Seria a França um país mais liberal que os Estados Unidos?

20/03/2014 20:20 Atualizado: 20/03/2014 21:43

Parte 1

Desde criança tenho a França e os Estados Unidos como os dois países que mais me intrigam. A influência dos seus grandes pensadores e artistas nos diversos ramos da atividade humana tornou-se logo óbvia para mim. De Júlio Verne a Philip K. Dick, de Voltaire a Benjamin Franklin, ou de Lavoisier a Thomas Edison, era evidente que algo de excepcional existia nessas sociedades. Cansado das muitas vezes sofríveis traduções de suas obras para o português, quis aprender as duas línguas, e pensava que, quem sabe, um dia até mesmo eu poderia estudar ou trabalhar num desses países.

Quando jovem, eu dificilmente teria sido capaz de prever que minha curiosidade e admiração por essas nações me levariam a viver plenamente imerso em suas culturas. A disputa das duas pelo meu interesse sempre foi acirrada: não persegui a oportunidade que se apresentou de fazer estudos de engenharia na França, mas terminei fazendo um doutorado em economia nos Estados Unidos. Minha esposa é francesa, mas nos instalamos no Texas, e em seguida em Minnesota. Sempre considerei a possibilidade de tentar a vida na França, e a oportunidade surgiu recentemente, quando me transferi da Universidade de Minnesota para a escola de comércio de Marselha (Euromed Management).

Tanto a França quanto os Estados Unidos foram fundados sob a forte influência de valores republicanos e liberais clássicos. Entretanto, qual dos dois países seria o mais liberal hoje? Do ponto de vista econômico, a resposta parece clara: os Estados Unidos, a despeito do enorme retrocesso dos últimos governos. O ranking da Heritage Foundation os coloca na oitava posição, contra a sexagésima quarta para a França. Se dependesse somente de liberdades econômicas, os Estados Unidos estariam claramente entre os líderes do liberalismo.

A falta de liberdade econômica, ou seja, da liberdade de trocar voluntariamente serviços e mercadorias, fica clara no caso francês em diversas situações que envolvem a participação do Estado e de bens públicos. Por exemplo, em cada greve de serviços públicos vemos comunistas e socialistas, quase sempre funcionários do Estado protegidos pelos direitos e privilégios que lhe foram concedidos, atacarem a própria nação, atingindo com suas paralisações, sobretudo os mais humildes e aqueles que deles mais dependem – tudo em nome de uma “igualdade” que, na verdade, não passa ironicamente de abuso de poder de monopólio sobre os menos favorecidos e mais incapazes de defender-se. Durante a última greve dos transportes coletivos que presenciei, promovida em nome da “defesa do sistema de aposentadoria pública”, vi idosos esperarem por quase uma hora num ponto de ônibus e estudantes caminharem quilômetros até a escola. Interessantemente, são esses mesmos idosos os que não ganham nada com tal greve, e são os jovens estudantes aqueles que serão futuramente chamados a pagar a conta de um sistema de aposentadoria abusado e em falência.

A hipocrisia dos socialistas nos países desenvolvidos, que se servem das benesses das economias capitalistas de mercado enquanto as denunciam, é de fato impressionante. Tão impressionante que não passam despercebidas por boa parte da população afetada. Praticam a violência econômica em nome da fraternidade e promovem seus interesses pessoais em nome da coletividade, ou seja, promovem valores opostos aos que supostamente defendem. Para ser mais claro, se ao menos defendessem egoisticamente seus interesses pessoais via trocas voluntárias, na forma benigna tão bem exemplificada pelo açougueiro, cervejeiro e padeiro de Adam Smith, estariam de fato sendo fraternos e contribuindo para o “social”. Mas o que fazem não passa de simples extração de renda parasitária e redistribuição de riquezas num jogo de soma negativa – o que no fundo se trata da definição perfeita da ação socialista moderna. Pena que muitos ainda não se tenham dado conta desse fato.

O leitor poderia me indagar então porque é que, dado o excessivo intervencionismo econômico do Estado francês, uma pessoa com tendências liberais escolheria habitar na França. Naturalmente, fatores pessoais e profissionais tiveram forte influência no meu caso. Adiciono, porém, que, infelizmente para aqueles que ainda acreditam que os Estados Unidos servem como Meca para o movimento liberal, há diversos fatores de ordem de valores que facilitaram minha escolha. Descobri que, desde 1995, quando pela primeira vez pisei na América do Norte, inúmeros valores liberais continuam firmemente estabelecidos na França, enquanto que os vi serem destruídos rápida e impiedosamente, “with extreme prejudice”, nos Estados Unidos.

