Um homem, sua esposa e sua mãe de 70 anos dirigiram na Praça da Paz Celestial, em Pequim, capital da China, em 28 de outubro, ferindo 38 pessoas e matando duas antes de colidir com o parapeito da Ponte Jinshui. O carro, em seguida, explodiu em chamas, matando os três passageiros.
As pessoas no carro eram uigures, uma minoria étnica chinesa predominantemente muçulmana da província de Xinjiang, Oeste da China. O Partido Comunista Chinês (PCC) classificou o incidente de ataque terrorista. Num curto espaço de tempo, mais de 60 uigures foram presos pelas autoridades chinesas.
“Os uigures vivem em terror na própria pátria”, disse Alim Seytoff, porta-voz do Congresso Mundial Uigur, numa entrevista por telefone. “Tememos por nossas vidas.” Seytoff disse que ele e outros temem uma repetição histórica. Eles acreditam que o PCC usará o incidente para criar ódio público e aproveitará esse ódio para justificar e intensificar sua supressão a seu povo. O que Seytoff teme é que o PCC esteja fazendo aos uigures o que fez com outros grupos anteriormente.
‘Fogo Falso’
Os protestos no Tibete em 2008 e as reportagens da mídia estatal sobre as autoimolações de praticantes do Falun Gong em 2001 na Praça da Paz Celestial se provaram encenações das autoridades chinesas para justificar as repressões brutais que se seguiram.
Um documentário premiado, ‘Fogo Falso’, desmascarou as “autoimolações” na Praça da Paz Celestial. O vídeo mostrou como um ‘imolador’ tinha entre as pernas uma garrafa de refrigerante cheia de gasolina enquanto coberto de chamas. No entanto, o combustível não explodiu ou derreteu a garrafa nem havia vestígios de fuligem.
Policiais estavam agrupados em torno dos imoladores com extintores de incêndio na mão, apesar de ninguém nunca ter visto antes um policial na Praça da Paz Celestial com um extintor de incêndio.
O documentário citou uma reportagem do Washington Post que descobriu que as duas vítimas do incidente que puderam ser identificadas não eram praticantes do Falun Gong, segundos seus vizinhos.
Quando o vídeo propagandístico oficial foi visto em câmera lenta, ele mostrava um policial matando um dos envolvidos no incidente, acertando-o atrás da cabeça com um objeto.
O Falun Gong, também chamado de Falun Dafa, é uma disciplina espiritual com base nos princípios da verdade, compaixão e tolerância. Seus ensinamentos proíbem estritamente matar, incluindo o suicídio.
De acordo com Levi Browde, diretor-executivo do Centro de Informações do Falun Dafa, o então líder chinês Jiang Zemin usou as autoimolações para justificar sua repressão ao Falun Gong. Antes das “imolações”, a resposta do povo chinês sobre a campanha de perseguição ao Falun Gong era apática.
Imediatamente após a ocorrência do incidente, a China Central de Televisão (CCTV) exibiu uma reportagem especial a respeito. Logo depois, toda a mídia foi inundada com histórias sobre as imolações, focando-se particularmente numa menina de 12 anos, Liu Siying, que teria ficado gravemente queimada. A opinião do povo chinês mudou e a perseguição brutal ao Falun Gong decolou.
“O fato de que Jiang Zemin teve de fazer isso mostra que ele enfrentava uma batalha difícil”, disse Browde numa entrevista por telefone. “Jiang Zemin precisava de algo muito dramático e que chocasse as pessoas.”
Browde disse que a autoimolação teve pouco efeito fora da China, onde as pessoas viram monges budistas pondo-se em chamas como forma de protesto. No entanto, na China, “isso realmente enraizou o ódio nas pessoas”.
Isso foi agravado, segundo ele, pela “experiência do povo chinês de que se o governo vai atrás de alguém, você precisa se esconder, pois o que virá será brutal”.
Jogos Olímpicos
Os tibetanos enfrentaram um incidente similar. Antes das Olimpíadas de Pequim em 2008, os tibetanos estavam realizando protestos pacíficos em larga escala.
A mídia estatal chinesa não cobriu qualquer protesto tibetano, mas a CCTV transmitiu um protesto em Lassa em 14 de março logo que tudo começou. Quando a manifestação se tornou violenta, as autoridades comunistas alegaram que foi planejado pelo Dalai Lama.
Um “desordeiro”, que foi fotografado pela BBC vestindo roupas tradicionais tibetanas e brandindo uma grande faca, foi visto por uma testemunha na delegacia de polícia, portando a faca e mudando de traje para seu uniforme de polícia.
Fotos foram publicadas de soldados chineses alinhados segurando vestes de monges tibetanos. Testemunhas relataram que a polícia chinesa parecia mais interessada em filmar a violência do que em fazer algo para detê-la.
Logo após o protesto de 14 de março, o PCC começou a atacar vilas tibetanas e prender pessoas. Relatos emergiram por todo o Tibete das forças de segurança chinesas matando manifestantes desarmados. O escritor tibetano Tsering Woeser relatou 30 manifestantes mortos a tiros no condado de Aba, entre os quais uma criança de cinco anos e um estudante da escola primária.
Nos anos seguintes, o PCC reforçou suas campanhas de “reeducação”, destinadas a forçar os tibetanos a abandonarem o budismo tibetano. Mais de 100 tibetanos se voltaram para a autoimolação como sua última forma de protesto.
O rótulo de “terrorista”
Após o carro penetrar na Praça da Paz Celestial em 28 de outubro, o PCC exigiu que a imprensa estrangeira descrevesse o evento como um ataque terrorista.
Segundo Max Abrahms, um pesquisador do terrorismo e professor da Northeastern University, nos EUA, e membro do Conselho de Relações Exteriores, a evidência atual que vem da China sugere que o acidente não foi um ataque terrorista, mas uma forma extrema de protesto. Mas o PCC está provavelmente usando o rótulo de terrorismo para promover os próprios interesses.
“Em países autoritários como a China, acho que há muita infelicidade tácita com o status quo político”, disse ele. Ao utilizar o rótulo de terrorismo, “isso coloca o governo numa posição política melhor, porque o governo não tem mais de prestar atenção às queixas dos autores”.
“Concentrar-se no ato violento é uma forma de o governo desacreditar a agenda política dos atores não-estatais”, acrescentou ele.
Rotular um grupo de inimigo que pretende prejudicar o resto da sociedade, disse ele, também tem o efeito de reunir as pessoas sob sua bandeira. O apoio público agregado dá então espaço ao regime para se tornar mais forte.
De acordo com Alim Seytoff, o porta-voz do Congresso Mundial Uigur, desde que Xi Jinping assumiu o controle do PCC em novembro de 2012, várias centenas de uigures foram mortos pelas autoridades chinesas.
Ele disse que os uigures são mantidos sob vigilância, regularmente passam por postos de controle com guardas armados e têm suas casas frequentemente invadidas pelas forças de segurança em busca de livros religiosos. Se as pessoas mostram alguma resistência, disse ele, “a prática usual é a de atirar para matar e depois classificá-los como terroristas”.