Aos nascidos entre 1946 e 1955, época em que a República Argentina submeteu-se ao carisma do general Juan Domingo Perón, fica difícil entender (e aceitar) que da nação altaneira – orgulhosa do seu passado e confiante em seu destino de grandeza –, não hajam restado herdeiros importantes, ou um traço sequer de descendência, cultivado no terreno das ideias de uma escola de pensamento.
O Kirchnerismo nada tem a ver com a Buenos Aires de outrora: poderosa, ciosa da sua intelectualidade, gestora de planos para o futuro. A facção dos Kirchner é algo muito mais rasteiro, personalista – um empreendimento publicitário desprovido de essência que reflita um aspecto evolutivo qualquer da sociedade argentina.
Prefiro acreditar que não há pensamento estratégico ou ufanismo nacionalista – ou simples amor próprio – que resistam a uma sequência de eventos históricos tão adversos quanto a experimentada pelos argentinos: uma derrota fragorosa no campo de batalha, dez anos de um governo entreguista e mais dez de uma administração familiar que mistura populismo com inconsequência, ou irresponsabilidade.
Cresci, na metade final dos anos de 1960, descobrindo nas prateleiras dos sebos cariocas, os livros que, entre as décadas de 1910 e 1940, denunciavam, tanto no Rio quanto em Buenos Aires, os ímpetos armamentistas de argentinos e brasileiros.
No período pós-2ª Guerra, o governo de Juan Perón, engrossado por especialistas da indústria bélica alemã e antigos militares do 3º Reich, ameaçava reeditar, no cone sul da América, a excelência da máquina de guerra alemã.
A Argentina tinha encouraçados, pesquisava a propulsão a jato para aviões (algo inimaginável no Brasil) e, secretamente, organizava uma equipe para desenvolver tecnologia nuclear. Os brasileiros (do sul, especialmente) temiam os argentinos; os chilenos temiam os argentinos; até os americanos – que haviam descoberto o interesse peronista na fissão atômica – temiam os argentinos.
Em meu livro “O Código das Profundezas” (págs. 39 a 42) revelo que, nessa fase, Washington rejeitou, por duas vezes – em 1947 e 1950 –, as demandas do Peronismo por navios de guerra: porta-aviões, cruzadores, destróieres e até submarinos. Os argentinos queriam uma frota inteira.
Foi nessa época de ouro para os sonhos expansionistas gestados às margens do Prata (Perón cobiçava terras brasileiras, paraguaias e chilenas) que construíram suas carreiras estrategistas como Juan Enrique Guglialmelli, no Exército, e Isaac Francisco Rojas, na Marinha.
Nascido (em 1906) e criado em uma época de acirrada corrida naval entre Buenos Aires e Santiago, o almirante Rojas pensava, na década de 1970, que seu país poderia estabelecer uma espécie de Pax Argentina nas águas geladas, encapeladas do Estreito de Magalhães. Nem que para isso fosse necessário varrer a atrevida Armada chilena das diferentes rotas marítimas entre os Oceanos Atlântico e Pacífico. Tudo sob a proteção dos caças de fabricação americana embarcados no porta-aviões “25 de Mayo”.
Guglialmeli, entretanto, alcançou projeção ainda maior.
Transformado, nas décadas de 1960 e de 1970, em principal especialista em geopolítica de seu país, esse ex-comandante do V Exército argentino advogava uma força terrestre produtora do seu próprio armamento e uma República guardiã dos mares austrais do Atlântico, a partir dos penhascos do arquipélago das Malvinas.
Também no “Código” (págs. 100-101) narro que, no início de 1982, a Junta Militar argentina, chefiada por Leopoldo Galtieri, autorizou que o velho general Guglialmelli fosse prevenido (por um enviado especial) de que o assalto militar às Malvinas seria, finalmente, realizado. Neste espaço posso detalhar o relato antológico que me foi feito da reação do veterano estrategista: o idoso general emudeceu, de olhos bem abertos que, aparentemente, “raciocinavam” sobre a informação secreta que acabara de escutar. Segundo o emissário, seu interlocutor ficou, literalmente, paralisado.
Foi essa velha Argentina, de espírito visionário e guerreiro (passional como tudo em nossos vizinhos), que o tempo varreu para as profundezas do passado.
Conforme mencionei no início, contribuíram para isso:
1 – a derrota das forças argentinas no Atlântico Sul;
2 – as medidas tomadas, entre 1989 e 1999, pelo então presidente Carlos Saúl Menem – que desmantelou o programa de mísseis argentino em obediência ao governo Bill Clinton, fechou a fábrica de tanques TAMSE, e reduziu, drasticamente, o desenvolvimento da indústria aeronáutica de seu país –, e,
3 – a longa noite Kirchnerista – pródiga em notícias falsas (como o anúncio de que iria fabricar um submarino nuclear) e em ameaças impossíveis de serem concretizadas.
País nenhum do Terceiro Mundo sul-americano resistiria, convenhamos, a uma conjunção de circunstâncias tão desfavoráveis quanto essa.
Nesse momento, o dispositivo militar argentino não figura nem entre os cinco principais da América do Sul (Brasil, Chile, Venezuela, Colômbia e Peru). E até o pequeno Equador mantém núcleos de modernidade em suas Forças Armadas superiores ao dos argentinos – como, por exemplo, a aviação de caça, dotada de caças-bombardeiros Atlas Cheetah, de fabricação sul-africana.