Parte 2

De acordo com o índice de liberdade econômica da Heritage Foundation de 2010, somente dois países europeus seriam economicamente mais livres que os Estados Unidos: Suíça e Irlanda. Os Estados Unidos, entretanto, desde Ronald Reagan, trilham um mau caminho. Em janeiro deste ano, num artigo no Wall Street Journal, Terry Miller, coeditor do índice da Heritage Foundation, alertou que “pela primeira vez nos 16 anos da história do índice, e de forma preocupante, os Estados Unidos deixaram de pertencer ao grupo de elite formado pelos países considerados ‘economicamente livres’ de acordo com as medidas objetivas do índice”. Ele explica também no artigo como os Estados Unidos passaram a influenciar negativamente as tendências liberalizantes antes observadas em outros países, contribuindo negativamente para a liberdade econômica global. É interessante notar que essas tendências iliberais americanas são também confirmadas pela evolução do índice de liberdade econômica calculado pelo Fraser Institute. Como afirmei na parte anterior, os EUA, pelo caminho que trilham, certamente não podem mais ser vistos como referência no campo da liberdade econômica.

Darei um exemplo pessoal de como os Estados Unidos já não mais prezam pela liberdade econômica como deles seria esperado. A administração da cidade onde morei em Minnesota, um perfeito exemplo da democracia de partido único que se implantou na maioria das cidades universitárias americanas (pois é controlada de forma monopolística pelo Partido Democrata), adotou, durante plena crise imobiliária, uma medida que proíbe proprietários de imóveis em certas regiões da cidade de alugar seus imóveis. Ou seja, na suposta terra da liberdade econômica bastam os desmandos dum simples conselho de políticos de vilarejo para que se extermine uma grande parte dos direitos à propriedade dos cidadãos. O pior, porém, é que, a despeito da óbvia inconstitucionalidade da medida, ela não causou nenhuma grande comoção na região.

Em outras palavras, o assalto às liberdades econômicas nos Estados Unidos deixou de ser um tema sensível, passando de fato, como ocorre no Brasil, a ser visto pela lente pragmática de interesses individuais imediatistas. O cidadão americano típico, tendo aceitado os valores da chamada “sociedade de proprietários” (“ownership society”), vê no aluguel um estigma social, e não deseja ter como vizinho um locatário, pois isso, para ele, depreciaria seu imóvel. Tendo se tornado pouco zeloso na defesa das liberdades individuais, o cidadão americano permite a supressão do direito de propriedade via democracia majoritária, ou seja, autoriza a opressão do indivíduo pela maioria. Na verdade, vai se dar conta de que atirou no próprio pé no dia em que, por uma necessidade qualquer, precisar vender ou alugar seu imóvel, dia em que vai descobrir que não pode fazê-lo.

Pois se o americano proprietário de imóvel está agora sujeito às arbitrariedades e desmandos de políticos de várzea e das “regras da canalha” (“mob rules”), alimentados por sua própria vontade majoritária expressa nas urnas, pouco sabe então que o fenômeno se repete nacionalmente. Esse mesmo americano mediano, sem demonstrar nenhuma capacidade de reação ou indignação, tornou-se vítima do maior estelionato bancário de todos os tempos, os chamados “bailouts” – golpe de mestre promovido em perfeita consonância pelos dois partidos políticos. Para piorar o quadro, as únicas reações a tais abusos contra as liberdades individuais vêm de grupos com tendências claramente populistas e demagógicas. Ou seja, os americanos não somente parecem ter abandonado os valores fundamentais que estavam presentes na origem do país, mas, com a exceção de pensadores academicamente isolados, e líderes politicamente marginalizados, conduzem o debate político e filosófico de forma alienígena aos princípios tomados como sagrados pelos pais fundadores da nação, princípios estes presentes na Constituição do país. Como é possível que tal pesadelo ideológico tenha se instalado num país que até pouco tempo ocupava a linha de frente da defesa do indivíduo contra o Estado?

