Será que a China pode reconquistar Hong Kong?

26/01/2014 14:02 Atualizado: 26/01/2014 14:02

Não era para ser assim.

Dezesseis anos depois do retorno de Hong Kong à China, a cidade está atolada em impasse político, o sentimento anticontinente se infiltrou na vida cotidiana e as perspectivas pela democracia prometida enfrentam uma estrada pedregosa.

A reversão de Hong Kong ao governo chinês em 1997 foi anunciada como um dos vários atos que terminariam o “século de humilhação” da China. O ato final, a reunificação pacífica com Taiwan, continua a ser um sonho chinês.

Ironicamente, o primeiro-ministro chinês Deng Xiaoping inventou a fórmula cinquentenária de “um país, dois sistemas” que agora governa Hong Kong e como um modelo para Taiwan, prevendo a eventual reversão da ilha à soberania chinesa. Mas com os esforços desajeitados da China para ganhar os corações e mentes do povo de Hong Kong estão repletos de embaraços, e nem Hong Kong nem Taiwan se mostram impressionadas.

Inquietação crescente

Pequim e Hong Kong estão agora em rota de colisão sobre o futuro da cidade. Grupos pró-democracia e cidadãos comuns estão se preparando para “Ocupar o Centro”, uma manifestação civil em grande escala marcada para o final deste ano no distrito financeiro de Hong Kong, a menos que haja um plano aceitável para um sistema de ‘uma pessoa, um voto’ nas próximas eleições do chefe-executivo de Hong Kong em 2017.

Uma pesquisa recente mostrou que 62% das pessoas de Hong Kong querem participar desse plano e incluir o direito de indicar os candidatos, em vez de delegar essa função a um comitê de nomeação pequeno e não-representativo que poderia filtrar os candidatos “não-patrióticos”. Na ausência de um roteiro aceitável nos próximos seis a oito meses, Hong Kong enfrenta a perspectiva de desordem civil, prisões em massa e perda de confiança da comunidade internacional de negócios. Houve até menção na imprensa local da implantação do Exército da Libertação Popular (ELP) para reprimir os manifestantes, com o chefe local de propaganda de Pequim recentemente lembrando à cidade que o governo central tem o poder de impor um “estado de emergência”, se o governo de Hong Kong perder o controle.

Como Hong Kong agora se acalma para um período de consultas de cinco meses destinadas a reformar seu sistema de nomeação e eleição, pode ser um bom momento para pensar sobre Pequim apertar o botão de reset. Isso significaria uma nova estratégia de soft power e uma equipe fresca para supervisionar os assuntos de Hong Kong. Também exigiria que a China reorientasse seu quadro de “um país, dois sistemas” de volta em direção a uma maior acomodação das aspirações crescentes e de longa data de Hong Kong por um sistema mais democrático e representativo de governo.

Nos últimos 16 anos, o secreto Gabinete de Ligação do Governo Central de Pequim em Hong Kong tem monitorado a implementação do governo de Hong Kong da política de “um país, dois sistemas” e mostrado cada vez mais vontade de intervir nos assuntos exclusivamente locais que seriam de jurisdição do governo de Hong Kong.

O problema é que o Gabinete de Ligação de Pequim tem pouca experiência em relações exteriores ou em lidar com sociedades estrangeiras. E Hong Kong ainda é “estrangeira”, apesar de sua população predominantemente chinesa han. Como resultado, a sombra do governo de Pequim na cidade regularmente interpreta errado o que impulsiona os 7 milhões de residentes de Hong Kong, a maioria dos quais preza a liberdade, o estado de direito e um Judiciário independente.

Apertando o cerco

Então como é que as relações Hong Kong-Continente caíram para seu ponto mais baixo desde o retorno da cidade?

Observadores apontam vários erros de julgamento por parte da liderança chinesa, mas traçam as raízes das tensões a um evento crucial em 2003, quando 500 mil residentes de Hong Kong foram às ruas em protesto contra o Artigo 23, a agora infame ‘Lei de Segurança Interna’ que Pequim espera que Hong Kong implemente a fim de cumprir exigências da ‘Lei Básica’, a miniconstituição de Hong Kong. Os opositores argumentam que suas disposições vagas sobre traição, separatismo e certas atividades políticas reduziriam as liberdades políticas e pessoais de Hong Kong se o artigo for adotado.

O tamanho das manifestações pegou de surpresa os líderes chineses, e sua resposta semeou a possibilidade de uma mudança gradual mas significativa na atitude de governo de Pequim – uma ênfase no laissez-faire em “dois sistemas” para um foco mais aguçado no patriotismo de “um país”.

Mas a abordagem mais intervencionista da China tem produzido uma série de erros embaraçosos que têm destacado a falta geral de compreensão de grande parte do pensamento da cidade. Seu fracasso recente de impor a “educação nacional” é um exemplo disso. Qualquer pessoa familiarizada com Hong Kong poderia ter previsto que manifestações se seguiram contra o que foi amplamente percebido como um currículo propagandístico. Os críticos castigaram o livreto de ensino proposto pelo governo, “O modelo chinês”, por se referir ao regime do Partido Comunista na China como “progressista, altruísta e unido”, por criticar os sistemas multipartidários como desastrosos e por reescrever partes da história chinesa, como o massacre da Praça da Paz Celestial em 1989.

Outro episódio revelador ocorreu em outubro de 2012, depois que duas balsas colidiram no porto de Hong Kong. Quando funcionários do governo visitaram as vítimas num hospital local, o vice-diretor do Gabinete de Ligação falou com os jornalistas enquanto o chefe-executivo de Hong Kong permanecia de pé mansamente no fundo. Essas imagens aumentaram as preocupações de que o governo de Hong Kong já não dá as cartas, mesmo em questões exclusivamente locais.

Essas exposições não são novas. Em 2008, Pequim levantou as sobrancelhas com sua insensibilidade à separação de poderes no governo de Hong Kong, particularmente um Judiciário independente que é apreciado pela cidade.

Quando o então vice-presidente Xi Jinping visitou Hong Kong pouco antes das Olimpíadas de Pequim em 2008, ele disse a autoridades locais, legisladores e juízes que deve haver “solidariedade e cooperação sincera na equipe de governo”. Isso levou a uma imediata resposta crítica da Associação de Advogados de Hong Kong, o que lembrou Xi Jinping que o judiciário de Hong Kong era independe e não parte de qualquer “equipe de governo”. Os críticos também condenaram Xi Jinping por desrespeitar os princípios básicos de “um país, dois sistemas”.

Que as autoridades chinesas continuem a interpretar Hong Kong equivocadamente, com seu próprio dialeto cantonês e cultura “estrangeiros”, é agora uma realidade diária para a maioria dos cidadãos da cidade. Alguns têm sugerido que especialistas em relações estrangeiras mais experientes do continente devam supervisionar os assuntos de Hong Kong. Mas diplomatas da China também não estão ganhando os corações e mentes nos dias de hoje – especialmente em seu próprio quintal, onde o país está enfrenta crescente isolamento e uma corrida armamentista regional ganha fôlego.

No final do dia, uma mão mais leve em Hong Kong seria um sinal positivo de evolução do soft power da China, ainda ausente em grande parte da região, mas poucos aqui em Hong Kong contam com isso.

Nascido em Hong Kong, Martin Murphy é um ex-diplomata dos EUA e foi chefe da Seção Político-Econômica no consulado dos EUA em Hong Kong em 2009-2012. Ele tem contribuído para o Diário da Manhã do Sul da China, o Global Post e o Wing Chun Illustrated. Ele pode ser encontrado no www.hongkongreporting.com