A Armada argentina funciona como simples guarda-costeira, e planejava substituir os seus caças franceses Étendard – fabricados antes da guerra das Malvinas – pelos jatos desse mesmo modelo que a Marinha francesa anunciou que tiraria da ativa a partir de 2015. Ocorre que a qualificação dos aviadores franceses no caça Rafale atrasou, e só meia dúzia dos 14 Étendard serão aposentadas no segundo semestre de 2015. Com isso, os planos do Comando de Aviação Naval Argentino ficam prejudicados.
A Fuerza Aérea Argentina (FAA) também enfrenta circunstâncias constrangedoras. A corporação perdeu, temporariamente, a capacidade de formar os seus próprios pilotos (!) – que este ano (a exemplo do que já aconteceu em 2011) farão o curso básico de voo na Escola de Aviação da Marinha –, e investiga agora a possibilidade de adquirir uns caças Kfir israelenses modernizados.
O mais certo é, contudo, que, a partir de 2018, a FAA consiga importar alguns caças Mirage 2000 que hoje integram os esquadrões do Exército do Ar francês. Ou, em outras palavras: em 2018, quando o Brasil estiver recebendo seus primeiros caças Gripen NG, de 4ª geração (e aviônica bem próxima à dos jatos de combate de 5ª geração), novinhos em folha, a Argentina estará incorporando aviões Mirage usados, de 3ª geração.
Recentemente, o jornal britânico Sunday Express noticiou que o governo Kirchner injetará 3 bilhões de libras esterlinas (cerca de US$ 4,98 bilhões) em um conjunto de programas – mais de 30! – destinados a recuperar a capacidade operacional das Forças Armadas argentinas. É esperar para ver. Outros programas de reaparelhamento militar muito mais modestos anunciados por Buenos Aires – alguns deles celebrados com cerimônias solenes, que contaram com a presença da chefe de Estado – nunca saíram do plano das intenções.
De resto, é preciso dizer que a decadência político-estratégica argentina não tem passado desapercebida aos seus pensadores. Tomemos o caso do cientista político Carlos Escudé, ex-assessor especial, nos anos de 1990, do falecido chanceler argentino Guido di Tella.
Em janeiro do ano passado, nas páginas do prestigioso diário portenho La Nación, Escudé (que já foi um apoiador de Cristina Kirchner) concluiu:
“Estamos pondo à prova, de maneira experimental, a teoria realista das relações internacionais, que supõe que uma política de Defesa como a da Argentina implica um perigo para sua integridade territorial. Desde uma perspectiva científica, é um experimento fascinante.
Na verdade optamos por um modelo que nos impediria de defender-nos durante mais de 24 horas de um vizinho como o Paraguai. Isto significa que, atualmente, a Argentina é um Estado em certa medida, e segue sendo um Estado só porque seus vizinhos mais importantes, Brasil e Chile, querem que siga sendo um Estado. Em termos políticos, um Estado é uma rede de organizações que administra e defende um território. Se um Estado não pode cumprir com essas funções, não é plenamente um Estado.
Isto implica em que, na realidade, a Argentina é atualmente um protetorado de Brasil e Chile. Sobreviverá meio século com seus limites atuais? Em fins do Século XVIII, a Polônia fez algo parecido e foi muito mal. Desapareceu como Estado até 1919. Sem uma grande guerra, foi repartida entre Áustria, Prússia e Rússia. Mas é muito provável que a História demonstre que nós, os sul-americanos, somos mais ‘civilizados’ que os europeus”.
Os planejadores da presidenta Cristina lançam, vez por outra, iniciativas isoladas – como o recente programa de proteção para áreas do Atlântico de leito marinho (supostamente) rico em minérios –, mas é difícil acreditar que o Kirchnerismo tenha um projeto nacional, ou mesmo, que persiga – com chances de sucesso – simples planos estratégicos setoriais.
A visão estratégica da Casa Rosada parece tolhida, entorpecida pela presença britânica no arquipélago que os argentinos consideram de sua propriedade. As ilhas mais representam, portanto, uma estaca cravada na alma dos nossos vizinhos do sul. E, ao que parece, enquanto ela não puder ser removida, eles não conseguirão voltar a raciocinar com clareza.
Nos círculos diplomáticos internacionais, os tais formuladores da Presidência assopram (de forma intimidadora) que a carta na manga da mandatária é o projeto de uma família de foguetes balísticos.
Retomado há pouco mais de dois anos (sem que o programa espacial do país tenha sido oficialmente priorizado), ele, secretamente, objetivaria a produção de mísseis capazes de, a partir do território continental argentino, alcançar as instalações militares inglesas nas Malvinas. Há também rumores sobre uma aparente retomada das pesquisas nucleares argentinas. Mas tudo isso é difícil de avaliar, porque – por estratégia ou desprezo pela Opinião Pública (nacional e internacional) – o Kirchnerismo ignora o valor da palavra transparência.
O tal submarino de propulsão nuclear argentino, pomposamente anunciado em 2008 pela então ministra da Defesa, Nilda Garré, nós já sabemos: era só mesmo uma piada (meio ridícula) para divertir o distinto público.
Roberto Lopes é jornalista especializado em assuntos militares. Em 2000 graduou-se em Gestão e Planejamento de Defesa no Colégio de Estudos de Defesa Hemisférica da Universidade de Defesa Nacional dos Estados Unidos, em Washington. Em abril de 2012 lançou o livro “O Código das Profundezas, Coragem, Patriotismo e Fracasso a bordo dos Submarinos Argentinos nas Malvinas” (Ed. Civilização Brasileira)
Esse conteúdo foi originalmente publicado em DefesaNet