Creio que a destruição acelerada dos valores republicanos e liberais nos Estados Unidos tem várias explicações. A despolarização ideológica que se seguiu ao fim da guerra fria afetou profundamente o discurso político americano, permitindo finalmente que grupos extremistas e demagógicos, antes marginalizados, passassem a integrar a nata da cultura nacional; vide os exemplos dados por Michael Moore e Sean Penn.

Da mesma forma, vemos a decadência do sistema de ensino americano, que, do primário à pós-graduação, piorou significativamente após a primeira onda da contracultura, e ainda mais significativamente após o fim da guerra fria. A mudança acelerou o processo de mudança de valores do americano mediano, e vem disfarçada pelo chavão esquerdista do momento: multiculturalismo, correção política ou proteção ambiental. Vemos o retorno, numa onda multigeracional de dimensões nunca antes vista no país, de valores antiocidentais, anticapitalistas, antimercado e antitrabalho, valores que, diferentemente do que ocorreu durante o movimento da contracultura nos anos 60, agora se apresentam firmemente estabelecidos como ideologia dominante.

Adicionalmente, o multiculturalismo implantado com sucesso pela esquerda no país, claramente aceito pela maioria dos americanos, e detendo pleno controle do sistema de ensino americano em todos os níveis, permite a existência, pela primeira vez na sua história, de subculturas que rejeitam frontalmente os valores formadores da nação. Tal fenômeno nunca havia sido observado anteriormente, pois a absorção dos imigrantes implicava acima de tudo a aceitação das regras e dos valores republicanos americanos – algo que se tornou desnecessário. Na realidade, a própria noção de republicanismo adquiriu conotação pejorativa no país devido ao bem-sucedido ataque gramsciano promovido pelos democratas, e pela falta de consistência ideológica dos republicanos – que de fato nada têm de republicanos.

O fato é que os jovens americanos nas últimas décadas não receberam nem de suas famílias nem de suas escolas informação adequada sobre os ideais republicanos. Perderam assim a noção do que é um contrato social, e ignoram amplamente o fato de que as melhores repúblicas são governadas por leis, e não por homens e mulheres. Vi com os meus próprios olhos como um dos meus filhos, enquanto estudante, ao invés de estudar as ideias de grandes pensadores como Locke, Montesquieu, Franklin ou Jefferson, perdia seu tempo divagando sobre as “contribuições”, quase sempre irrelevantes, de membros de “minorias historicamente sub-representadas”. Os Estados Unidos caminham assim perigosamente na direção do populismo mais banal, tornando real o pesadelo maior dos “pais fundadores” que previram tal possibilidade durante a criação da nação. Tudo isso tendo culminado, naturalmente, na eleição do atual presidente americano, de fato um marco na história americana, mas não pelos motivos superficialmente positivos frequentemente citados pela grande mídia.

Em resumo, os Estados Unidos são ainda um dos países economicamente mais livres, mas a chamada excepcionalidade americana já não mais existe. Há que se temer pelo futuro da liberdade econômica no país, consideradas as fortes tendências iliberais em voga, que contrastam com as tendências liberalizantes observadas nos últimos dez anos em outras regiões do mundo, inclusive na França.

Parte 3

Nesta terceira parte, discutirei valores liberais sob uma perspectiva mais ampla que a das liberdades econômicas. Tentarei neste segmento explicar as origens das restrições crescentes às liberdades civis nos Estados Unidos.

Não quero com isso reduzir a importância dos Estados Unidos como nação aberta, possuidora de excelente Constituição e regime político e caracterizada por instituições liberais fortes e funcionais. Tenho orgulho da educação que lá recebi e de lá ter vivido uma boa parte de minha vida. Recomendo os Estados Unidos fortemente como residência adotiva para todos os que gostariam de tentar a vida numa sociedade livre.

Para que seja mantida uma perspectiva correta durante a discussão, considere-se, por exemplo, a distinção entre países abertos e liberais (como a França e os Estados Unidos) e países fechados e iliberais (como o Brasil) no que se agita do entendimento e tratamento dos bens públicos por seus cidadãos. Tanto nos Estados Unidos quanto na França existe uma excelente separação entre os domínios públicos e privados – leis, valores e regras informais que a promovem e a preservam. Tal separação, tanto na França quanto nos Estados Unidos, perdurará certamente num horizonte de tempo que se perde de vista, enquanto no Brasil, infelizmente, está ainda longe de ser atingida.

