Acusações, tricas e futricas entre os poderosos dão-nos saudades do Presidente Itamar Franco e de seu Chefe da Casa Civil, Henrique Hargreaves.
Itamar chegou ao poder por acaso, com a queda de Collor. Era visto por muitos como insignificante e desastrado. Hargreaves era antigo funcionário da Câmara, famoso pelo conhecimento de leis fundamentais para o relacionamento do Executivo com o Congresso. Itamar levou-o para o Palácio.
Concentremo-nos em algumas atitudes da dupla, quando o Presidente do Senado encastela-se para defender-se de acusações que pipocam novas a cada semana e o presidente da República desafia uma subordinada a provar alguma coisa contra a Ministra Chefe da Casa Civil, como se a esta faltasse língua ou capacidade.
Autoridades, inclusive o Presidente da República, não satisfeitas com a dose, repetem o comportamento, com pequenas variações, no caso em que o Secretário Nacional de Justiça é suspeito de atividades que vão contra, precisamente, a justiça.
Ao assumir a presidência, Itamar pediu a renúncia de todos os ministros, direito seu. A versão anedótica (que não é verdadeira, mas conto-a para ilustrar o fato), foi que, ao incluir os três ministros militares (Exército, Marinha e Aeronáutica — ainda não havia Ministério da Defesa) na troca, teria sido procurado por um alarmado Fernando Henrique, perguntando-lhe se ia mesmo demitir os três ministros militares (coisa que Itamar fez). Itamar perguntou a Fernando Henrique: “Por que, Fernando, você está preocupado com eles?” Ao que este teria respondido: “Não, Itamar, estou preocupado com você!”
A cena não aconteceu. Conferi com as fontes. Mas a versão viveu na minha cabeça e ainda vive no imaginário de muitos observadores. Ela é significativa por expressar o susto do observadores com a “audácia” de Itamar: pedir a renúncia dos ministros militares. Isso nunca tinha acontecido. Não foi audácia, foi apenas simplicidade e retidão. O presidente é dono de todos os cargos de ministros, e pediu-os. Os ministros militares em nada diferiam de seus colegas, exceto por usarem farda.
Foi o ato mais importante para restabelecer a primazia do poder civil no Brasil pós-regime militar.
O outro episódio tem mais a ver com a situação de hoje. Hargreaves, Chefe da Casa Civil, foi acusado de algum ato ilícito e pediu para sair do cargo, para não embaraçar seu chefe, o presidente.
Com a mesma singeleza com que pediu e recebeu os cargos dos ministros militares, Itamar anunciou publicamente as acusações a Hargreaves e informou que ele seria afastado enquanto durassem as investigações. Concluidas as investigações, com a mesma singeleza, Itamar anunciou que, como nada havia sido encontrado de ilegal ou desabonador no comportamento de Hargreaves, ele voltava à Chefia da Casa Civil.
As lições que ficam:
Negar repetidamente acusações que aparecem de todos os lados, numa democraria, não transforma mentiras em verdades de tanto repeti-las. Goebbels só conseguiu fazer isso porque o nazismo era uma ditadura.
Na democracia, mais importante do que defender-se ou a amigos com retórica é usar a luz do sol como o melhor desinfetante. Nixon e Clinton foram penalizados porque mentiram. John Dean, advogado da Casa Branca no período de Nixon, conta em seu livro Blind Ambition como a teia de trapalhadas e mentiras vai ficando cada vez mais espessa. Acabou na cadeia junto com outros colegas de alto coturno. John Mitchell, Ministro da Justiça de Nixon, foi condenado, preso e algemado e assim saiu de seu escritório, rumo à prisão.
Precisamos de alguma regra, a se estabelecer não sei se por costume ou por lei, que defina a Presidência da República e o Supremo Tribunal Federal como cargos terminais. Depois deles, voltar à política partidária ou à banca privada não pode ser aceitável. Evita-se o espetáculo de um ex-presidente da república batendo boca no Senado, ainda que em sua defesa.
Presidentes não batem boca com subordinados, desafiando-os a provar isso ou aquilo, seja em defesa própria, seja em defesa dos aliados. Esta atitude não combina com a tal “liturgia do cargo,” abusivamente citada. Quanto mais crescem as crises, menos “litúrgicas” ficam as atitudes de gregos, troianos, maranhenses, pernambucanos e paulistas.
Ex-presidentes e ex-Ministros do STF precisam ter uma pensão decente para não terem desculpa para precisar voltar à política ou à banca.
Até hoje não sei se Itamar foi embaixador na Itália, OEA e em Portugal porque precisava do salário ou se porque Fernando Henrique o queria longe.
Ex-presidentes não ficam falando mal de seus sucessores. Eduardo VII, filho da Rainha Vitória e Rei da Inglaterra por pouco tempo, recebeu um pedido de clemência para um regicida, ao que respondeu: “Não posso perdoar as pessoas que matam os membros da minha profissão.” De ex-presidentes, espera-se bons exemplos e excelentes comportamentos.
Quando Hillary Clinton foi eleita senadora, um repórter perguntou ao ex-presidente Clinton se ele iria morar em Washington, ao que ele respondeu: “Depende de vocês [repórteres]. Se vocês ficarem me fazendo perguntas a toda hora sobre o atual governo, vou embora daqui.” (Não precisou esclarecer que não faz parte do comportamento de ex-presidentes ficar criticando os membros de sua profissão, nem dividindo as sociedades e politéias.)
Finalmente, cinco e meia da manhã, inverno em Washington, um dia qualquer, muito frio, saída de passageiros internacionais do Aeroporto Dulles, na Virginia, vi, acompanhado de uma ou duas de suas filhas, de roupa esporte, o ex-presidente Itamar Franco, em pé, perdido entre as pessoas comuns que esperam amigos que chegam. Hargreaves estava no vôo. Tive o impulso de dizer a Itamar: “Bom dia, Presidente, o doutor Hargreaves está na alfândega, mas deve sair já.” Mas minha timidez me impediu.
Então digo hoje: Bom dia, presidente. O senhor, o doutor Hargreaves e seus exemplos deixaram saudades.
Alexandre Barros é cientista político (PhD, University of Chicago) e diretor-gerente da Early Warning: Políticas Públicas e Risco Político (Brasília – DF), além de colaborador regular d’O Estado de São Paulo. Ele pode ser contactado em alex@eaw.com.br.
Esse conteúdo foi originalmente publicado no portal Instituto Ordem Livre