obriga a permanecer, por mais de um período muito limitado, a serviço de um determinado indivíduo: se um contrato de casamento devesse continuar a ser executado contra a vontade deliberada das partes, ou de qualquer delas. Cada questão que pode eventualmente surgir quanto à política dos contratos e das relações que eles estabelecem entre os seres humanos é uma questão para o legislador, que ele não pode deixar de considerar e decidir.
Novamente, a prevenção e a supressão da violência e da fraude proporcionam serviço para os soldados, os policiais e os juízes criminais; mas há também os tribunais civis. A punição do que é errado é um assunto da administração da justiça, mas [h] a decisão dos litígios é outro. Vários litígios surgem entre as pessoas, mesmo que não haja má-fé entre ambos os lados, através de equívocos de seus direitos legais ou por não estarem de acordo acerca dos fatos, de cujas provas dependem aqueles direitos. Não é para o interesse geral que o Estado aponta pessoas para resolver essas incertezas e por fim a esses litígios? Isso não pode ser considerado um caso de absoluta necessidade. As pessoas poderiam indicar um árbitro e concordar em se submeter à sua decisão; e assim é feito nos locais em que não há tribunal de justiça, ou onde os tribunais não têm credibilidade, ou onde suas demoras e despesas, ou a irracionalidade de suas regras, desincentivam as pessoas a recorrer a elas. Ainda, é universalmente aceito como correto que o Estado deve estabelecer tribunais civis; e se seus defeitos frequentemente levam as pessoas a procurar substitutos, mesmo assim, o poder em reserva de levar o caso para um tribunal legalmente constituído dá para os substitutos sua principal eficácia.
O Estado não aceita, apenas, decidir os litígios; ele toma precauções antecipadamente para que eles não surjam. As leis da maioria dos países estabelecem regras para determinar muitas coisas, não como consequência da maneira como são determinadas, mas para que elas possam obrigar de alguma forma e que evite dúvidas sobre a matéria tratada. A lei prescreve formas de expressão para vários tipos de contratos para que nenhum litígio ou desentendimento possa surgir acerca de seu significado; ela prevê que se surgir um litígio, as provas devem ser obtidas para decidi-lo, exigindo que o documento seja confirmado por uma testemunha e executado através de certas formalidades. A lei preserva evidências autênticas dos fatos, aos quais estão ligadas consequências legais, mantendo um registro deles; como nascimentos, mortes, casamentos, testamentos, contratos e procedimentos judiciais. Fazendo essas coisas, nunca se alega que o governo ultrapassa os limites de sua função.
Novamente, não obstante um grande escopo que podemos permitir à doutrina de que os indivíduos são os guardiães adequados de seus próprios interesses e de que o governo nada deve a eles além da garantia de que ninguém irá interferir em seus assuntos, a doutrina nunca poderá ser aplicável a quaisquer pessoas, mas somente àquelas que são capazes de atuar em seu próprio interesse. O indivíduo pode ser uma criança, um lunático ou um imbecil. A lei certamente deve cuidar do interesse dessas pessoas. Não necessariamente ela faz isso através de seus agentes. Ela muitas vezes delega essa responsabilidade aos parentes ou afins. Mas, fazendo isso, seu dever será encerrado? Pode ela transferir os interesses de uma pessoa para o controle de outra e ser dispensada da supervisão ou de manter a pessoa responsável pela quitação da obrigação?
Há muitos casos em que os governos, com aprovação geral, assumem poderes e executam funções sem nenhuma razão exceto aquela que conduz ao bem-estar geral. Podemos pegar como exemplo a função (que também é um monopólio) de cunhar moeda. Esta é assumida com o único propósito de poupar os indivíduos dos problemas, demoras e despesas de pesagem e análise. Entretanto, ninguém, mesmo aqueles que mais desconfiam da interferência estatal, se opôs a isso, pensando ser um exercício impróprio do governo. Prescrever um conjunto de pesos e medidas padrão é outro exemplo. Pavimentação, iluminação e limpeza das ruas e vias são outros, se feitos pelo governo geral, ou, como é mais comum, e geralmente mais aconselhável, pela autoridade municipal. Construir ou melhorar os portos, construir faróis, fazer pesquisas para deixar os mapas e gráficos mais precisos, construir diques para manter o mar longe ou aterros para os rios constituem mais exemplos.
Os exemplos poderiam ser infinitamente multiplicados sem que haja intrusão em qualquer área questionável. Mas já foi dito o suficiente para mostrar que as funções do governo admitidas abrangem um campo muito mais largo do que se pode, facilmente, incluir dentro do círculo de qualquer definição restritiva, e que dificilmente é possível encontrar qualquer fundamento para se justificar comum a todas elas, exceto aquela que trata do bem-estar geral; nem para limitar a interferência do governo através de qualquer regra universal, salvo aquela simples e vaga, que nunca deve ser admitida fora dos casos necessários.
§ 3. [Divisão da matéria] Algumas observações, entretanto, podem ser utilmente aplicadas sobre a natureza das considerações onde é mais provável que se altere a questão da interferência governamental e no modo de estimar a magnitude comparativa das conveniências envolvidas. Isso formará a última das três partes nas quais nossa discussão sobre os princípios e efeitos da interferência governamental pode, de forma conveniente, ser dividida. A próxima será nossa divisão da matéria.
Devemos, primeiramente, considerar os efeitos econômicos que surgem da maneira pela qual os governos exercem suas funções necessárias e conhecidas.
Devemos, então, passar para certas interferências governamentais, as quais eu tenho chamado de tipo facultativo (por exemplo: ultrapassar os limites das funções universalmente conhecidas), que até agora têm ocorrido e, em alguns casos, continuam a ocorrer sob a influência de falsas teorias gerais.
Restará, finalmente, a indagação, independente de qualquer teoria falsa, coerente e com uma visão correta das leis que regulam os negócios humanos, de que haja quaisquer casos das categorias opcionais em que a interferência governamental é realmente aconselhável e quais são esses.
A primeira dessas divisões é de um caráter extremamente heterogêneo: uma vez que as funções necessárias do governo e aquelas que são manifestamente de mero expediente, que nunca ou raramente serão contestadas, são, como já ressaltado, muito variadas para ser enquadrada numa classificação qualquer. Aquelas, entretanto, que são de importância principal, que sozinhas é necessário, aqui, que se considere, podem ser reduzidas nos raciocínios seguintes.
Primeiro, os meios adotados pelos governos para aumentar a receita, que é a condição de sua existência.
Segundo, a natureza das leis que eles estabeleceram nas duas grandes matérias da propriedade e do contrato.
Terceiro, as perfeições e defeitos do sistema de meios pelo que eles obrigam geralmente a execução de suas leis, a saber, seus juízes e policiais.
Nós começamos com o primeiro tópico, isto é, com a teoria das taxações.
John Stuart Mill (1806-1873) foi um filósofo e economista inglês
Esta matéria foi originalmente publicada pelo Instituto Ordem Livre