Feitas estas qualificações, gostaria de retornar à questão da crescente restrição às liberdades civis que é observada correntemente nos Estados Unidos. Como explicado nas partes anteriores, os Estados Unidos são um dos países economicamente mais liberais no mundo, a despeito do retrocesso nas últimas duas décadas. O mesmo, porém, não pode ser dito sobre dimensões mais amplas das liberdades civis. Para melhor compreender este ponto, é necessário utilizar o diagrama de Nolan (exemplos serão oferecidos no próximo artigo):

Tomando-se a criação dos Estados Unidos como ponto de partida, pode-se observar que o debate entre os “pais fundadores” travou-se essencialmente entre os puritanos, que se situavam ideologicamente na metade inferior do diagrama, formada por populistas, totalitários e conservadores de direita, e os liberais (“liberals”, daí o uso diferenciado do termo nos Estados Unidos), que se situavam na metade superior do diagrama, formada por libertários e liberais de esquerda. Por se tratar dum período histórico fortemente marcado pelo fundamentalismo religioso, era natural que boa parte do debate ocorresse em torno de temas que eram caros aos puritanos como os ligados à moral, virtude e religiosidade.

Neste sentido, a participação dos “pais fundadores” mais liberais como Thomas Jefferson e James Madison foi essencial para conter os ímpetos populistas e totalitários que demandavam a criação, em linguagem corrente, duma “república fundamentalista cristã” na América do Norte. A tensão que se manifestou durante a criação do país devido às suas origens puritanas é de fato tão abissal que impôs, desde então, marca indelével sobre o debate político americano, que não dá sinais de arrefecimento.

Com base no quadro acima apresentado ofereço a seguinte tese: a absorção rápida e tardia dos valores da esquerda marxista europeia pelos liberais de esquerda americanos nas últimas décadas teria servido para segregar os libertários e provocar uma irreparável rachadura na metade superior do diagrama, fazendo com que o polo de atração da política passasse para o extremo inferior esquerdo do diagrama. Isto é, a dinâmica da política americana moderna favorece os populistas e os totalitários.

Em outras palavras, a esquerda liberal americana, ao ter ejetado o liberalismo clássico de seu ideário, afastou-se dos libertários e aproximou-se dos populistas e totalitários. Tal movimento produziu como reação um moderado realinhamento de forças do lado direito do diagrama, que teria atingido seu auge provavelmente durante a ascensão de Ronald Reagan, com alguns conservadores de direita refugiando-se em alianças com libertários. O fato, porém, é que, desde então, a grande maioria dos conservadores americanos, devido às suas tendências puritanas, sente-se irresistivelmente atraída pelos populistas e totalitários, favorecendo os últimos em detrimento dos libertários.

As carreiras bem-sucedidas de políticos como George W. Bush, Al Gore, Barack Obama e Sarah Palin servem como evidência deste realinhamento histórico das forças políticas nos Estados Unidos. Vê-se assim o surgimento do neopopulismo no país. O sistema presidencialista americano, em contraste com sistemas constitucionais mais robustos como o suíço, complica ainda mais o cenário, terminando por realimentar perigosamente as tendências populistas e a histeria política no país, como visto na última campanha presidencial americana.

Na quarta parte desta série, oferecerei exemplos concretos de como tais tendências afetaram as liberdades civis americanas nas últimas décadas, tornando os Estados Unidos uma nação relativamente menos liberal que os países europeus mais avançados, exemplificados pela França. Também utilizarei o diagrama de Nolan para levantar a tese de que o ambiente estaria se tornando mais favorável aos ideais liberais nesses últimos países.

Parte 4

Nesta parte sobre o liberalismo nos Estados Unidos e na França, gostaria primeiro de lembrar que utilizo a França como representante das tendências observadas na Europa ocidental, e que muitos entre os argumentos apresentados poderiam ser igualmente aplicados a outros países europeus.

Na parte anterior, ofereci explicações para as crescentes restrições às liberdades econômicas e civis nos Estados Unidos nos últimos 30 anos. Enquanto isso, fenômeno inverso ocorreu na Europa ocidental, onde as liberdades econômicas aumentaram continuamente, ainda que lentamente, no mesmo período. As liberdades civis na região, por outro lado, permanecem entre as mais elevadas do mundo.

Desde a Segunda Guerra Mundial a Europa presenciou num primeiro momento a derrota dos Estados fascistas, seguida da autodestruição dos Estados comunistas. Esses dois fatos históricos, associados à crescente profissionalização das instituições europeias, em boa parte como consequência inesperada positiva do projeto de integração continental, livraram a região do totalitarismo, e em seguida levaram o populismo a patamares bastante reduzidos. Exceções, exemplificadas pelo caso da Itália, existem, mas em geral pode se dizer que observamos hoje um nível mais baixo de populismo nos países europeus avançados que nos Estados Unidos.

Como fizemos no caso americano, podemos utilizar o Diagrama de Nolan para compreender essas tendências (mais detalhes no meu artigo sobre o colapso do socialismo):

Temos visto, portanto, nos países europeus avançados um movimento de todos os grupos para a direita do diagrama. Fascistas e populistas converteram-se em conservadores de direita, e comunistas e socialistas tornaram-se mais libertários, aumentando o peso político dos grupos na metade direita do diagrama. Em outras palavras, o fenômeno marcante na Europa contemporânea é a fuga do triângulo totalitarista em direção ao triângulo libertário, como representado pela nuvem de pontos no Diagrama de Nolan acima, e pelas reformas pró-mercado que tiveram lugar em praticamente todos os países europeus desde a Segunda Guerra Mundial.

Entre os exemplos recentes duma Europa mais comprometida com a racionalidade econômica e mais pró-mercado que os Estados Unidos vemos a França reduzindo benefícios sociais enquanto os Estados Unidos os ampliam, vemos a Suíça votar em plebiscito pela redução do termo do seguro desemprego enquanto os Estados Unidos os estendem, e vemos diversas autoridades da União Europeia pressionarem por mais disciplina fiscal e melhor governança enquanto que os Estados Unidos partem para mais uma rodada de gastos governamentais e expansão monetária a despeito de déficits recordes.

Volto agora ao caso francês, pois ele se destaca por apresentar aspectos positivos que em minha opinião têm sido ignorados por muitos cientistas sociais, e que oferecem soluções concretas para alguns dos maiores desafios que se apresentam às sociedades abertas e aos defensores do liberalismo nas próximas décadas. Alguns dos pontos que levantarei, devido à sua riqueza de detalhes, serão analisados de forma mais detalhada em artigos futuros.

O sucesso do modelo francês deve-se a dois princípios que permanecem muito fortes no seu republicanismo liberal: que é o imigrante quem deve fazer o esforço de se adaptar à cultura local (e não o contrário), e que a meritocracia complementa a democracia. Com isso, a França não foi tocada pela doença do multiculturalismo, da ação afirmativa, e da correção política. Esses três inimigos da liberdade e do individualismo meritocrático são observados hoje principalmente nos Estados Unidos, mas também no Reino Unido e outras nações membros da Commonwealth e, em menor medida, na Alemanha.

Para os liberais, e particularmente para os liberais republicanos, estes deveriam ser pontos extremamente caros, e o país referencial deveria ser a França. Além disso, as liberdades na França não estão, como nos Estados Unidos, sob o ataque constante do coletivismo e populismo puritano. Na próxima parte, que concluirá esta série, oferecerei exemplos de como a França, graças aos valores republicanos aqui discutidos, tem tido mais sucesso na preservação das liberdades individuais que outras sociedades abertas.

Parte 5

Darei fim à série sobre liberalismo nos Estados Unidos e na França oferecendo alguns casos importantes de falhas liberais americanas e sucessos liberais franceses.

Muito se fala sobre a questão do islamismo na França. Na verdade, a França deveria ser vista como um dos melhores exemplos de boa integração islâmica. O francês é amplamente utilizado como a língua comum no país, e a língua mais ensinada é o inglês. Os incidentes oferecidos pela imprensa como exemplos de descontentamento religioso não passam, na realidade, de querelas sobre a apropriação de subsídios públicos, tendo pouca relação com questões culturais. Certamente, há regiões de alta concentração de imigrantes nas grandes cidades francesas, como em qualquer grande cidade do mundo, mas o que é surpreendente no caso francês é o elevado nível de aceitação das regras e costumes locais, e o sentimento geral de que a cidadania francesa é um requerimento republicano que independe de cultura ou etnia. Na verdade, para o bem da França, e diferentemente do caso americano, o republicanismo francês impede a utilização de raça, etnia, cultura ou religião na condução de políticas públicas; assim, há apenas francês rico ou pobre, letrado ou iletrado, independentemente de cor de pele, credo ou país de nascença. Esta é uma característica liberal e individualista da sociedade francesa que outras sociedades fariam bem em imitar.

Além disso, as liberdades na França não estão, como nos Estados Unidos, sob o constante ataque do coletivismo puritano. O uso de drogas tradicionais como o álcool ou o tabaco é visto como responsabilidade do indivíduo e não da coletividade. Não há excessivo encarceramento de usuários de drogas ilegais. E, como esperado, observa-se menos abuso público de drogas na França que nos Estados Unidos. De fato, bebidas alcoólicas são vendidas nos McDonald’s da França, e nem por isso eles se transformaram em antros de ébrios ou ambientes inapropriados para uma refeição em família – e isso a despeito da aderência duma parcela significativa da população a princípios islâmicos.

O sistema educacional francês, diferentemente do americano, continua fortemente baseado em critérios de mérito, enfatiza valores tradicionais republicanos, e permite um nível substancial de escolha ao promover a competição entre escolas públicas e privadas, inclusive católicas, por meio dum inteligente sistema de subsídios que equivale a um sistema de charters e vouchers. Este ponto é muito importante, particularmente para países como o Brasil, e voltarei a discuti-lo num artigo futuro.

Houve grande evolução cultural na França nas últimas décadas em relação à internacionalização e ao uso da língua inglesa, que passou a ser aceita sem muito questionamento como língua franca da comunidade europeia, sendo ensinada e utilizada nas escolas em todos os níveis. Em parte, é o resultado do fato de que os franceses estão entre os maiores apreciadores e consumidores da cultura literária, musical, cinematográfica e televisiva americana e inglesa, sofrendo cada vez menos com tentativas de restrição de acesso por parte de grupos nativistas claramente minoritários.

A política antiterrorismo na França por outro lado tem se mostrado eficaz, sem ao mesmo tempo apelar aos abusos contra as liberdades individuais que vimos acontecer nos Estados Unidos sob a guarda das administrações republicanas e democratas. O chauvinismo existe na França, mas, se não é menos agressivo, é menos eficaz que o americano, em parte pela ausência dos elementos puritanos e unificadores de suas manifestações, como os encontrados nos Estados Unidos.

A política de imigração na França é mais clara, mais favorável à unificação familiar, mais simples e menos custosa que nos Estados Unidos. A aquisição de nacionalidade francesa também é mais simples e mais favorável à integração familiar. A presença de grupos de “imigrantes furadores de fila”, em relação simbiótica com partidos políticos, é pouco significativa, enquanto que nos Estados Unidos eles dominam e contaminam o debate sobre imigração, em total afronta aos requisitos de mérito, integração cultural ou eficiência econômica. Diferentemente dos Estados Unidos, a França não tributa a renda dos franceses que vivem no exterior nem daqueles que renunciam à cidadania francesa.

Em suma, a despeito da herança socialista embutida no sistema de bem-estar social e do tamanho excessivo do Estado francês, a França continua a ser um país com fortes valores liberais e individualistas, nutridos até mesmo, no que se agita de grande parte das liberdades individuais, pelo segmento socialista de sua população. A França não sofre com a forma de coletivismo puritano encontrada nos Estados Unidos, tendo sido capaz de preservar com sucesso seus mais importantes valores liberais republicanos, enquanto que outras sociedades abertas se perdem nas armadilhas do multiculturalismo e da correção política, fazendo concessões às demandas iliberais de grupos estranhos aos seus valores como resposta atrapalhada aos desafios da globalização.

A interpretação usual de Asterix é de que ele representaria a resistência francesa aos valores anglo-saxões e à globalização. Ironicamente, é o seu amor intransigente às liberdades gaulesas que o transforma hoje no inusitado campeão sobrevivente das sociedades abertas. Por Tutatis, que o céu não lhe caia sobre a cabeça!

Pedro H. Albuquerque é economista, professor-associado da “KEDGE Business School and Researcher” na Aix-Marseille School of Economics (AMSE), DEFI & IDEP e autor do blog “Incentives Matter

Esta matéria foi originalmente publicada pelo Instituto Ordem Livre